Capítulo 30: O começo no abismo
A base da tropa de investigação na camada 10 era um lugar estranho. Parecia estar sempre coberto por uma névoa silenciosa e pesada, como se o ar ali carregasse a dor de todos que passaram por aquele inferno disfarçado de estrutura militar.
Quando Aesyr abriu a porta de uma das alas internas, a figura que estava do outro lado mudou o ritmo do meu coração.
— Giovanna, agora você terá um novo integrante na tropa de investigação. Ele será o novo líder. Ensine-o bem. — disse com seu habitual tom calmo, antes de simplesmente virar-se e deixar o local.
E então eu a vi.
Seu cabelo preto, ligeiramente desgrenhado, emoldurava um rosto sujo pela rotina das camadas inferiores, mas de uma beleza bruta e hipnotizante. Seus olhos, de um roxo profundo, pareciam guardar segredos e tragédias que palavras jamais poderiam expressar. Mesmo naquele estado, a única palavra que ecoava em minha mente era:
“Maravilhosa.”
Não precisei de confirmação. Os traços, a intensidade nos olhos… ela era, sem dúvida, uma descendente do Clã da Escuridão.
— Então você é o filho da Erika. — disse com um meio sorriso, vindo até mim.
Sem hesitação, pegou minha mão e começou a balançá-la animadamente, como se nos conhecêssemos há anos.
— Me chamo Giovanna Nero. Muito prazer, senhor líder! Serei sua veterana e… depois, sua subordinada. Que ironia, não acha?
Sua risada foi leve, sincera. Ela irradiava algo que eu, até então, desconhecia nas camadas mais altas: vida.
Os dias seguintes foram mais tranquilos do que eu esperava. As camadas negativas carregavam uma aura opressora, mas a presença dela tornava tudo suportável.
Estávamos na camada -6. Um território surreal, plano como uma pintura infinita, coberto por grama dourada como trigo e com um céu absurdamente azul, sem nuvens. Era um lugar de silêncio absoluto… até o som do meu golpe cortar o ar.
O demônio à minha frente — uma criatura grotesca, parecida com uma ovelha mutada — caiu sem chance de reação.
Giovanna aproximou-se, sorrindo com admiração.
— Uau. Você é mesmo habilidoso… nem hesitou diante dele.
Ela abaixou-se e tocou a carcaça do monstro.
— A maioria dos demônios nessas camadas assume formas similares às de animais… mas deformados. Ainda assim, são raros por aqui. Ainda bem.
Naquele momento, enquanto ela falava com aquele sorriso — sujo de batalha, mas cheio de vida — percebi: Eu estava apaixonado.
Um ano se passou.
E num altar improvisado na camada 10, cercados por amigos e soldados, nós nos casamos.
— Lysanthir Vauz, aceita Giovanna Nero como sua legítima esposa?
— Aceito. — respondi, a voz firme, mas o coração disparado.
Ela estava radiante. Os olhos brilhavam como duas estrelas violetas, e mesmo num vestido de noiva simples, sua beleza transcendia.
Ali, naquele momento, em meio à sombra e ao concreto da camada 10, nasceu um novo capítulo da minha vida.
— Estou grávida. — ela disse, sorrindo, a mão repousando com ternura sobre a barriga.
A emoção tomou conta de mim de forma incontrolável. Era como se todo o passado, toda a dor, todo o peso… tivessem sido recompensados com aquela simples frase.
Mais tempo se passou.
— Parabéns… é uma menina. — disse o médico, entregando-me o pequeno ser envolto em panos.
A pequena tinha os olhos da mãe e os cabelos escuros. O sangue do Clã da Escuridão era forte — e agora era minha família.
Um dia, ao chegar em casa, encontrei Giovanna lendo uma carta.
— Uma missão? — perguntei.
— Sim… é para investigar o desaparecimento de membros do Palácio nas camadas inferiores. Dizem que algo estranho está ocorrendo na camada -51.
Minha filha correu até mim, agarrando minha perna.
— Papai! Papai! Já vai sair de novo?
Ela tinha os olhos de Giovanna e o sorriso que podia acender qualquer escuridão. Tão pequena… e já tão cheia de energia.
Do lado de fora, Cedric — um dos mais novos membros da tropa — resmungava impaciente.
— Ei! Já estamos atrasados!
Minha filha ergueu o olhar para mim com orgulho inocente.
— Papai… quando eu crescer, eu vou ser mais forte que aquele garoto, né?
Cedric fez uma careta, claramente irritado. Eu apenas sorri, pousando a mão sobre a cabeça dela.
— Com certeza… e eu estarei aqui para ver isso.
Giovanna sorriu para mim, de pé na porta, com aquele olhar que dizia mais do que palavras.
Foi a última vez que os vi sorrindo.
A dor foi repentina.
Um estalo, um ruído seco… e depois o calor. Algo atravessando meu peito.
Sangue escorreu pelos cantos da minha boca.
“Não pode ser…” pensei, virando os olhos lentamente.
Ali, com o braço cravado em mim, estava ela.
Nytharia.
— Você… nos traiu… — consegui dizer com dificuldade.
Seus olhos não tinham arrependimento. Apenas silêncio.
Meu corpo começou a cair.
Naquele instante, minha mente foi inundada por flashes — o rosto da minha filha, as mãos de Giovanna em minha nuca, o riso alegre dela… Cedric… a luz… a escuridão…
E depois disso, o nada.
Quando tudo ficou escuro… por um momento, achei que tivesse morrido.
Mas, em vez disso, despertei.
Um frio cortante me envolvia. A neve cobria o chão como um manto silencioso, e flocos suaves caíam do céu cinzento, dançando lentamente no ar. Meus olhos abriram devagar, e a primeira coisa que notei foi o silêncio — profundo, quase irreal. Então percebi… o buraco em meu peito havia desaparecido. Nenhuma dor. Nenhum ferimento.
Me levantei com dificuldade, sentindo o corpo rígido. Quando virei o rosto, ali estava ele.
— Cedric…
Deitado na neve, imóvel.
Seu corpo estava coberto de sangue seco, escurecido pelo frio. Havia escorrido por seus ouvidos, nariz, olhos e boca. A imagem me paralisou por um instante.
Respiração fraca… mas ainda havia vida.
Com cuidado, o levantei nos braços e percorri o terreno desconhecido até encontrar uma pequena caverna oculta entre pedras congeladas. Depositei Cedric com delicadeza perto da parede, onde a temperatura parecia menos cruel, e montei uma fogueira com galhos secos e restos de raízes duras.
A luz tremeluzente das chamas refletia nas paredes úmidas, criando sombras distorcidas. Olhei ao redor.
— Onde… estamos?
Aquele lugar não se parecia com nenhuma camada negativa que eu conhecia. Nenhum registro, nenhuma memória correspondia àquela paisagem. Isso só podia significar uma coisa:
Estávamos abaixo da camada -70.
E isso… teoricamente, não era possível.
Durante o dia seguinte, saí para explorar a área, procurando qualquer coisa que pudesse ser comida.
Foi então que o vi.
Uma figura emergiu da névoa da manhã, caminhando com passos lentos, porém firmes.
Ele não era como os outros humanos que eu já havia visto.
Vestia um manto tribal pesado, tingido em tons intensos de vermelho e negro — como obsidiana estilhaçada. Havia algo cerimonial naquele traje, mas ao mesmo tempo, ele exalava a aura de um guerreiro. Tiras e fibras orgânicas trançadas cruzavam o corpo como se fossem parte dele, vivas. A máscara cobrindo seu rosto era de um vermelho profundo, entalhada com símbolos agressivos e tribais. Chifres curvos saíam de cada lado da máscara, fundindo-se com o formato do crânio.
As poucas partes visíveis de seu corpo estavam cobertas por tatuagens que… pulsavam.
Respiravam.
Garras negras, longas e afiadas se projetavam de suas mãos e pés, envoltos por tiras de couro ritualístico.
Ele parou diante de mim, sua presença esmagadora.
— Máva nde?
“Que… língua é essa?”
“Não é a Língua Antiga… nunca ouvi isso antes…”
“Existem humanos… mesmo aqui?”
O estranho apontou para cima e disse com firmeza:
— ¿Yvate guive piko reju?
— Eu… não entendo o que você diz.
Por um segundo, seus olhos — ocultos pela máscara — pareceram estremecer. Ele deu um leve passo para trás, como se estivesse surpreso, até mesmo assustado.
Então, apontou para mim, depois para si próprio, e logo em seguida, para uma direção mais ao sul. Em seguida, virou o dedo para trás, indicando que eu deveria retornar.
Seus gestos eram claros.
“Você veio em dois.”
“Traga seu companheiro. Eu os levarei.”
Balancei a cabeça, afirmando.
Foi assim que conheci Aruan-Kaê, o guerreiro mascarado.
E pela primeira vez, ouvi o nome de sua tribo: Kura’ru.
Quatro anos se passaram.
O “sol” escarlate daquele mundo subterrâneo queimava no céu — um brilho avermelhado e artificial, mas constante.
— Lysanthir, pode me ajudar com esse trigo?
A voz firme de uma mulher chamou por mim no meio da plantação. Ela estava ali, com os pés descalços cravados na terra dura, segurando feixes de trigo dourado. Seus cabelos loiros estavam presos em longas tranças tribais que caiam sobre os ombros. A pele escura brilhava sob a luz avermelhada, marcada pelo tempo e sol daquela camada — como se tivesse sido moldada por este lugar.
Vesti a túnica simples que os Kura’ru haviam me dado. Era feita de tecido cru, com padrões rústicos tingidos em vermelho queimado, e me aproximei com dois sacos nos braços.
— Claro — respondi, sorrindo.
Quatro anos…
Quatro longos anos desde que caímos nesse abismo esquecido.
E ainda assim, a tribo Kura’ru nos acolheu.
Nos deu abrigo.
Nos deu… uma nova chance.
Cedric, agora com cabelos mais longos e o olhar mais duro, treinava diariamente com os guerreiros locais. A vida não era fácil. Não havia luxo, mas havia resistência, e acima de tudo… esperança.
Naquele mundo onde a civilização se esfarelava e a realidade era esquecida…
Eu ainda estava vivo.
E finalmente… estava recomeçando.

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