Capítulo 32: Primeira luta
— Estou feliz por te encontrar aqui. E ao seu lado… — disse Sahira, a voz mansa como quem conversa com a brisa, e não com pessoas.
Ela não olhava diretamente para mim. O rosto estava voltado para a minha direção, mas o foco dos olhos âmbar parecia atravessar meu corpo, enxergando a parede atrás de mim — ou talvez, a minha própria aura. Era como se ela me sentisse, vibrando no ar, ao invés de me ver.
Depois de um pequeno silêncio, ela virou levemente o queixo na direção de Rina.
— Rina Ebony, não é? — murmurou ela, um sorriso indecifrável nos lábios. — Enfim… estou um pouco atrasada para a oferenda. Nos vemos daqui a pouco na arena.
E, sem esperar resposta, Sahira virou-se.
O movimento foi leve, sem peso. Ela se afastou, e cada passo parecia parte de uma coreografia invisível. As correntes nos tornozelos tilintavam num ritmo que não coincidia com o barulho do corredor.
Ela me deixava desconcertado. Tinha algo nela… uma gravidade própria que fazia o ar ao redor ficar mais denso e mais leve ao mesmo tempo. Misteriosa? Sim. Mas fascinante de um jeito perigoso.
— Ela é bem… interessante. — comentei, mais para mim mesmo do que para Rina.
Rina deu um estalo com a língua, impaciente.
— “Tch”. Ela é uma bruxa dançarina. Vamos logo. O relógio não espera.
Seguimos para a Arena 4, localizada nos fundos do complexo principal.
No caminho, encontramos Shin. Ele andava apressado, ajeitando as luvas, mas parou ao nos ver, o rosto iluminando-se com um alívio genuíno.
— Ken! — chamou ele. — Parece que você também caiu na Arena 4! Que alívio. Achei que seria o único rosto conhecido no meio desse hospício.
— Eu também. — respondi, abrindo um meio sorriso. Era bom ter um aliado por perto.
Rina ficou um passo atrás, os braços cruzados, o olhar fixo em qualquer coisa que não fosse a nossa conversa “emocional”.
Chegamos à entrada da Arena 4.
Quando passei pelo arco de pedra, meus olhos se arregalaram.
O espaço era colossal. Uma cratera artificial cercada por muros altos de concreto rúnico.
Mas o que chamava a atenção era o vazio: não havia arquibancadas. Apenas uma mureta baixa cercando o perímetro de combate.
Era óbvio: não teria plateia.
Ali, só estavam os que iriam sangrar. Era um coliseu privado.
O céu acima estava pesado. Nuvens cinzas e baixas se acumulavam, engolindo o sol artificial da manhã. Cheirava a chuva e terra molhada.
— Vou buscar alguma coisa pra comer antes que comece. Quer algo? — perguntou Shin, sempre prestativo.
Antes que eu pudesse abrir a boca, Rina se adiantou, falando como se Shin fosse seu assistente pessoal:
— Quero um salgado de frango, um suco de uva natural e doces. Bastante doces. Agora.
Shin hesitou por um segundo, piscou confuso, soltou uma risadinha nervosa e assentiu.
— É pra já, senhorita Rina.
Eu balancei a cabeça, rindo por dentro enquanto ele corria.
Então, Rina me cutucou e apontou para o centro da arena.
— Olha lá. O show vai começar.
Uma música começou a ecoar pelos alto-falantes ocultos. Não era uma marcha militar. Era percussão. Tambores tribais, flautas e sinos.
De repente, um grupo de garotas entrou na quadra central, marchando em perfeita sincronia fluida.
Todas usavam roupas cerimoniais parecidas com as de Sahira e Sayra — trajes de seda e couro, com tecidos dourados, pedras coloridas e padrões tribais que lembravam chamas estilizadas. A pele delas, morena e reluzente, parecia bronze polido sob a luz difusa do dia nublado.
E Sahira estava entre elas. No centro.
Quando a música subiu o tom, elas começaram a dançar.
Era um espetáculo.
Não era uma dança para entreter. Era um ritual.
Os quadris se moviam com uma graça hipnótica, os braços desenhavam formas geométricas no ar como se comandassem o vento. Era uma celebração da vida… e uma promessa de morte. A dança carregava poder, energia, calor.
Fogo em forma de movimento.
— É a Dança da Chama Eterna. — comentou Rina ao meu lado, a voz baixa, sem tirar os olhos da cena. — Tradicional do Clã D’Alani. Elas estão abençoando a arena… ou amaldiçoando os oponentes.
Foi aí que a ficha caiu.
Era mesmo um Clã. E a conexão entre Sahira e Sayra não era apenas o nome; era o sangue.
Antes que eu pudesse processar a beleza daquilo, uma presença chamativa demais para ser ignorada invadiu meu campo de visão lateral.
Levi.
Ele vinha caminhando pela borda da arena, exalando confiança como se fosse perfume barato. Os cabelos longos estavam presos num rabo de cavalo tático (mas elegante), e as roupas justas marcavam cada músculo com propósito.
Ao lado dele, caminhava uma figura que me fez ficar alerta.
Luis Figui. O Vice-Presidente do Conselho.
Levi abriu os braços com um sorriso largo e extravagante ao me ver.
— Garoto Orquídea! — A voz dele ecoou. — Então o destino nos uniu na Arena 4! Hahahaha! Vou poder avaliar sua performance de perto. Isso me anima!
Luis parou ao lado dele. Ele se virou lentamente para mim.
O sorriso dele era torto, calculado.
— Muito prazer, calouro. — A voz dele era suave, mas carregava algo viscoso, venenoso. — Você deve me conhecer. Sou Luis Figui.
No olho esquerdo dele, brilhando com uma luz fria, estava o símbolo: um Floco de Neve complexo.
O jeito que ele falava, o modo como sorria… tudo nele parecia escorregadio.
Mas se estava com Levi… talvez fosse tolerável. Ou talvez Levi fosse o único louco o suficiente para andar com ele.
Luis trocou um olhar rápido e indecifrável com Rina, depois virou a cabeça para a arena — onde as garotas do Clã D’Alani finalizavam a dança com um giro explosivo.
GONG.
O som de um gongo digital ecoou.
As dançarinas cessaram os movimentos instantaneamente. Com uma última reverência, saíram de cena, deixando o eco dos sinos no ar.
O palco estava limpo.
E então… ela apareceu.
Uma mulher subia os degraus da plataforma de observação.
Devagar. Com uma presença que fazia a gravidade parecer mais forte.
Os cabelos dela eram longos, prateados como névoa congelada ou o fio de uma espada, caindo até a cintura num corte reto e preciso. Sua pele era pálida como porcelana antiga, contrastando com olhos azul-acinzentados que pareciam atravessar tudo o que olhavam.
Não era um olhar de julgamento. Era um olhar de equilíbrio.
Vestia o uniforme cerimonial completo dos Observadores: branco, com detalhes pretos e dourados. No peito, sobre o coração, o símbolo do Yin-Yang bordado em fio de ouro pulsava levemente.
Ela lembrava os antigos mestres de artes marciais das lendas, a mistura perfeita de tradição e autoridade absoluta.
Ela parou no centro da plataforma, colocou as mãos para trás das costas, a postura reta como uma lança cravada no chão.
— Olá a todos. — disse ela.
A voz era clara, firme, porém serena como a superfície de um lago sem vento. Não precisou de microfone.
— Sou Nivellen Dreyo. A Quarta Observadora de Lutas. Estarei responsável pela ordem e pelo julgamento na Arena 4.
O silêncio que se seguiu foi quase sagrado.
Ela não precisava gritar. Sua simples existência comandava respeito.
Então ela era a última.
Sayra era o caos. Natan era o sádico. Cael era o mistério.
E Nivellen… Nivellen era a Lei. Fria, elegante, cortante.
Ela estava prestes a falar mais alguma coisa, as regras, talvez.
Mas, do outro lado da arena, meus olhos foram puxados por um imã de ódio.
Lá estava ele.
Rico Zyx.
O Rank A-2. O sádico que me usou de saco de pancadas. O covarde que fugiu de Solara.
Ele estava encostado na mureta, tranquilo, rindo de alguma piada com outros veteranos, como se nada no mundo importasse. Como se eu não importasse.
O sangue subiu para a minha cabeça. O som da voz de Nivellen ficou abafado, distante.
Só consegui captar a última frase dela, que ecoou como o tiro de largada de uma guerra:
— …A partir de agora, declaro iniciada a Prova Prática do Exame de Reclassificação. Que vençam os aptos.
O gongo soou novamente.
O inferno abriu as portas.
Ao mesmo tempo, os dispositivos esféricos nos bolsos de Levi e Luis emitiram um som.
Não foi um bipe comum. Foi um trinado seco, agudo e sincronizado.
Levi sorriu.
Ele puxou o elástico do cabelo, refazendo o rabo de cavalo com um movimento rápido e preciso, apertando-o para o combate.
— Está na hora da nossa dança, não é mesmo? Luis Figui. — disse Levi, os olhos negros brilhando com uma excitação que ele mal tentava esconder sob a máscara de nobreza.
— Mas é claro, meu grande e extravagante amigo, Levi Gressi. — respondeu Luis. O tom era suave, polido, mas carregava uma malícia subterrânea, como se ele falasse mais com os dentes cerrados do que com a língua.
Meu coração disparou.
Ver os dois lutarem não era apenas ver um treino. Era como assistir à colisão de dois astros em rota de desastre: raro, grandioso… e perigoso para quem estivesse perto.
Foi aí que o Shin voltou, correndo, equilibrando duas sacolas de papel pardo na mão e um copo de suco na outra.
— Uf… a fila estava enorme. — disse ele, ofegante, olhando ao redor. — Acho que perdi alguma coisa, né? O clima tá pesado. Que sorte não ser a sua hora de lutar, Ken…
Rina não perdeu tempo. Ela arrancou o salgado da mão dele como um animal faminto e começou a comer com uma delicadeza felina, ignorando completamente a tensão no ar.
— Ter amizade com Levi Gressi é uma faca de dois gumes. — murmurou ela entre mastigadas, os olhos cinzentos fixos na arena. — É uma honra… e um risco de vida.
— Você acha? — perguntei, ainda tentando acreditar que veria o Levi “sério”. — Ele é o Rank 2 do Terceiro Ano. É forte, claro.
Rina engoliu, limpando o canto da boca com o polegar.
— Ele é o Rank 2 porque ele quer, Ken. — Ela baixou a voz, como se contasse um segredo de estado. — Para falar a verdade… eu tenho uma teoria. Eu acho que o Levi é mais forte que a própria Solara Whitmore.
Aquilo me fez engasgar com o ar.
Tossi, incrédulo.
Mais forte que a Presidente?
A mesma Solara que me jogou longe com um empurrão? A que tem Três Estrelas Negras no olho?
Era difícil de acreditar. Impossível, na verdade.
Mas conhecendo o Levi… com aquele ego do tamanho de uma camada inteira, ele jamais aceitaria usar algo que “estragasse” a simetria do rosto dele, como uma marca no olho. Talvez fosse por isso que não usava a estrela. Ou talvez… ele fosse forte o suficiente para não precisar de títulos.
Enquanto eu me perdia nesses pensamentos, Levi e Luis já estavam na quadra central.
O espaço ao redor deles parecia vazio, embora estivesse cheio. As outras quadras também começaram a movimentar seus lutadores, mas… era impossível desviar o olhar dali. A gravidade da Arena 4 estava concentrada neles.
Nivellen Dreyo, a Observadora, estava na borda. Ela nem precisou levantar a voz. O simples gesto de sua mão cortando o ar foi o suficiente.
— Comecem.
Luis sorriu. Ele abriu os olhos lentamente.
O olhar dele mudou. Deixou de ser o político ardiloso.
Ficou frio. Calculista. Cheio de veneno.
Levi se inclinou um pouco à frente, o corpo relaxado, mas vibrando como uma corda de violino prestes a arrebentar.
E então — ele sumiu.
Não foi velocidade. Foi teletransporte cinético.
Mais rápido do que meus olhos, treinados pelas Glaciais, conseguiam acompanhar.
BAM.
Um soco direto. Um impacto limpo, sem defesa, no rosto de Luis.
O som seco do golpe ecoou na arena como um tiro de canhão. A cabeça de Luis virou violentamente com o impacto.
Levi recuou com um salto elegante para trás, pousando na ponta dos pés, como se estivesse terminando um passo de balé.
Luis cambaleou um passo. Ele tocou o rosto com a ponta dos dedos enluvados. Havia um filete de sangue no canto da boca.
Ele sorriu.
— Golpe forte, Levi. Essa doeu. Desalinhou meu maxilar.
Levi respondeu com um riso de canto de boca, limpando a mão na calça.
— Maldito… eu mirei no nariz. Pensei que fosse desviar.
Luis ergueu o braço direito na direção de Levi.
— Eu não preciso desviar.
CRACK.
O som de vidro quebrando.
O braço direito de Levi, o que desferiu o soco, congelou instantaneamente.
Não foi gradual. Foi imediato. Cristais de gelo azul-escuro, quase preto, cobriram a pele dele do ombro até a ponta dos dedos.
A temperatura na arena despencou. Minha respiração virou fumaça.
Luis falava com tranquilidade, ajeitando o cabelo, como se estivesse comentando sobre o preço do pão:
— Não se preocupe. É Gelo do Purgatório. Não vai necrosar… se você não se mexer por três dias.
O braço congelado de Levi estava ficando roxo sob o gelo. O sangue parou de circular.
Mas o que veio a seguir foi o que me fez entender quem era meu colega de quarto.
Levi olhou para o braço inútil com tédio.
Com apenas dois dedos da mão esquerda, ele tocou o gelo.
Deslizou os dedos sobre a superfície congelada.
PING.
O gelo se partiu como vidro fino e evaporou em vapor branco.
A cor roxa da pele sumiu, voltando ao tom saudável em segundos.
Ele girou o braço recuperado, estalando o ombro.
— Você acha que só truques de temperatura vão me derrotar, Luis? — Levi bocejou. — Você me subestima demais. Isso é ofensivo.
Luis ergueu uma sobrancelha, o sorriso torto se alargando.
— Vale tentar, né? — Ele girou o pescoço. — Mas vamos parar de brincar de aquecimento? Vamos mostrar aos calouros o que acontece quando o Conselho briga?
O chão ao redor de Luis começou a embranquecer.
O concreto da arena trincou pelo frio. O ar se partia em pequenos flocos de neve que flutuavam, visíveis à luz.
E então, o olho esquerdo dele — aquele com o Floco de Neve — começou a brilhar violentamente.
Era um brilho ciano, pulsante, como um reator nuclear prestes a fundir.
O silêncio da arena foi tomado por um arrepio coletivo.
Levi parou de sorrir.
Ele ficou em posição. Uma base baixa, firme.
Seu corpo estava imóvel, mas o ar ao redor dele começou a distorcer pelo calor.
As mãos dele começaram a brilhar.
Um branco intenso. Puro. Quase sagrado. Mas não era luz de cura. Era a luz de uma estrela colapsando.
Levi abriu a boca. A voz dele saiu duplicada, como se algo falasse junto com ele.
— Quinto Selo: Dragão Branco… Último Pecado.
As palavras pesaram no ar como chumbo.
E então, eu senti.
Não foi visão. Foi instinto primitivo.
Mesmo à distância, fui engolido por uma aura imensa.
Atrás de Levi, a energia branca tomou forma. Uma silhueta colossal, fantasmagórica, de escamas e dentes, ergueu-se sobre a arena.
Não era energia. Era Pressão.
Luis arregalou os olhos.
Pela primeira vez, o sorriso dele sumiu. O suor frio congelou em sua testa. Ele parecia uma criança que percebeu que a brincadeira foi longe demais.
Ele não estava mais atuando. Ele estava com medo.
Levi disparou.
BOOM.
O chão onde ele estava explodiu em cratera.
Ele virou um feixe de luz branca. O som do avanço rompeu a barreira do som dentro da arena fechada.
Ele ia atravessar Luis. Ele ia matar Luis.
Luis tentou erguer uma barreira de gelo, mas era lento demais.
E então…
CLAP.
Um som seco.
O vento parou. A pressão sumiu.
Nivellen Dreyo.
Ela estava lá.
Entre o punho brilhante de Levi e o rosto pálido de Luis.
Surgiu do nada. Como um erro na edição do mundo.
Com uma velocidade que desafiava a lógica, ela interceptou o golpe de Levi.
Não com uma barreira.
Com as mãos nuas.
Luis caiu sentado, tremendo, a respiração ofegante. Ele sabia que tinha escapado da morte.
Levi estava parado, o punho branco a milímetros do peito da Observadora, segurado pelas mãos dela.
A aura do dragão se dissipou como fumaça.
Levi suspirou, frustrado, desativando o brilho. Ele recolheu a mão e jogou o cabelo para trás.
— Tsk. Eu ia parar no último milímetro, Nivellen. — reclamou ele, com um sorriso torto e insolente. — Que desperdício de energia… Você é muito superprotetora.
Ele olhou para Luis, que ainda estava no chão.
— Agora estamos 17 a 14 para mim, Luis. Anota aí.
Luis riu, uma risada nervosa e histérica, passando a mão no cabelo.
— Parece que sim… seu monstro.
A plateia finalmente soltou o ar que prendia.
Um murmúrio de choque varreu a Arena 4.
Era esse o verdadeiro Levi Gressi?
Rina estava certa. Aquilo… aquilo competia com a Solara.
Aquela aura não era de um estudante. Era de uma catástrofe natural.
Olhei para o centro da quadra.
Levi já estava saindo, acenando para a plateia como uma celebridade.
Mas meus olhos focaram em Nivellen.
A Observadora, sempre perfeita, sempre intocável.
Ela olhava para a própria mão direita.
A mão que parou o soco.
Estava tremendo levemente.
E, pingando no chão branco da arena…
Uma gota de sangue.
A pele da palma dela estava rasgada.
Ela fechou a mão rapidamente, escondendo o ferimento na manga do uniforme, e voltou a assumir a postura de estátua.
Mas eu vi.
Levi Gressi tinha ferido uma Observadora.
E eu… eu dormia no beliche debaixo desse cara.

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