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    — Já que vão até o Rio Marezza… — disse Seruus, com aquele tom preguiçoso e profundo que ele usava até quando falava de morte. A voz dele se arrastava como fumaça espessa, cobrindo o ar com um peso quase hipnótico. — Posso acompanhar vocês. Tô sem nada pra fazer mesmo.

    Marcellia bufou alto — e dessa vez não tentou esconder. O som ecoou como uma flecha batendo contra um escudo.

    O olhar dela passou rápido por mim e por Cedric, cortante, mas sem se fixar. Depois desviou para o chão, como se quisesse fingir que Seruus simplesmente não existia. O que era difícil. Impossível, na verdade.

    Ela girou nos calcanhares com um movimento brusco, como se estivesse em campo de batalha. Começou a andar na frente, passos pesados, ritmados, quase furiosos. Cada passada fazia seu hakama cerimonial balançar violentamente, como se a própria roupa partilhasse da frustração. Os tecidos escuros tremulavam no vento da floresta, e a espada curta nas costas tilintava contra as placas de osso do cinto.

    — Hah… ela fica engraçada quando tá assim. — Cedric murmurou com um sorriso preguiçoso, enfiando as mãos atrás da cabeça e começando a andar atrás dela com o andar despreocupado de sempre. — Tipo um gato que tomou bronca.

    Fiquei um momento parado, ainda absorvendo a cena, e então senti Seruus se aproximar. Ele cruzou os braços e fitou o céu avermelhado acima da copa das árvores, onde a luz filtrava pelas folhas grossas como se passasse por vidro manchado de sangue.

    — Sabe… depois que vocês chegaram aqui, é estranho ver como a Marcellia mudou. — Ele falou devagar, com um sorriso pequeno no canto dos lábios, quase nostálgico. — E quer saber? Eu também fico feliz com isso. Nunca imaginei que existissem humanos lá em cima. Muito menos que seriam tão… parecidos com a gente.

    Eu encarei o céu também, respirando o ar denso daquela floresta que mais parecia suspensa entre o tempo e o mundo.

    E então, seguimos pela trilha.


    A floresta da Camada Baixa se estendia diante de nós como um mar infinito de árvores retorcidas e raízes que se enlaçavam como serpentes adormecidas. Cada passo era acompanhado pelo som dos nossos próprios corpos — o farfalhar das folhas, o estalar de galhos secos, e ao longe, o som grave de tambores rituais vindos da vila, ecoando como um lembrete constante de que aquele lugar estava sempre vivo.

    Essa camada… é imensa.

    Maior do que qualquer uma que já tenhamos visto. Um mundo inteiro escondido abaixo da superfície. Leva dois meses de caminhada para ir de Kura’ru até uma das bordas, e isso se nenhum imprevisto acontecer. Agora imagine atravessar de ponta a ponta. É como tentar cortar um os céus.

    Durante os primeiros dias aqui, fomos bombardeados com perguntas. Os anciões, os jovens, até as crianças se aproximavam com curiosidade feroz. Queriam saber tudo: como funcionava nossa política, significava a palavras sobre tudo.

    Claro que eu não contei tudo. Mantive alguns segredos. Mas a recíproca foi verdadeira. Eles também não entregaram tudo de imediato.

    Foi assim que descobrimos que três tribos dominam essa camada colossal:

    Kura’ru, onde estamos agora — a maior, mais estruturada, e com um sistema quase militarizado.

    Marezza, a tribo da água, que vive às margens do grande rio serpenteante que corta a floresta como uma veia viva. São comerciantes, pescadores, e os melhores navegadores que essa camada já viu.

    E por fim, a Tribo do Sol Branco.

    A mais distante. A mais silenciosa. E, sem dúvida, a mais temida.

    Pouco se sabe sobre eles. Vivem perto do centro da camada, onde o terreno é instável e dizem que o próprio chão brilha em certos dias. A devoção deles ao Sol é quase religiosa — e isso não é força de expressão.

    Conta-se que há mais de dois mil anos, um ser caiu do céu. Uma bola vermelha flamejante que rasgou os céus como uma lança divina. Onde ele caiu… ergueu-se a vila da Tribo do Sol Branco.

    Desde então, o Sol — ou melhor, o Sol vermelho — passou a ser visto como algo sagrado.

    Não apenas uma estrela.

    Mas um símbolo.

    Uma lembrança viva de que algo divino atravessou os céus… e caiu.

    E talvez, só talvez, ainda esteja vivo, em algum lugar abaixo de tudo.

    Já havíamos caminhado por horas sob a copa das árvores altas e entrelaçadas, onde a luz filtrava em tons rubros pelas folhas avermelhadas que dançavam com o vento. Cada passo estalava sobre raízes grossas e musgos úmidos, enquanto o som das folhas sussurrava como uma canção antiga, quase hipnótica.

    Foi então que Marcellia parou subitamente.

    — Vamos nos separar. — disse, a voz seca, os olhos evitando encontrar os nossos. — Você e o Seruus pegam as flores da Rara… e eu e o Cedric vamos atrás do… — ela hesitou, a vergonha tingindo suas bochechas — do lobo laranja.

    Cedric soltou um animado “beleza!” e deu um tapinha leve no ombro dela. Marcellia quase pulou com o toque, engolindo o desconforto com um pigarro mal disfarçado.

    — Por mim, tudo certo. — respondi com naturalidade, enquanto Seruus apenas assentiu com a cabeça, calmo como sempre.

    Nos separamos logo depois, e eu segui com Seruus, mergulhando ainda mais fundo no interior da floresta.

    O silêncio entre nós durou alguns minutos, até que ele, em tom calmo e reflexivo, quebrou o ar sereno:

    — Já faz quatro anos que está aqui, Ly… — murmurou, olhando as raízes retorcidas que se projetavam do solo como veias de pedra viva. — Passou rápido, né? Não sente vontade de voltar?

    A pergunta era direta. E doía como uma lâmina afiada.

    Fiquei em silêncio por um tempo. O peso da resposta repousava no fundo da garganta.

    — Se eu disser que não… estou mentindo. — falei enfim, com a voz baixa. — Deixei minha esposa. E minha filha. Ela deve estar com uns dez anos agora…

    Olhei para o bracelete de couro amarrado firme ao meu pulso. No centro, um cristal opaco, com rachaduras finas, mas ainda pulsando com uma memória tênue.

    — Fui pai meio novo… — continuei. — Mas… eu sei que elas estão bem. Guardo esse cristal desde então. É tudo que me restou delas.

    Seruus parou, surpreso, e me encarou com olhos arregalados.

    — Mulher e filha? — murmurou, pasmo. — Caraca… você parece tão novo. Nunca imaginaria isso de você.

    — É, bom… o mundo lá de cima força a gente a crescer mais cedo do que devia. — murmurei, desviando o olhar.

    Ele ficou quieto por um momento. Seu olhar, antes calmo, assumiu uma sombra melancólica.

    — Eu te entendo. — disse por fim, num tom baixo, quase sussurrado. — Minha tribo foi completamente massacrada… antes de eu chegar aqui. Levaram tudo o que eu tinha.

    O silêncio que se seguiu não era desconfortável. Era… solidário. Um silêncio que dizia: “Eu também.”

    Seguimos em frente até que o som das folhas deu lugar ao suave rugido da água.

    Chegamos à cachoeira Marezza.

    O cenário parecia saído de uma pintura. O rio caía em queda livre sobre pedras negras cobertas por musgo brilhante, e lírios azuis flutuavam sobre a superfície como estrelas tranquilas, cintilando à luz avermelhada que atravessava a névoa. A água era tão límpida que refletia o céu carmesim como um espelho líquido.

    Seruus se abaixou com cuidado, colhendo os lírios com delicadeza, como se cada flor tivesse alma própria.

    Eu apenas observei, absorvido pela beleza do lugar.

    Até que—

    Crac.

    Um estalo cortante quebrou a harmonia do ambiente — o som de gelo se formando no ar.

    Me virei por instinto.

    Zuun! Zuun!

    Duas lanças de gelo passaram rente ao meu rosto, tão rápidas e precisas que cortaram o ar com um assobio afiado. Elas se fincaram no chão, congelando a grama em volta, o frio se espalhando como uma praga silenciosa.

    — O que estão fazendo na propriedade dos Marezza? — uma voz soou, fria e imponente.

    Das sombras úmidas próximas à margem do rio, surgiu ele.

    A primeira impressão era como encarar o abismo gelado do oceano profundo.

    Sua pele escura brilhava sob a névoa como maré molhada. Os olhos, de um azul vívido, quase fluorescente, encaravam com uma calma gélida, como se avaliassem minha existência inteira em segundos. Os cabelos, brancos como espuma de mar quebrando, caíam com elegância sobre o rosto marcado por piercings de prata e linhas tribais metálicas.

    Seu traje, com detalhes dourados e azuis, era fino, quase cerimonial. Havia nobreza ali… mas uma nobreza que cortava. Como uma lâmina envolta em seda.

    E Seruus?

    Continuou colhendo os lírios. Como se nada tivesse acontecido. Como se aquele ser não estivesse prestes a nos congelar vivos.

    As lanças de gelo começaram a se formar ao redor do garoto novamente, flutuando como dentes afiados de alguma criatura marinha invisível.

    Minha mão foi instintivamente em direção ao meu cristal de pulso, e a luz começou a pulsar lentamente em minha palma.

    Mas antes que qualquer coisa acontecesse…

    PÁ!

    Um chute voou como um raio, acertando em cheio a lateral da cabeça do garoto.

    O impacto o lançou para o lado como um boneco de pano, girando no ar antes de despencar na grama úmida.

    — O que você pensa que está fazendo, seu bastardo!? — uma voz soou com doçura disfarçada, mas carregando veneno em cada sílaba. — Quer começar uma guerra entre as tribos, é isso!?

    A figura surgiu diante de mim, ofegante, com as mãos na cintura.

    Ela irradiava presença.

    Pele morena clara e bem tratada, olhos azul-claros tão intensos que pareciam feitos de cristal líquido.
    Seus cabelos, escuros e cortados na altura dos ombros, balançavam suavemente com o vento da floresta.
    Vestia roupas brancas e prateadas que refletiam a luz da cachoeira, e, no lado da cabeça, uma flor branca — provavelmente de algum tipo sagrado — completava o visual.

    Ela me encarou.

    Direto nos olhos.

    E meu corpo… travou.

    — Me desculpe pelo meu irmão mais novo. — disse, com firmeza, mas genuína sinceridade. — Ele quase não sai do palácio. E… bom, como foi criado pelo nosso avô, herdou essa mentalidade podre de superioridade tribal.

    — Tá tranquilo. — respondi, tentando manter o tom calmo, mesmo que meu coração ainda estivesse batendo no ritmo das lanças de gelo. — Nada que me mate.

    Ela sorriu de leve, como se ponderasse entre agradecer ou pedir desculpas novamente.

    — Meu nome é Mirassol Marezza. — disse, curvando levemente a cabeça em respeito. — E aquele pirralho congelador ali é o Yuri Marezza, infelizmente meu irmão.

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