Capítulo 38: A missão para o abismo
Minha mãe.
Desde que partiu para uma missão nas camadas superiores, quase não a vejo mais. O tempo entre nós virou um abismo profundo… até agora.
Ela se aproximou com passos suaves, como se cada movimento carregasse séculos de saudade. Sem dizer nada, me envolveu em um abraço apertado. Senti seus braços fortes ao meu redor — mais fortes do que eu lembrava — e a palma de sua mão quente deslizou por meus cabelos, descendo em seguida pelo meu rosto, como se quisesse memorizar cada traço meu.
Então, ela encostou seu rosto no meu, roçando pele com pele com uma ternura inquietante.
— Está tudo bem… — sussurrou, em um tom quase infantil, abafado pela proximidade. — Está tudo bem agora. A mamãe está aqui…
Senti náuseas.
Meus braços, trêmulos, tentaram forçar distância. Mas era inútil. Ela era mais forte… e minha resistência parecia pequena diante da presença dela.
Meu corpo inteiro começou a tremer. Não por medo, mas por algo mais íntimo, mais visceral. Um incômodo que eu não sabia explicar.
Akane apenas observava, silencioso. Seus olhos estavam fixos em nós, mas não havia julgamento — apenas uma calma gélida, como se fosse rotina ver isso acontecer.
Quando Vena finalmente me soltou, sorriu como se nada fosse. Seus olhos — roxos profundos com finas fendas rosadas — brilharam por um momento.
Sem dizer mais nada, ela se virou, os cabelos negros dançando com o movimento.
— Vamos… — disse, com leveza, como se o tempo não importasse.
Começamos a caminhar. Eu a seguia em silêncio, com Akane logo atrás, os ecos de nossos passos preenchendo os vastos corredores do castelo do Deus Irregular.
O ar ali era diferente. Denso. Antigo. Como se cada pedra tivesse assistido a incontáveis eras.
Foi quando escutei algo à frente — o som de alguém resmungando, arrastando as palavras como se mastigasse areia.
— Maldito… — murmurava Lúmen, surgindo de uma passagem lateral, com as mãos entrelaçadas atrás das costas, caminhando curvado como um velho de milênios. — Me mandou lá pra superfície do castelo…
Seus olhos semicerrados se ergueram lentamente ao reconhecer a figura que liderava nosso grupo.
— Ora, ora… Mas o que temos aqui… Vena… — Ele parou por um instante, franzindo as sobrancelhas espessas. — Já se passaram quatro anos desde a última vez que te vi.
Vena o fitou com um olhar neutro, sem parar de andar.
— Quatro anos para você. Só quatro meses para mim. Estive na Camada do Tempo… com uma convidada.
A Camada do Tempo.
Ela fica na -88. Um mês ali equivale a um ano aqui. Desde que minha mãe retornou das camadas positivas, é lá que ela tem esperado… por alguém.
Não sei quem. Nunca soube. Mas… é alguém importante. Importante o suficiente para fazê-la permanecer lá, enquanto o mundo se transforma ao redor.
Lúmen resmungou, encarando o teto como se falasse consigo mesmo.
— Só acho engraçado… a VIXI XVII ainda não voltou.
Vena suspirou, cruzando os braços enquanto caminhava.
— Ela está esperando essa pessoa… na camada -70. Pessoalmente. Ela disse que não se importa quanto tempo levar.
E, de fato… não importa.
É só uma questão de tempo. Até ele vim.
As palavras me perfuraram em silêncio.
“Quem é essa pessoa?”
Queria perguntar. Mas algo em mim me impedia. Como se a resposta fosse um peso que eu ainda não estivesse pronto para carregar.
Seguimos, e após alguns minutos caminhando pelas passagens tortuosas do castelo, uma imensa porta dupla surgiu à nossa frente.
Diante dela, imóvel como uma pintura viva, estava ele.
Somnum.
Seu terno escuro era impecável — cortes longos, dobraduras precisas, sem um fio fora do lugar. A gravata justa, o colete perfeitamente alinhado.
Mesmo sendo o símbolo da preguiça encarnada, sua aparência parecia intocável.
Seus olhos, contudo, contavam outra história.
O esquerdo, de um azul profundo como o mar antes de uma tempestade, carregava o peso do Olho do Pecado: Preguiça. Um brilho lento, quase parando o tempo ao redor.
O direito? Semiaberto, cinza e opaco como pedra esquecida. Ele nunca o abria por completo.
Seus cabelos longos, escorrendo como tinta azul-petróleo, tocavam os ombros. Sua pele era pálida, mas não débil — havia algo frio, sólido, como neve antiga.
E seu rosto… sempre com aquela expressão de enfado sereno. Um desgosto calmo. Como se tudo no mundo fosse inconveniente demais para se importar.
Ele sequer se virou completamente. Apenas murmurou com a voz arrastada, quase indiferente:
— Vocês finalmente chegaram…
Vena não respondeu.
Nem ao menos o olhou.
Com um gesto firme, se aproximou da porta e a abriu, como se o que estivesse do outro lado fosse inevitável.
E era.
Assim que entrei naquela sala, fui tomado por uma atmosfera densa e silenciosa. O ar parecia mais frio, como se o tempo hesitasse em continuar fluindo. E lá estava ela.
Uma mulher de presença etérea e refinada. Seu semblante misturava a graça sagrada de uma sacerdotisa com a autoridade silenciosa de uma imperatriz.
Seus longos cabelos eram de um branco puro, quase translúcido sob a luz tênue da sala. Eles desciam suavemente, como neve caindo sem pressa, emoldurando um rosto sereno e pálido como porcelana antiga. Seus olhos… olhos carmesins, intensos como rubis mergulhados em sangue fresco. Encantadores. Aterradores. Inesquecíveis.
O sorriso em seus lábios era pequeno, delicado, mas escondia algo… como se soubesse de segredos demais para compartilhar.
Seu traje era de uma elegância cerimonial — um manto branco esvoaçante de mangas tão largas que pareciam asas prestes a se abrir. A borda preta contrastava de forma hipnotizante. Medalhões circulares negros decoravam seus ombros e cintura, como selos sagrados. Sob o manto, vestia roupas pretas ajustadas, com calças que cobriam por completo suas pernas. Dela pendiam fitas e borlas pretas, muitas adornadas com pequenos sinos dourados. Cada passo que dava fazia um leve tilintar ecoar, como se o tempo a seguisse em reverência.
Em suas costas, duas espadas repousavam horizontalmente, presas à cintura por faixas discretas. As bainhas brancas se alinhavam ao traje com perfeição, e uma delas carregava um longo cordão negro pendurado — como se marcasse uma distinção invisível entre as duas armas.
E então ela falou.
Sua voz era suave, mas com um tom tão imponente que parecia reordenar o próprio ar. Autoridade pura. Não era preciso levantar a voz. Bastava existir.
No mesmo instante, Akane, minha mãe — Vena — e até mesmo Somnum se ajoelharam, como se os corpos deles não pertencessem mais a si mesmos.
Confuso, olhei ao redor.
E então, sem entender por quê, meu corpo começou a tremer. Senti meus joelhos cederem. Eu tentei resistir. Juro que tentei. Mas meus músculos não respondiam, como se minha alma reconhecesse algo que minha mente não conseguia compreender. E me ajoelhei também.
Ninguém disse uma palavra. O silêncio era absoluto. Reverente.
Ela começou a se mover.
Passou a mão sobre os cabelos de Vena com um gesto calmo. Depois sobre os fios azuis-petróleo de Somnum. Em seguida, afagou os fios prateados de Akane. E, por fim… parou diante de mim.
Sua mão repousou sobre minha cabeça, e senti imediatamente algo estranho — não havia calor. Não havia vida naquele toque. Era como o toque da neblina: leve, mas gelado. E por algum motivo… isso me causou arrepios.
Ela se abaixou diante de mim, gentil e sem pressa. Com dois dedos, ergueu meu queixo até que nossos olhos se encontrassem.
Aquele olhar rubro me perfurava por dentro.
— Você nunca me viu, não é…? — sua voz era tão próxima agora que quase pude sentir seu hálito frio. — Kan Orquídea. Meu nome é Setsuna.
Ela inclinou levemente a cabeça, com um sorrisinho quase maternal. — Sou como você… nascida de um cristal. Mas você… você é diferente. Você é especial.
Sua mão fria ainda segurava meu queixo.
— Você nasceu do calor humano… do ventre. Um milagre não-natural. Por isso… único.
Então ela se levantou devagar, como se o tempo mesmo a acompanhasse.
— Kan Orquídea. Akane Ibuki. — Sua voz voltou a tomar o tom de comando. — Vocês irão descer até a camada -143. Lá repousa uma das Armas de Or’sea… selada no corpo de uma Arquiteta ancestral. Aquela arma está enterrada no esquecimento há milênios, junto aos descendentes do povo do Abismo…
Ela pausou por um momento. Seu olhar percorreu a sala. E, mesmo sem dizer, todos entendemos: aquilo não era um pedido.
Akane assentiu, curvando a cabeça levemente. Eu também. Mas ainda assim… não conseguíamos nos levantar. O peso que ela emanava, essa… pressão invisível, esmagava qualquer resistência.
— Somnum irá levá-los por um atalho. — acrescentou, lançando um olhar preguiçoso e calculado ao homem do terno escuro.
Somnum finalmente se moveu, como se o mundo só então tivesse permitido que seus músculos funcionassem.
Mas… apenas minha mãe permaneceu ajoelhada.
— Vena Nosfea… — disse Setsuna, sem sequer olhar para ela. — Quero ter uma conversa com você.
A porta se abriu sozinha, com um sutil ranger. Setsuna fez um gesto suave com a mão. Estava claro o que queria.
Fomos dispensados.
Akane e eu cruzamos a porta em silêncio, guiados por Somnum, deixando para trás aquela mulher e sua presença esmagadora.
Enquanto andávamos, algo pulsava em minha mente. Uma pergunta simples, mas persistente.
— O que, exatamente, é uma Arma de Or’sea…?
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