Capítulo 33: A beleza do abismo
O tal Yuri, com o rosto marcado por arranhões e os olhos ainda fervendo de raiva, se levantava devagar, como quem tentava desesperadamente resgatar a própria dignidade que tinha sido esmagada.
— Estamos indo até Kura’ru. — continuou Mirassol, desviando o olhar na direção da cachoeira. — Paramos aqui só pra beber um pouco de água e…
Ela parou no meio da frase. Os ombros enrijeceram. Os olhos arregalaram.
— Seruus…? — murmurou, com uma mistura de surpresa e incredulidade na voz.
Seruus ainda estava agachado, segurando com leveza um buquê improvisado de lírios azuis recém-colhidos. Ele ergueu os olhos lentamente, sem emoção, como se estivesse apenas despertando de um devaneio.
— Eu mesmo. — respondeu com o tom relaxado de sempre, carregado de preguiça e uma pitada de deboche. — Que coincidência, hein, Mirassol?
Ela hesitou por um instante. Depois sorriu de canto, mas não era um sorriso comum — era o tipo de expressão que carregava memórias antigas e não ditas. Algo que pairava entre o carinho e a desconfiança.
Pela primeira vez, vi de perto alguém da tribo Marezza.
E, sinceramente, era estranho.
Não só porque os membros da Marezza raramente saíam de seus domínios — quase nunca, segundo os relatos — mas porque havia uma presença peculiar neles. Uma calma aquática, algo que parecia vibrar de forma silenciosa sob a pele.
Havia se passado cerca de dez anos desde o tratado de paz entre as três grandes tribos. O último líder da Marezza tinha morrido envenenado, e o atual chefe era um homem chamado Hyfrd Marezza. Só o nome já parecia um feitiço travado na garganta. Nunca consegui pronunciá-lo sem parecer um idiota.
Antes que a conversa pudesse se desenvolver, um estrondo violentíssimo cortou o ar como um trovão rasgando o céu.
CRAAAAAASH!
Um enxame de aves disparou do alto das árvores, alvoroçadas. Meus músculos se retesaram na mesma hora.
Eu soube.
— Cedric… — murmurei, os olhos se voltando automaticamente para o topo da cachoeira.
Lá em cima, entre a vegetação densa e as copas altas, Cedric corria com uma agilidade absurda, saltando sobre raízes, se esgueirando por entre os troncos, desviando dos galhos como se a floresta fosse sua casa.
Atrás dele, um rugido monstruoso ecoava.
Um lobo laranja descomunal, com a pelagem como brasas pulsantes e olhos demais no rosto — quatro, dois acima e dois abaixo, todos brilhando com um ódio predador que não piscava.
A criatura avançava como uma avalanche viva, esmagando árvores e abrindo clareiras à força pura, como se o mundo à sua frente fosse frágil demais para existir.
— Droga… deixei a rapieira com a bolsa. — grunhiu Cedric entre os dentes, sacando uma espada simples e estreita da cintura. — Vai ter que ser essa mesmo.
O monstro saltou.
A boca aberta, fendas negras entre dentes serrilhados.
Mas Cedric girou no ar com uma leveza quase dançante, lançando com a mão livre finos fios de aço prateado, que brilharam ao cruzar o espaço.
As linhas atingiram a boca do lobo.
CLAC! CRAAACK!
Dentes e gengivas foram rasgados com estalos secos. Sangue fervente espirrou como vapor rubro.
— Agora, Marcellia! — gritou.
E como se invocada pelo próprio momento, ela apareceu.
Marcellia.
Do alto de um galho robusto, entre as sombras, ela se projetava com a postura de uma guerreira treinada, pés firmes e expressão serena. Os olhos fechados, concentrando a respiração.
O hakama cerimonial ondulava com o vento.
As mãos repousavam delicadamente sobre o cabo da katana.
Num gesto calmo, quase reverente, ela puxou a lâmina.
ZUUUUUN!
Um único movimento.
Um único corte.
O som do ar sendo partido soou como o lamento de um espírito cortado ao meio. Árvores atrás da fera tombaram, fatiadas limpas. A lâmina cortara não apenas a carne — mas a própria paisagem.
O lobo gritou de dor, tropeçando para o lado. Um rasgo imenso no flanco deixava à mostra carne viva e costelas quebradas. Pelo e sangue esvoaçavam.
Mas ela ainda não tinha terminado.
Marcellia embainhou a primeira katana…
E, com uma respiração mais profunda, puxou a segunda.
Uma lâmina negra como noite líquida, vibrando levemente, como se ressoasse com o tempo ao redor.
— Chronotrax Bellator… — murmurou. A voz suave. O olhar fixo. O tempo pareceu hesitar.
Ela se lançou.
Um segundo golpe.
Silencioso. Cirúrgico. Letal.
A lâmina negra passou como um sussurro.
E então…
A metade superior da cabeça do lobo — olhos, focinho, crânio — escorregou para longe, como se tivesse sido cortada por um fio de luz. O restante do corpo caiu logo depois, desabando no chão como um prédio em ruínas.
A floresta parou.
O vento cessou.
Até o Sol, por um instante, pareceu respeitar o silêncio.
Cedric aterrissou ao lado dela, suado, com um corte leve no rosto e um sorriso maroto nos lábios.
— Você podia ter feito isso antes, sabia? — falou, ainda ofegante, mas rindo.
Marcellia girou a katana antes de embainhá-la com elegância. O rubor tomou seu rosto, mas ela manteve a pose.
— Eu queria ver se você aguentava um pouco de pressão. — disse, desviando o olhar, tentando parecer indiferente… mas com um brilho divertido no fundo dos olhos.
Após o fim da caçada, com os lírios em mãos e a poeira da batalha ainda assentando nos nossos corpos, nos encontramos com o grupo da tribo Marezza.
Mirassol vinha na dianteira, com a cabeça erguida e a expressão firme de quem carrega uma linhagem inteira sobre os ombros. Atrás dela, seu irmão Yuri caminhava como se cada passo fosse um desafio silencioso ao mundo. Eles eram seguidos por um pequeno grupo de guardas — homens e mulheres de aparência impecável, vestindo túnicas longas em tons de azul profundo e branco perolado, com bordados que imitavam ondas e correntes d’água em movimento.
A caminho de Kura’ru, o silêncio era espesso. Não por falta de palavras, mas pelo peso delas. Era o tipo de silêncio que antecede tempestades ou reconciliações difíceis.
Assim que cruzamos os portões naturais da aldeia — dois troncos retorcidos que se uniam no topo como as mandíbulas de um animal antigo — os olhares começaram.
Sentimos as pupilas cravando-se em nós. Como agulhas.
Curiosidade.
Desconfiança.
Julgamento.
O tratado de paz entre Marezza e Kura’ru completava exatos dez anos, mas a história não esquece tão fácil. Estava nos olhos endurecidos dos mais velhos e na cautela aflita dos mais jovens.
Mirassol não demonstrava nada. Seus passos eram constantes, seu olhar diplomático cortava o caminho à frente como uma flecha reta. Já Yuri… bem, Yuri caminhava como se desejasse que alguém o provocasse. O maxilar travado, os olhos semicerrados, e a mão próxima demais ao cabo da adaga.
Os guardas mantinham a formação, mas seus olhares percorriam os arredores com atenção de predadores. Eram todos de pele morena dourada, com cabelos em tons claros: branco, loiro, castanho pálido — como se o reflexo da luz da água tivesse se entranhado neles.
Enquanto atravessávamos a vila, uma mudança me chamou atenção.
Havia cor, som, cheiro. Um pulsar vibrante.
Torres de madeira estavam sendo erguidas por jovens que riam entre uma martelada e outra, e fios de papel colorido desciam das janelas das casas. Crianças com fitas vermelhas nos pulsos corriam entre barracas sendo montadas, rindo, chutando bolinhas de couro com entusiasmo.
— Festival da Lua Vermelha… — murmurou Cedric ao meu lado, com os olhos arregalados.
Pra nós, aquilo era quase surreal. Nas camadas neutras, não havia lua — só um céu pálido e estático, como uma tela inacabada. Mas aqui… a lua não era apenas uma esfera no céu. Era um deus. Um presságio. Uma bênção. A cada seis meses, ela tingia-se de vermelho, e os moradores celebravam como se o mundo tivesse sido recriado.
O ar carregava o cheiro de frutas cristalizadas, carnes defumadas, e especiarias doces. Até o vento parecia mais quente, mais vivo. Tudo naquela vila pulsava com um senso de propósito.
Pouco antes de chegarmos ao palácio, Seruus se despediu com um aceno preguiçoso.
— Vou pra casa da Rara. Boa sorte com os velhos resmungões.
Ele se afastou pelas vielas estreitas sem olhar para trás. Engraçado… no mundo de cima, os Rankeadores eram distantes, como se cada gesto deles fosse uma programação calculada. Já Rara… era o oposto disso. Um furacão de emoções contidas, intensas, imprevisíveis.
Marcellia, por outro lado, apenas sumiu. Pegou o corpo do lobo abatido e desapareceu sem dizer uma palavra. Dava pra sentir a irritação estampada nos ombros tensos e no silêncio ríspido que ela deixava no ar.
E então, finalmente, adentramos o palácio.
O interior era um contraste entre austeridade e beleza. Serviçais se moviam com uma graciosidade silenciosa pelos corredores. Suas vestes de linho fino, adornadas com metais leves e polidos, lembravam a realeza das camadas superiores — mas aqui não havia arrogância. Havia harmonia. Um senso de que todos, nobres ou não, compartilhavam um mesmo chão.
Subimos uma escadaria larga de pedra avermelhada, e logo fomos guiados até a Sala do Conselho.
O salão era imenso, com o teto sustentado por colunas vivas — sim, vivas. Trepadeiras envolviam cada pilar, florescendo em pequenas pétalas rubras mesmo sem luz solar. O ar ali dentro era fresco, perfumado por natureza viva, e ao mesmo tempo, denso de tensão.
No centro, uma longa mesa de madeira polida, da cor de sangue seco. Ela refletia a luz das tochas suspensas nas paredes com um brilho sombrio. Ao redor, os conselheiros já estavam sentados, como estátuas de carne esperando para julgar.
As empregadas, com cabelos de cores exóticas — verde-menta, azul profundo, lilás suave — mantinham-se nas sombras dos cantos, imóveis como pinturas vivas. A elegância delas era silenciosa, quase invisível.
Os conselheiros formavam um mosaico de sabedoria e autoridade.
Um deles, calvo e de barba branca longa, enrolada em fios finíssimos, possuía olhos miúdos mas agudos como lâminas. Outro, com cabelos lisos que caíam até o peito, tinha o rosto liso e inexpressivo, como uma estátua de marfim. Uma terceira, com rugas fundas e mãos frágeis, exalava serenidade. Era uma beleza que não dependia de juventude — ela estava nos olhos, no jeito de respirar, de olhar.
Todos eram de pele morena, filhos da terra de Kura’ru.
Somente eu e Cedric destoávamos ali. Dois estrangeiros, quase lendas vivas.
Mirassol e Yuri se sentaram lado a lado. Os olhos à volta — alguns discretos, outros descarados — os crivavam de julgamento.
O silêncio se prolongou até que o homem da barba enrolada inclinou-se levemente à frente.
— Estamos apenas aguardando o chefe Aruan… — disse ele, a voz grave, como se falasse de dentro de um poço. — Imagino que vocês… não tenham pressa com esse tipo de coisa. Certo?
A ironia era nítida. Mas Mirassol sorriu com a elegância que vinha do sangue nobre. Um sorriso treinado para enfrentar lâminas com palavras.
— Nenhuma pressa. — respondeu, com uma calma quase provocadora. — Estou aqui como representante do meu pai. E como tal, espero que esse encontro seja conduzido com respeito… e clareza.
O salão permaneceu em silêncio por mais alguns segundos, mas naquele breve instante… algo mudou.
Um jogo havia começado.
E cada palavra, dali em diante, seria uma peça no tabuleiro.
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