Capítulo 31: A vila de Kura'ru
É difícil descrever como é viver aqui.
As casas da vila Kura’ru não seguem o padrão que qualquer mente da superfície consideraria comum. Elas são hexagonais, esculpidas em uma madeira avermelhada, fibrosa, que parece respirar com o calor do ar. Estão dispostas em círculos perfeitos, delineando as quatro zonas da vila: norte, sul, leste e oeste — como se seguissem um padrão ancestral, um ritual silencioso.
No centro de cada um desses círculos ergue-se uma única árvore colossal: a Aruwã-É.
As Aruwã-És não são apenas árvores. São pilares vivos da civilização. Suas folhas, de um vermelho translúcido, dançam com o vento emitindo sons que lembram melodias antigas, como se a floresta inteira sussurrasse canções esquecidas pelo tempo. À noite, essa música se intensifica, ecoando pelas raízes profundas que formam santuários naturais — lugares de oração, descanso e comunhão.
Estamos no verão agora.
A estação mais intensa deste mundo. O “Sol”, de um tom rubro profano, paira distante e constante no céu estagnado, lançando sobre tudo uma luz alaranjada que pinta as sombras com nostalgia. As flores se abrem mais rápido. O suor escorre com facilidade. E as noites, mesmo quentes, são poéticas.
Sim… ainda é estranho.
Mas eu me acostumei.
Caminhei pela ponte de pedra viva, moldada por gerações da tribo, que passava sobre um rio de lava contida por magia tribal antiga. O calor subia em ondas invisíveis, lambendo minhas pernas e o interior do meu peito com uma familiaridade perigosa. Acima, as cavernas naturais da árvore ancestral da zona central sustentavam o Palácio Kaetá-Hemiru — residência dos anciãos e local de reunião das lideranças.
Subi os degraus entalhados, contornei as colunas de pedra com inscrições em espiral, e empurrei as portas duplas esculpidas com símbolos de animais sagrados.
A madeira rangeu pesadamente, e uma voz animada cortou o ar:
— Ly! Finalmente! Vem cá ver isso!
Na sala, envolto por almofadas de fibras naturais e panos coloridos estendidos como se fossem obras de arte, estava Cedric.
A imagem dele ainda me causava uma certa estranheza. Continuava com aquela aura de leveza, mas… não era mais o menino magricela de antes. Os cabelos loiros, agora longos até quase a cintura, desciam em ondas ligeiramente embaraçadas, e o corpo — embora não exagerado — carregava músculos definidos pelo esforço de treinos e caçadas.
Ele segurava um tecido bordado com as duas mãos, como se fosse um troféu sagrado.
— Olha só esse tigre! — disse ele, sorrindo com os olhos brilhando. — Fiz sozinho!
A criatura bordada era vibrante, com linhas em tom âmbar delineando um tigre agachado, pronto para o salto. As garras, costuradas com linhas prateadas, brilhavam sob a luz quente da sala.
— Impressionante — respondi, num tom neutro, quase automático. — Parabéns.
Ele bufou, fazendo bico como uma criança contrariada:
— Você com essa cara de peixe morto… não dá nem vontade de mostrar nada!
Antes que pudesse continuar a birra, o som rítmico e firme de passos impacientes ecoou pelo corredor.
Toc. Toc. Toc.
E então, a voz dela — cortante como lâmina afiada:
— Cedric, você é um guerreiro! Como pode perder tempo com… com…
Marcellia Vireya Kaê.
Ela apareceu no batente da porta como uma tempestade de verão: intensa, inesperada e impossível de ignorar. O rosto estava corado, não de vergonha, mas de frustração reprimida. Os olhos, como brasas prestes a incendiar tudo, não ousavam encarar diretamente o tigre bordado.
Achou bonito.
Óbvio que achou.
Mas jamais admitiria isso.
Marcellia era o exemplo de disciplina. Tão firme quanto o aço da katana que carregava na cintura. A pele acobreada, marcada pelo treino constante; os olhos penetrantes, que analisavam tudo com rapidez militar; e o cabelo loiro-claro, curto e sempre desalinhado, como se o pente fosse um luxo do qual ela tivesse abdicado há anos.
— Lysanthir, você também tá aqui? — disse ela, cruzando os braços. — Ótimo. Temos missão. Um lobo laranja foi avistado nas proximidades da vila. O Festival da Lua Vermelha é hoje à noite, e precisamos de carne.
— Entendido. — respondi, com um leve aceno. — Estamos prontos.
Cedric se levantou devagar, esticando os braços. Caminhou tranquilamente até ela e, com um sorriso despreocupado, passou o braço pelos ombros da guerreira.
Eles tinham exatamente a mesma altura.
E isso só tornava a cena ainda mais… interessante.
— Relaxa, Marcellia — disse ele, rindo. — Já faz quatro anos que estamos aqui. Você sabe que a gente não se mete em confusão.
Ela congelou.
Os olhos se arregalaram como os de uma fera acuada. As bochechas, já rosadas, se incendiaram num vermelho vivo. E os punhos cerraram ao lado do corpo, como se resistissem à vontade de socá-lo… ou beijá-lo. Mas ela não disse uma palavra.
Todos sabiam.
Todos, menos ele.
Marcellia era completamente apaixonada por Cedric.
E assistir a essa peça se repetir todo santo dia…
Bom, nesse abismo sem fim,
era o meu único entretenimento.
Marcellia sempre fez parte do exército da tribo.
Mas não era apenas mais uma entre os soldados.
Ela era a General do Sul — uma guerreira lendária entre os Kura’ru, conhecida por sua presença imponente e por nunca recuar diante de uma batalha.
Desde o dia em que eu e Cedric caímos nesse abismo esquecido pelo sol, foi ela quem nos supervisionou.
Ou melhor… quem nos manteve vivos.
Claro, não foi só ela.
Mas… sem sua proteção nos primeiros dias, talvez nem estivéssemos aqui para contar a história.
A nossa chegada foi tudo… menos pacífica.
O primeiro rosto que vimos neste mundo subterrâneo foi o de Aruan-Kaê — o líder da tribo.
Um homem de olhar firme, aura ancestral e autoridade silenciosa que sufocava qualquer tentativa de desobediência.
Mais tarde, descobrimos que ele era tio de Marcellia.
Graças a essa ligação familiar, a nossa “integração” foi mais suave do que provavelmente teria sido.
Ainda assim…
Nada foi fácil.
Aprender a língua deles levou quase um ano inteiro.
Um ano de erros vergonhosos, de palavras trocadas que transformavam cumprimentos em ofensas, de frases ditas que geravam confusão e risos contidos.
Mas, aos poucos…
Tudo começou a fazer sentido.
As palavras.
Os costumes.
As regras.
E principalmente… a estrutura.
E foi aí que veio o choque mais profundo:
Eles tinham uma civilização.
Com economia, estrutura social definida, hierarquias políticas bem delineadas…
E até mesmo um sistema próprio de ranking.
Sim.
Mesmo aqui, nas profundezas esquecidas da terra, onde o céu é apenas uma lenda…
Os ranks ainda existiam.
Só que aqui… eles eram sutis.
Disfarçados em tradição.
Mas tão opressivos quanto os de cima.
—
— “Lysanthir! Cedric! Podem me ajudar um pouco?”
A voz doce cortou o silêncio, fazendo nossos corpos se virarem instintivamente.
Ali, sob a luz âmbar das pedras que iluminavam a trilha, ela se aproximava com passos leves — Rara.
E por um momento… senti um arrepio subir pela espinha.
A prova viva de que mesmo neste mundo, tão distante das camadas superiores, as semelhanças eram perturbadoras.
Pele branca como mármore.
Olhos dourados, onde uma estrela de sete pontas brilhava no centro, como um selo que jamais podia ser escondido.
A mesma estrela que os Rankeadores possuem lá em cima.
A mesma marca que decide quem está acima… e quem fica abaixo.
Aqui, entre os Kura’ru, ninguém tinha pele clara.
Todos tinham tons terrosos, bronzeados, moldados pelo sol avermelhado que nunca tocava a superfície.
Exceto por mim.
Por Cedric.
E por ela.
Rara sorriu de forma tímida, como quem sabe o próprio peso, mas tenta suavizá-lo.
— “Eu preciso de um favor… Podem me ajudar a colher algumas flores de lírios azuis?” — sua voz era suave, quase delicada demais para o ambiente tribal e hostil em que vivíamos.
Cedric, sempre solícito, nem hesitou:
— “Claro, senhorita Rara! A gente ajuda sim.”
E então… o silêncio pesado caiu.
Marcellia.
Com os braços cruzados, o cenho franzido e o pé batendo contra o chão em um ritmo impaciente, ela observava a cena com olhos afiados.
Emburrada.
Sempre emburrada.
— “De jeito nenhum.” — respondeu, ríspida. Sua voz carregava aço. — “Por que deveríamos fazer isso por você?”
Rara deu um passo para trás, como se já esperasse por essa reação.
Suspirei.
Já era típico de Marcellia.
Mas naquele momento… não era o lugar.
— “Marcellia… não seja tão dura com ela.” — murmurei, tentando conter o tom de repreensão. — “Você sabe quem é Rara. Ela é importante pra esse lugar.”
Foi aí que ele apareceu.
Seruus Vritra.
Seu andar era silencioso, quase espectral.
Mas a presença…
Pesava no ar como se a gravidade se dobrasse ao seu redor.
General do Oeste.
Uma figura que mesmo os mais velhos temem provocar.
Sua pele era tão escura quanto uma noite sem lua, coberta por tatuagens tribais que contavam histórias que ninguém ousava repetir.
Seus olhos, verdes como esmeralda, guardavam uma tristeza funda — como se tivesse vivido mil vidas e perdido algo precioso em todas elas.
Os dreadlocks estavam presos para trás, entrelaçados com contas de osso e pedra.
Vestia um manto pesado de tom verde-oliva, que parecia respirar junto com ele, como se tivesse vida.
Na cintura, sua espada.
A lâmina da serpente.
Diziam que ela sibilava ao ser desembainhada.
Nunca desejei ver isso acontecer.
Ele parou ao lado de Rara, o olhar pousando lentamente sobre Marcellia.
E então falou, com uma voz grave e ritmada, como um trovão distante que ainda assim ecoava no peito.
— “Rara é uma das figuras mais valiosas dessa tribo.”
— “Se ela pedir algo… nós ouvimos.”
— “Não se nega um pedido de alguém que carrega o símbolo dos Sete Olhos.”
A tensão no ar se dissolveu lentamente.
Marcellia hesitou.
Seus olhos se desviaram por um segundo.
Ela odiava admitir…
Mas diante de Seruus, até ela se curvava.
Rara apenas abaixou a cabeça, humilde.
— “Obrigada…” — sussurrou.
Eu fiquei ali, observando.
Silencioso.
Essa mulher.
Essa tribo.
Esse sistema.
Mesmo no fundo do mundo, onde a luz mal chega…
As estrelas ainda dividem as pessoas.
Os ranks ainda existem.
E o peso de um símbolo… continua decidindo o valor de uma vida.
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