Capítulo 34: O espetáculo
Acara Achlys.
Mesmo sem entender muito de hierarquias complexas, de cerimônias antigas ou de política, eu sabia quem ela era. Qualquer um com sangue roxo nas veias sabia.
Era a líder do meu clã.
A mulher que controlava as sombras de Vanaheim. A “Lâmina da Noite”.
E agora…
Ela queria falar comigo. Comigo. Um ninguém da Camada 5.
Minha garganta secou instantaneamente, como se eu tivesse engolido areia do deserto.
Minhas pernas, que aguentaram chutes de veteranos, ficaram bambas.
O corredor ao redor parecia ter sido sugado para um vácuo onde só existíamos nós dois.
E naquele instante, uma coisa ficou clara como cristal quebrado:
Meu mundo acabava de ficar muito mais sério. E muito mais perigoso.
Enquanto isso, na Arena 1…
Com a saída repentina e misteriosa de Cael, o Observador de Lutas oficial, o clima na arena mudou sutilmente. A pressão da vela sagrada sumiu, substituída por uma autoridade burocrática e fria.
Quem estava ali agora era o Vice-Diretor Hizu Jorney. Ele observava os combates com os olhos azuis semicerrados por trás dos óculos e os braços cruzados, uma estátua de eficiência.
Ele se virou para Ren Tianyū, que estava próximo, encostado numa coluna, analisando os lutadores como se pudesse ver através das suas almas e achasse tudo levemente entediante.
— Professor Ren. — chamou Hizu, a voz firme como aço frio. — Pode assumir como Observador Temporário? Preciso ir até minha sala por um momento. Assuntos administrativos urgentes.
Ren desencostou da coluna, ajeitando o quimono preto.
— Tranquilo. — respondeu ele, com seu tom calmo e quase preguiçoso, os olhos de brasa ainda fixos na arena. — Vá. Eu cuido das crianças.
Sem dizer mais nada, Hizu se afastou, a longa capa negra com listras arrastando levemente no chão de mármore liso. Cada passo seu ecoava como um lembrete de que a burocracia da academia escondia segredos mais profundos do que qualquer exame.
Enquanto isso, na Arena 2…
O palco principal.
Solara Whitmore adentrou o campo.
Sua presença era incandescente. Cabelos dourados soltos chicoteavam o ar, sua aura era uma fornalha aberta, e seus passos firmes deixavam marcas invisíveis de autoridade no chão. Ela era o Sol.
Mas foi a figura que surgiu do outro lado que fez a plateia prender a respiração coletiva.
Kaira Misticia Ilyssan.
A Rank A-1. A Imperatriz de Jade.
A mais forte do Quarto Ano.
Sua postura era impecável, reta e afiada como a lâmina que carregava na cintura.
Cabelos longos num tom raro de cobre-rosado, soltos e selvagens, desafiavam as tradições rígidas de contenção do próprio Clã Misticia. O hakama branco cerimonial, com o antigo brasão da família bordado em fio de ouro nas mangas largas, ondulava com o vento, parecendo uma bandeira de guerra antes da batalha.
As sandálias de base elevada a tornavam ainda mais alta e imponente, mas o que realmente cortava o ar era o olhar.
Olhos frios. Analíticos. Olhos que mediam a distância, o peso e o valor da vida de cada pessoa ao redor como se fossem alvos num estande de tiro.
Ela não exibia curvas ou delicadezas. Seu corpo era firme, esguio e objetivo. Uma arma forjada em carne.
E sua presença… era quase sobre-humana.
Do lado de fora da arena, escondida na multidão, Mina Mei assistia a tudo de longe.
Mas sua mente estava em outro lugar. Não na luta lendária. Não na prima poderosa.
— Será que eu devo falar com o Ken…? — pensou ela, mordendo o lábio. — Maria disse que ele pode achar que eu o odeio…
Ela apertou os punhos, amassando o tecido do vestido. A indecisão pesava. Mas então, algo se acendeu em seus olhos escuros. Uma chama de teimosia.
— Cansei de esperar. — sussurrou para si mesma. — Vou até ele. E vou vê-lo lutar, quer ele queira ou não.
Ela girou e correu contra o fluxo, procurando o garoto do olho rosa.
No corredor deserto…
A movimentação tinha cessado. O fluxo de alunos correndo para a Arena 2 já havia passado como uma maré, deixando o espaço vazio e silencioso.
Silêncio.
E foi ali que ela estava.
Acara Achlys.
Como se o tempo ao redor tivesse parado só para ela existir.
— Vou ser direta, sem formalidades. — disse Acara. A voz dela não era alta, mas cortava o ar como uma sentença de morte. — Eu não tenho paciência para etiquetas.
Ela deu um passo à frente. A pressão aumentou.
— Você vai sair da Academia Fjorheim. Agora.
— E vai vir comigo. Vamos para as Camadas Superiores. Eu vou te treinar pessoalmente.
Eu abri a boca para perguntar “por quê?”, mas a voz morreu.
— Você está no meio de uma guerra invisível, garoto… — continuou ela, os olhos roxos perfurando minha mente. — E parece que você é a chave dela. Ou o alvo.
Ela se virou de lado, e o manto dela se abriu levemente.
A bainha em sua cintura se revelou. Uma espada elegante, negra, repousava silenciosa ali.
— Você tem uma adaga, certo? — perguntou ela. — Preta e vermelha. Aquela que seu mestre disse que corta tudo o que você “acredita” que pode ser cortado.
Meus olhos se arregalaram. O coração bateu na garganta.
Ela sabia. Sabia de tudo.
Acara assentiu, lendo meu pânico como um livro aberto.
— Essa lâmina é uma das Gêmeas de Silvit. — explicou ela, a voz baixando para um tom reverente e perigoso. — Forjadas pela antiga Rank 1, Julia Silvit, com o metal de uma estrela morta. A sua é a segunda, a Lâmina Voraz.
— Ela tocou a bainha em sua cintura com a ponta dos dedos pálidos. — A primeira… a Lâmina Soberana… está aqui comigo.
Ela me encarou.
— A sua foi roubada há dezesseis anos. Pela sua mãe.
Dezesseis anos. A minha idade.
O mundo girou.
— Eu até deixaria você terminar o exame, brincar de estudante… — disse Acara, virando-se de volta para mim, a expressão endurecendo. — Mas tem algo mais urgente. Surgiram demônios… na Camada 10. Demônios organizados. E isso me deixou… inquieta.
Tudo estava indo rápido demais. Uma avalanche de revelações, ordens e perigos.
Eu não podia simplesmente aceitar. Eu tinha amigos aqui. Tinha o exame. Tinha a Mina.
Mas não tive tempo nem de responder.
Arena 2.
O inferno estava prestes a começar.
O professor responsável, Ative, que também servia como Observador daquela arena, levantou a mão para o céu cinzento.
— Podem começar!
O som da multidão sumiu por um instante. O mundo prendeu a respiração.
Kaira puxou sua katana.
O som do aço saindo da bainha foi límpido, perfeito. SHING.
Os olhos dela fixaram-se em Solara com precisão mortal.
Solara também se moveu. A mão deslizou para a bainha presa à lateral de sua roupa, as chamas começando a lamber o ar ao seu redor.
O choque seria épico. O Rank 1 contra o Rank 1.
Mas então…
O ar mudou.
Não ficou frio. Não ficou quente.
Ficou doente.
Uma aura vermelha, viscosa e sufocante tomou conta da arena como uma névoa assassina feita de sangue vaporizado.
O cheiro de ferro e desejo preencheu o estádio.
Kaira e Solara, as duas mais fortes, recuaram instintivamente.
Saltaram para trás, as armas em guarda, como se tivessem sentido o bafo da Morte no pescoço.
— Hihihihihihi…
A risada surgiu do nada.
Aguda. Suja. Cruel. E vibrante de êxtase.
— Ora, ora… que peninha! — A voz ecoou, vinda de cima, de baixo, de dentro da cabeça de todos. — Eu queria que vocês tivessem continuado… para me perfurar e arrancar meus órgãos… me rasgar inteirinha! Ah, eu iria gozar tanto com isso!
E então… ela apareceu.
No centro da arena, entre as duas guerreiras.
Ela possuía uma beleza que incomodava, que revirava o estômago.
Seu corpo era esguio, quase etéreo, com membros longos demais, como se pertencesse a outro plano de existência onde a anatomia é opcional.
Os cabelos eram num tom lavanda pálido, caindo em ondas estranhas com as pontas viradas para cima, desafiando a gravidade, como se dançassem com uma vontade própria e maníaca.
Na testa, dois chifres rubros se curvavam para a frente como ganchos de açougueiro, com um brilho cintilante e úmido que parecia pulsar com sangue vivo. Suas orelhas eram finas e longas, élficas, mas com pontas azuladas e retorcidas.
A pele era extremamente pálida, quase translúcida — e cheia de marcas sutis, linhas finas que pareciam cicatrizes cirúrgicas fechadas há muito tempo, formando um mapa de dor no corpo dela.
Vestia-se com um vestido negro colado, feito de tiras e cortes, cheio de aberturas nas laterais e detalhes rendados que expunham a pele pálida de forma provocativa e perturbadora. As pernas, cobertas por meias até as coxas, completavam um visual que misturava sensualidade agressiva com decadência absoluta.
Seu sorriso era constante. Mas nunca alegre.
Era um sorriso ansioso, trêmulo, com a boca aberta demais. Como se ela estivesse sempre à beira de rir histericamente ou chorar de prazer.
Ela olhou para a plateia aterrorizada.
Não era um olhar de conquista.
Era o olhar de alguém que vive no limiar entre o orgasmo e a agonia.
— Muito prazer a todos… — disse ela. A voz aguda tremia de ansiedade, os olhos azuis brilhando como brasas molhadas. — Eu sou VIXI XVII…
Ela abriu os braços, as unhas longas arranhando o ar.
— …E hoje serei a comandante desse espetáculo de carne!
Ela se curvou levemente, o rosto corado, suando, como se estivesse prestes a desmaiar de excitação.
— Muito prazer… mesmo. Hihihi!
E então, o céu da academia escureceu.
O exame tinha acabado.
A caçada tinha começado.
VIXI XVII ergueu os braços lentamente, de forma teatral, como uma marionete quebrada apresentando o início de um show de horrores.
A aura ao redor dela não apenas brilhava; ela vibrava, um campo estático carregado de loucura que fazia os dentes de quem estava perto doerem.
Seus dedos, longos e pálidos, percorreram seu próprio corpo — começando pelo pescoço, arranhando levemente a pele, deslizando pelo peito, descendo pela barriga nua até parar entre as pernas.
Ela estava ofegante. Suada.
— Que delícia… — sussurrou ela, a voz tremendo num fio entre o prazer sexual e a demência assassina. — O cheiro do medo de vocês… me deixa molhada.
Solara, que até então observava com nojo e fúria, não esperou mais.
Ela puxou sua espada.
SHING.
Imediatamente, uma explosão de chamas douradas tomou o campo. Não era fogo comum; era fogo solar, denso, que derretia o concreto sob suas botas.
— Abençoada pelo Sol, hein? — disse VIXI, inclinando a cabeça num ângulo não natural, os olhos azuis brilhando de desejo macabro. — Vamos ver se você queima por dentro também.
Solara avançou. Um rastro de luz. Pronta para um golpe cortante e direto que decapitaria a aberração.
Mas, no instante em que a lâmina dourada ia tocar a pele pálida…
O braço direito de VIXI explodiu.
Não houve sangue, houve mutação. A carne se rasgou, os ossos se expandiram e escureceram. Em milésimos de segundo, o braço delicado tornou-se um martelo grotesco, com o cabo feito de correntes negras e músculos trançados, tilintando como ossos se arrastando no inferno.
BOOM.
O impacto foi seco. Brutal. Tectônico.
Solara foi interceptada no ar. Ela voou para trás como uma boneca desmembrada, o corpo atravessando o chão da arena, quicando e abrindo uma trilha de destruição até bater na mureta oposta.
VIXI estalou o pescoço. Ela soltou um gemido grave, gutural, quando o braço-martelo começou a se desfazer e voltar ao normal.
A carne brotava como vermes saindo da terra, músculos se reformando em espasmos pulsantes, nervos trançando-se num espetáculo biológico grotesco.
— Ahhh… — Ela estremeceu, os olhos revirando. — Isso me dá tanto tesão… essa dor… essa quebra… que coisa maravilhosa, não é?
Ela se virou lentamente para Kaira.
A “Imperatriz de Jade” sentiu um calafrio.
Não de medo. Kaira não sentia medo.
Mas de repulsa absoluta. Como se estivesse diante de uma doença em forma humana.
VIXI lambeu os dentes afiados como um predador ansioso — os olhos famintos presos na espadachim.
Kaira respirou fundo, fechou a guarda e avançou com precisão cirúrgica.
Mas VIXI puxou as correntes negras que saíam de suas costas com força. O martelo (agora materializado na outra mão) rodopiou em um arco imprevisível e caótico.
Kaira desviava, fluida como água, a lâmina raspando o metal negro, até que…
O martelo desceu.
Rápido demais. Pesado demais.
Direto na cabeça de Kaira.
Mas um raio dourado cruzou a arena.
Um som de trovão.
Ative.
O professor de Velocidade apareceu no último milésimo de segundo. Ele empurrou Kaira para fora da zona de impacto.
Mas o preço foi cobrado.
CRUNCH.
Ele interceptou o golpe com o próprio corpo.
O braço direito dele… sumiu.
Esmagado. Pulverizado. Arrancado do ombro numa explosão de sangue e osso moído.
A arena estremeceu com o impacto no chão.
— HAHAHAHAHAHAHA! — VIXI gargalhou, jogando a cabeça para trás, o sangue de Ative respingando no rosto dela. — Por que salvou a garota? Que desperdício! Parabéns, heroizinho! Me conta… como é a dor? Hein? Está excitado? Eu estou!
Ative caiu de joelhos, o rosto pálido, sujo de sangue, a respiração irregular e chiada.
O mundo girava. O toco do braço pulsava uma agonia que ele nunca imaginou existir.
Mas ele a fitou com os olhos semiabertos, entre os fios castanhos colados de suor.
— Dói pra caralho, sua maldita… — cuspiu ele, tentando se levantar. — Mas eu vou te matar aqui. E…
— Mas… que merda.
A voz não veio de VIXI.
Não veio da plateia.
Veio do outro lado da arena.
Era uma voz baixa, grave, arrastada. Ecoou como um trovão abafado por camadas de algodão e desprezo.
Todos viraram ao mesmo tempo. O riso de VIXI morreu.
Um homem havia aparecido no centro da quadra.
Ninguém o viu entrar.
Alto. Impecável.
Trajava um terno escuro de corte clássico, perfeitamente ajustado, com um colete que não tinha uma única ruga. A gravata estava milimetricamente posicionada.
O cabelo escorria até os ombros, liso e pesado, numa cor incomum: azul-petróleo, brilhando como tinta fresca escorrendo por porcelana.
A pele era pálida. Não a palidez doentia de VIXI, mas a palidez aristocrática de quem nunca foi tocado pelo sol ou pela pressa do mundo.
E o rosto…
Era a definição de apatia.
Um olho esquerdo de um azul profundo — sereno, mas com a profundidade de uma fossa oceânica.
O olho direito, cinza opaco, estava quase fechado, como se abrir a pálpebra fosse um esforço monumental.
Um desgosto constante e silencioso emanava dele, como se cada segundo de existência fosse um aborrecimento burocrático que ele tolerava por pura obrigação.
A pressão mudou.
O ar ficou pesado. Denso. Gravitacional.
Ative, que tentava se levantar, arregalou os olhos.
O corpo dele congelou. Não de medo. De peso.
O estranho virou-se lentamente na direção do professor ferido. Ele abriu o olho azul só um milímetro a mais.
— Você tem alguma habilidade de velocidade, né? — perguntou o homem. A voz era monótona, sem vida. — Só de olhar para você correndo… já fico cansado. Que desperdício de calorias.
Ative não conseguia se mover.
Seus pulmões pareciam cheios de chumbo. O ar ao redor de seus membros transformou-se em concreto invisível.
Era a aura do Pecado. A Preguiça que contagiava a alma.
Mas ele viu, pelo canto do olho.
Os alunos na arquibancada começaram a correr, gritando. O pânico se instalou.
“Pelo menos eles vão ficar a salvo… os professores vão…” pensou Ative.
Ele tentou. Uma faísca elétrica percorreu seu corpo mutilado. Ele ia atacar.
Mas antes que pudesse dar um passo…
— Odeio falar meu nome… dá preguiça. É longo demais. — disse o homem, soltando um suspiro longo e exausto. — Mas morrer por alguém que você nem sabe o nome… acho mais deprimente ainda. Falta de etiqueta.
Ele esticou a mão enluvada para o lado.
Na palma, revelou uma pedra.
Não era uma joia. Era um pedaço de minério bruto, brilhando com uma luz vermelha e pulsante, como um coração podre arrancado da terra.
— Somnum Mortalis Desidia XIV. — falou ele.
Ele não gritou o nome como um ataque. Ele o disse como quem avisa que vai trocar o canal da televisão porque o programa está chato.
E soltou a pedra.
Click.
O som dela batendo no chão foi ridículo. Pequeno.
Mas quando ela quebrou…
Uma rachadura vermelha se espalhou pelo chão da arena. Rápida. Violenta. Como uma flor de sangue abrindo em câmera acelerada. O concreto gritou.
E então… o inferno explodiu de baixo para cima.
Mãos.
Garras. Chifres.
Demônios. Monstros. Aberrações que pareciam saídas de pesadelos febris começaram a surgir de dentro da rachadura, rastejando uns sobre os outros, como se o próprio solo estivesse sangrando uma realidade distorcida e faminta.
Ative caiu de joelhos.
Não pela dor do braço.
Não pelo medo da morte.
Mas pela culpa. Pelo peso esmagador da presença de Somnum.
Sua vontade de lutar foi drenada.
— “Sou insignificante…”
Foi tudo o que ele conseguiu pensar, enquanto seus olhos perdiam o foco e o mundo desmoronava em gritos e sangue ao redor dele.
Somnum apenas assistia, com as mãos nos bolsos, parecendo entediado com o fim do mundo.

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