Não houve aviso. Nem movimento.

    Apenas uma repulsão violenta.

    VIXI foi arrancada de cima de mim como se a gravidade tivesse invertido. O corpo dela foi arremessado para trás, atravessando o ar do pátio externo, girando sem controle até colidir com a parede de pedra da Mansão Laranja.

    BAQUE.

    O som foi úmido. Carne contra pedra.
    Ela escorregou pela parede, deixando um rastro de sangue preto, e caiu no gramado sujo de poeira. O pescoço estava torto, a cabeça pendurada num ângulo que mataria qualquer coisa viva.

    Mas ela não estava viva do jeito certo.

    Crec. Tlac.

    Os ossos estalaram sozinhos. O pescoço girou, realinhando as vértebras com um som de galhos secos quebrando. Ela se levantou, os braços ainda desarticulados se encaixando nos ombros enquanto ela sorria, com os dentes sujos de vermelho.

    — Por isso… — a voz dela gorgolejou, engasgada com o próprio sangue. — Por isso você é o melhor…

    Eu me levantei.
    Não sentia minhas pernas. Não sentia o chão.
    Uma aura Rosa, densa e pesada como piche fervente, vazava do meu lado direito. Ela não iluminava; ela manchava o ar. Queimava meus órgãos, consumia minha racionalidade, transformava minha dor em combustível.

    A Lâmina Voraz na minha mão tremeu. O metal negro e vermelho respondeu à loucura. Ele se fundiu à aura, crescendo, pulsando, tornando-se uma extensão irregular e faminta do meu braço.


    No andar de cima, no corredor da Mansão Principal que dava para o pátio.

    Longe do sangue, Ellume Willians observava pela janela. O vidro refletia seu rosto infantil e pálido, iluminado pelo brilho rosa doentio lá fora.

    — A eclosão. — murmurou ela, o sorriso sereno contrastando com o inferno abaixo.

    Passos lentos soaram no tapete.
    Somnum vinha pelo corredor. O terno impecável agora tinha uma mancha escura na manga. Ele caminhava como se arrastasse correntes invisíveis.

    Ellume não se virou.
    — Já pegou o que queria?

    Somnum não respondeu. O esforço de falar parecia grande demais. O silêncio era sua concordância.

    — Os demônios… — continuou Ellume, a voz suave. — Foi um belo presente, não acha? Deu trabalho trazê-los da Camada -1 sem disparar os alarmes…

    Somnum soltou um suspiro exausto.
    — Facilitou encontrar a peça de Or’sea. Hizu estava ocupado morrendo.

    — E os dois do Clã da Escuridão? — Ellume inclinou a cabeça. — Não quis matá-los?

    Somnum olhou para a mancha de sangue na manga com desgosto.
    — Muito esforço.

    Foi então que a sombra no fim do corredor se moveu.

    Helena.
    A professora desleixada não estava mais lá. Havia apenas uma assassina.
    Os olhos dela brilhavam, e atrás de Somnum… outra Helena se materializou do ar.

    Não houve diálogo de vilão. Não houve risada.
    Apenas execução.

    VUP.

    Dois feixes de luz roxa cruzaram o corredor. Rápidos. Silenciosos. Letais.

    O primeiro atravessou Ellume na altura da cintura.
    O corpo do garota foi separado. A parte de cima deslizou para o lado, as pernas dobraram. O sangue jorrou no carpete bege.

    O segundo feixe mirou o pescoço de Somnum.
    Mas o Preguiça, num movimento mínimo de tédio, inclinou a cabeça.
    O corte rasgou seu braço, aprofundando a ferida. Ele olhou para o corte com leve surpresa, mas sem medo.

    A Helena da frente parou diante de Ellume. A de trás se desfez em fumaça.

    Helena olhou para o garota bissectado no chão. Seus órgãos expostos fumegavam.
    Ela retirou a mão do rosto. O olho direito dela brilhava num verde geométrico, girando como uma engrenagem complexa.

    — Eu avisei. — A voz dela era fria, desprovida da gentileza habitual. — Que iria te matar caso tentasse algo com ele.

    Ellume, no chão, tossiu uma poça de sangue. Ele olhou para cima, para o olho dela. E sorriu.

    — Impressionante… — sussurrou, a vida escapando. — Mesmo nesse corpo… de professora… você é assustadora, Inveja. Sempre achei… que você era a…

    A frase morreu.
    O corpo dela parou.
    E no instante final, a cor dos olhos dele mudou. O bege leitoso foi tomado por um Ciano elétrico.
    E então, apagou.

    Helena olhou para trás. Somnum já tinha sumido. Fugido da fadiga de uma luta real.
    Ela suspirou, caminhou até a janela e olhou para baixo. Para o pátio.
    Para mim.

    — Então começou… — disse ela.


    Lá embaixo, no pátio destruído.

    A transformação terminou.
    Eu não sentia mais a brisa. Não sentia o cheiro de queimado.
    Eu sorri.
    Um sorriso que rasgou meu rosto, torto, cruel, sem um pingo de humanidade.

    — Que prazer… — Minha voz saiu distorcida. — …será te matar.

    VIXI parou.
    Ela olhou para mim. E o rosto dela corou violentamente.
    Ela começou a tremer. As pernas se juntaram, se esfregando uma na outra. A respiração dela ficou curta, ofegante, num êxtase obsceno.

    — ISSO! — guinchou ela, os olhos esbugalhados, as pupilas dilatadas engolindo o azul. — OLHA PARA VOCÊ!

    Ela levou as mãos ao próprio rosto, arranhando as bochechas.

    — Isso me dá tanto tesão… Eu podia… ah… mas eu preciso retribuir.

    O sorriso dela sumiu, substituído por um foco maníaco.
    Ela levou a mão esquerda, com as garras estendidas, ao topo da própria cabeça.

    CRACK.

    Ela perfurou o crânio.
    O som de osso quebrando foi alto. Ela enfiou os dedos na massa cinzenta, remexendo, e puxou.

    Ela arrancou um pedaço do próprio cérebro.

    A massa pulsante, rosada e sangrenta, não se desfez na mão dela.
    Brilhou. Moldou-se. Endureceu.
    Transformou-se numa adaga.
    Rosa. Idêntica à cor da minha aura. Feita de loucura física.

    — Vamos combinar, meu amor… — disse ela, segurando a adaga de cérebro, tremendo de antecipação. — Vamos ver quem corta mais fundo.

    Mas eu…
    As palavras dela eram apenas ruído.

    Minha mente estava limpa. Silenciosa.
    Havia apenas uma ordem gravada em fogo nos meus neurônios:

    “MATAR.”

    Um borrão rosa cruzou o espaço entre nós.
    Não houve tempo para defesa.

    A Lâmina Voraz entrou direto no peito dela.
    SHHHK.
    Rasguei VIXI ao meio, do esterno até a virilha, como se ela fosse feita de seda molhada.
    Antes que as metades caíssem, girei o corpo. Um chute brutal.
    O torso dela voou, girando no ar, fibras de carne tentando se reconectar em pleno voo… apenas para se despedaçarem ainda mais quando bateram contra o concreto.

    Mas ela não parava.
    Ela levantava, sorria com os dentes quebrados, se regenerava com um som de squelch, e eu cortava.
    Cortava. Cortava. Cortava.
    Sem parar. Sem respirar.

    Eu já não era humano.
    Eu era uma fera guiada por um desejo absoluto de aniquilação.
    Meu olho rosa não apenas brilhava; ele queimava, liberando uma aura densa e pesada que fazia o ar vibrar e o chão rachar sob meus pés.

    E então…
    O público chegou.

    Shin apareceu na borda das ruínas. Atrás dele, Lyshera, Vastelion e outros sobreviventes da academia.
    Eles pararam. O alívio de verem a luta acabar morreu na garganta.

    — Sobreviveu um… — sussurrou um aluno desconhecido, recuando. — …Um demônio.

    Shin, que me reconheceu pela postura ou pela adaga, congelou. O rosto dele ficou branco.
    — Ken…?

    Logo atrás, Mina chegou.
    O quimono rasgado, sangue seco no rosto, a expressão de quem viu o inferno. Ela me viu de pé sobre os restos de VIXI e gritou, a voz cheia de esperança quebrada:

    KEN!

    Meus olhos viraram na direção dela.
    O rosa pulsou.

    E VIXI… ou o que restava dela no chão… percebeu.

    O rosto regenerado dela se contorceu numa careta de raiva pura e infantil.

    — Olhando pra outra garota…? — sibilou ela. — Enquanto me mata?

    O tom dela mudou. A voz carregada de um desprezo e ciúmes animalescos.
    Mesmo sem pernas, usando apenas as mãos com garras, ela disparou.
    Ela rastejou pelo chão numa velocidade de aranha, arrastando as tripas, indo direto em direção à Mina.

    VACA!

    Mas eu cheguei antes.
    Eu não ia deixar ela tocar na minha presa.

    CRAAACK.

    Pisei nas costas dela, esmagando a coluna contra o chão, a centímetros dos pés de Mina.
    Enterrei a adaga entre as omoplatas dela, pregando-a no solo.

    Ela parou, gritando de prazer e dor.

    Mina me olhou… em choque. Os olhos dela encontraram os meus.
    E ela não viu o Ken.

    — Ken… — sussurrou ela, trêmula. — É você…?

    Eu a encarei.
    A Adaga-Cérebro de VIXI estava caída ao meu lado, pulsando como um tumor.
    Eu a peguei com a mão esquerda.
    Agora eu tinha duas lâminas.

    Esmaguei a cabeça de VIXI com o calcanhar para calá-la.

    E naquele instante…
    Eu não via a Mina Mei. Não via a garota que comi crepe.
    Só via um corpo. Um alvo. Um pescoço macio. Um novo estímulo para a minha fome.

    Matar.

    Eu levantei a adaga rosa.
    O golpe desceu. Uma meia-lua de luz assassina visando o crânio dela.

    BOOM.

    Fogo Azul explodiu na minha frente.
    Uma perna interceptou meu braço.

    Ren Tianyū.

    O professor parou meu ataque com um chute, a perna envolta em chamas azuis. Com um giro, ele me chutou no peito.
    A força foi colossal. Fui arremessado longe. Girei no ar, cravei as facas no chão e parei de pé, arrastando trincheiras no concreto até frear.

    Levantei meu olhar.
    A pressão que saía de mim era malícia assassina pura. Alunos mais fracos caíram de joelhos, vomitando pelo simples contato com a minha aura.

    Ren estava de pé, protegendo Mina e Shin, que estavam atrás dele, paralisados.
    O rosto do professor estava sério, suado, mas seus olhos demonstravam algo raro: nojo.

    — Ken… — rosnou Ren, as chamas azuis lambendo seus ombros. — O que está acontecendo com você?!

    Eu o encarei. Não como um amigo ou mentor.
    Mas como um obstáculo.

    E atrás de mim…
    VIXI começou a rir.

    Uma risada borbulhante, vinda de uma garganta esmagada que se refazia.

    — Hahahaha… Que coisa maravilhosa… — A voz dela estava molhada. — Então é verdade… O boato da Vena.

    Ela se levantou. O corpo dela estalava, ossos se realinhando sozinhos.
    Ela sorriu, um sorriso que ia de orelha a orelha, cheio de sangue.

    — Você possui um dos Olhos do Pecado.
    — O Olho da Luxúria.

    Minha mente estalou.
    Eu a queria morta. Mais do que tudo.
    Mas naquele momento… sob o efeito daquele poder maldito, percebi a natureza da minha maldição.
    Não era luxúria sexual. Era desejo.
    Eu queria matar. E, especificamente… eu queria matar qualquer coisa que lembrasse uma mulher.
    Era uma perversão do instinto.

    Mas VIXI…
    Ela era a principal. O prato principal.
    A centelha da minha loucura.

    E eu…
    Eu estava só começando.

    Ela ria.
    Ria com vontade, histérica. Fazia gestos obscenos para Ren e Mina, balançava a cabeça de lado e mostrava a língua comprida como uma criança perversa num parquinho macabro.

    — Vem, amorzinho! Me quebra de novo!

    E então…
    Eu fui.

    VUP.

    Rápido como uma flecha, uma sombra rosa cortando o ar, ignorando Ren.

    Num único movimento cruzado, minhas duas lâminas — a Voraz e a de Cérebro — se fecharam no pescoço dela como uma tesoura.

    SNICK.

    A cabeça de VIXI voou.
    Ela girou no ar em câmera lenta, os olhos azuis ainda arregalados de prazer e surpresa.

    Sem hesitar, larguei a lâmina de cérebro no ar e dei um soco.
    Um soco direto na cabeça voadora.

    SPLAT.

    A cabeça explodiu como uma melancia podre. Matéria cinzenta, ossos e sangue espesso choveram sobre a arena.

    Recuei, arfando. O sangue dela cobria meu rosto.
    Pela primeira vez desde que essa loucura toda começou…
    Achei que tinha terminado.

    Mas eu estava errado.
    Malditamente errado.

    O corpo dela… ainda estava de pé.
    Sem cabeça.
    O pescoço era um toco aberto, borbulhando.
    Erguido como um manequim de açougue.

    Mesmo sob o efeito da Luxúria, mesmo mergulhado na fúria cega…
    Eu parei. Incrédulo.

    Atrás de Ren, Mina cobriu a boca, tremendo, os olhos cheios de lágrimas de terror.
    Shin estava paralisado, o rosto virado para não vomitar.
    Sevira, que chegava carregando um aluno ferido, parou na entrada.
    — Mas que merda é essa? — murmurou a veterana.

    E então…

    A carne do pescoço começou a se contorcer.
    Como massa de modelar viva, a cabeça dela começou a brotar de novo. Vértebras subiram, músculos se trançaram, a pele pálida se fechou sobre o crânio novo.

    Quando a boca surgiu… VIXI não gritou.
    Ela enfiou a mão na própria boca recém-formada.
    Agarrou a língua.

    Ela puxou.
    Esticou a língua para fora, grotescamente, até o limite da elasticidade.
    Com um sorriso doentio nos olhos novos, ela arrancou a própria língua com a mão esquerda, como quem puxa a fita de um presente de aniversário.

    RIIIP.

    A língua saiu pela raiz.
    Mas não caiu.
    Ela cresceu. Endureceu. Pulsou.
    Transformou-se numa espada larga, orgânica, da cor de carne crua e brilhante, um tom rosa-escarlate que dava náusea só de olhar.

    Ela completou a regeneração. Respirou fundo o ar de sangue.
    E abriu um sorriso que não tinha mais nada de humano. Era o sorriso do Abismo.

    — Essa é… — ela arfou, acariciando a espada-língua com o rosto. — A sensação de perder a cabeça…?
    — É a primeira vez que isso acontece… Será que podemos contar como a nossa “primeira vez”, Ken? Hihihi… Que romântico!

    Ela apontou a espada de carne para mim.

    — Agora… é minha vez de te abrir.

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