Capítulo 39: Ida para a missão no abismo
Após deixarmos a camada -99 para trás, os dias se arrastaram em silêncio até alcançarmos a camada -111.
E aqui… era como caminhar por um pesadelo tingido de escarlate.
Tudo ao nosso redor parecia banhado em sangue antigo. A grama, mesmo macia sob os pés, era de um vermelho vibrante e doentio. As árvores esticavam seus galhos torcidos como braços rubros tentando alcançar o céu. O solo, as pedras, até mesmo os rios fluíam em tons de carmesim opaco. Era um mundo que sangrava sem feridas.
A única coisa que destoava de toda essa atmosfera macabra era o céu — um azul limpo e irreal, como se não pertencesse àquele lugar.
Eu, Somnum e Akane caminhávamos por uma trilha sinuosa entre colinas carmesins, em direção a um atalho que, segundo Somnum, nos levaria direto à camada -143.
Apesar do ambiente opressor, algo martelava minha mente desde que partimos: a tal “arma de Or’sea”. Eu me contive por dias, mas a curiosidade finalmente venceu.
— Somnum… o que exatamente é uma arma de Or’sea?
Ele parou. Literalmente congelou no lugar, o corpo relaxado demais para alguém que dizia ser um guia. Lentamente, ele se virou, os olhos pesados de tédio cravados em mim.
— Sério…? — murmurou, como se eu tivesse acabado de perguntar quantos dedos ele tinha. — Vocês estão indo atrás de algo… e nem sabem o que é?
Ao seu lado, Akane lançou um olhar meio curioso, meio irritado, mas permaneceu calado. Ignorei.
Somnum suspirou fundo e se virou novamente, voltando a andar com passos lentos e arrastados.
— Existem quatro armas de Or’sea — disse ele, com a voz abafada pelo peso da informação. — E, antes que se empolgue, não são espadas mágicas ou lanças divinas. São mais… conceitos do que armas de verdade.
Franzi a testa, sem entender.
— Conceitos? Então por que chamam de armas? E… se são conceitos, como alguém pode coletá-las?
— Tsc… — Somnum coçou a nuca e bufou. — Há quatro anos, eu e a Vixi fomos até uma das camadas neutras em busca de uma delas. Mas o que pegamos não foi a arma completa, apenas um fragmento. Algo que carrega parte do poder e essência de uma das armas.
— Fragmento? — repeti, tentando assimilar. — Então o Deus Irregular ainda não tem todas?
Ele assentiu lentamente.
— Uma das armas já está nas mãos dele. A segunda foi quebrada em três partes. Nós conseguimos uma delas, a Vixi guardou… ou escondeu, depende de como se vê. A terceira… está selada no corpo da Arquiteta que vocês vão encontrar. E a quarta…
Ele parou de novo, fitando o céu azul acima da floresta escarlate. O silêncio durou alguns segundos.
— …a quarta arma está na camada 1. E não é um objeto… é um lugar.
Eu parei também.
— Um lugar? — questionei, confuso. — Como uma arma pode ser um lugar?
Somnum me lançou um olhar de soslaio, com aquele cansaço de quem já explicou coisas demais para gente demais.
— Quando eu disse que são mais conceitos do que armas, era disso que eu estava falando. A “arma” da camada 1 é uma planície viva. Um campo eterno que respira… e que responde apenas àqueles que compreendem o que ela representa.
As palavras dele ecoaram na minha mente como um enigma. Eu olhei para Akane, mas ele apenas caminhava em silêncio, como se digerisse tudo aquilo de forma diferente de mim — ou como se já soubesse.
Foi então que, ao levantar os olhos, vi uma colina rubra diante de nós, recortando o horizonte como uma ferida aberta. E, bem no meio dela, se destacava uma caverna de rocha escura — o único ponto naquela vastidão tingida de sangue que não era vermelho.
A entrada da caverna parecia respirar, como se guardasse algo há muito tempo adormecido.
— É ali. — Somnum murmurou, os olhos fixos na escuridão adiante. — O atalho começa por ali…
A entrada da caverna se erguia diante de nós como uma boca escancarada feita de pedra escura.
Somnum parou bem à frente da caverna, observando-a como se estivesse analisando um lugar familiar e entediante. Com um longo suspiro, ele se virou vagarosamente para Akane, com aquele ar perpetuamente desinteressado.
— Sabe… — começou ele, a voz arrastada, mas carregada de intenção — tô com uma vontade estranha de comer umas daquelas frutinhas vermelhas das árvores. Você pode buscar pra mim?
Akane arqueou uma sobrancelha, confuso.
— Hã? Mas a gente acabou de caminhar horas…
Mas antes que pudesse terminar a frase, o olhar de Somnum o atravessou. O olho da preguiça, letárgico por natureza, brilhou por um instante com algo que beirava o perigo. Um aviso silencioso.
Akane sorriu, mas foi aquele sorriso seco, forçado.
— Beleza… Bora lá, Kan.
— Vá sozinho. — Somnum interrompeu, como se estivesse irritado só de imaginar companhia. — Preguiçoso…
— Tks… — resmungou Akane, já se afastando.
Fiquei ali, em silêncio, observando o corpo de Akane se afastar entre as árvores rubras, o som de seus passos abafados pelas folhas secas como cascas de feridas antigas.
Somnum se espreguiçou com um bocejo audível, depois cruzou os braços e resmungou para si mesmo, como se estivesse cansado até de pensar.
— Mandaram dois novatos pra uma missão pra recuperar uma das armas de Or’sea… É impressionante… — ele deu uma risada nasal, amarga.
Virou-se lentamente para mim e me encarou.
— Escuta aqui… — disse ele, com uma voz mais firme do que o habitual — se eu fosse você, não confiaria tanto nesse Akane.
Aquilo me pegou de surpresa. Franzi a testa, minha garganta travou por um segundo.
— Como assim…? — falei, tentando manter a calma. — Ele é meu melhor amigo. Estamos juntos desde a infância…
Mas minhas palavras saíram fracas. No fundo… havia algo. Uma dúvida enterrada, incômoda. Algo que eu evitava encarar.
Somnum observou meu rosto por um instante como se já soubesse. Então deu de ombros, voltando ao seu tom arrastado.
— Amigo… hum. Que bonito. — Ele apontou com o polegar por cima do ombro. — Outra coisa. Quero que esconda isso de todos: não existe atalho aqui.
Arregalei os olhos, surpreso.
— Como assim?
— Eu tenho a habilidade de criar portais diretos entre camadas. São os tais “atalhos”. Mas não conte a ninguém. Já tenho preguiça demais pra aguentar mais trabalho.
Fiquei parado, digerindo a informação. Se fosse alguns anos atrás, talvez eu o tivesse confrontado ou denunciado. Mas agora… agora eu só fiquei calado. Eu não era mais aquele Kan.
Tudo tinha mudado depois do maldito sonho. Aquele sonho onde encontrei meu “semelhante”. O com olho rosa. Desde então, minha visão sobre tudo ficou mais… cinzenta. Fragmentada.
Somnum caminhou em direção à escuridão da caverna. Eu o segui alguns passos, depois parei e perguntei, hesitante:
— Somnum… quando você foi até as camadas neutras… você chegou a ver alguém parecido comigo?
Ele parou. Não se virou completamente. Apenas virou o rosto o suficiente para que eu visse o canto de seus lábios se erguer em um sorriso — algo tão raro que parecia pertencer a outra pessoa. Um sorriso fino, enigmático.
Mas ele não disse nada.
Foi nesse momento que Akane retornou, carregando um punhado de frutas vermelhas nas mãos, como pedras preciosas sangrentas.
— Trouxe as frutas… — disse ele, ofegante. — Ué… ele já tá lá no fundo?
Assenti com a cabeça e seguimos adiante.
Lá estava o portal.
Um vórtice de energia azulada girava lentamente no centro da caverna, emitindo um som baixo, como o zumbido de um trovão contido. Era belo e ameaçador. A pedra escura ao redor dele refletia a luz do portal como espelhos rachados.
Somnum, parado ao lado do portal, suspirou mais uma vez como se aquele momento fosse um fardo.
— Agora é com vocês. Eu fico aqui. Não importa quanto tempo leve.
Sem esperar resposta, pegou as frutas das mãos de Akane, deu meia-volta e foi embora, mastigando com desinteresse.
Fiquei ali parado por um instante, encarando o portal que tremeluzia diante de mim, sentindo uma pontada estranha no peito. Como se cada passo me afastasse ainda mais do que eu era. Do que eu achava que era.
E mesmo assim… caminhei em frente.
Após atravessar o portal, fomos lançados na camada -143.
O contraste era gritante.
O céu — manchado por um vermelho vivo como sangue recém-derramado — pairava silencioso sobre uma floresta aparentemente comum. Árvores altas e esguias se erguiam como sentinelas imóveis, suas folhas balançando suavemente ao ritmo de um vento morno e constante. O chão era coberto por um musgo úmido e de tom acinzentado, exalando um perfume terroso, familiar e ao mesmo tempo estranho, como se cada centímetro da floresta escondesse algo antigo.
Atrás de nós, o portal oscilava preso ao tronco de uma árvore retorcida, menor do que o anterior, como uma fenda azulada pulsante costurada à casca da madeira. Parecia… discreto. Quase tímido.
Akane atravessou logo depois e soltou um assobio curto.
— Uau… — ele girou o corpo em volta, observando os arredores com uma expressão quase animada. — Aqui parece um lugar comum, né?
Ele se virou para mim, os olhos brilhando com curiosidade disfarçada. — Vamos?
Hesitei por um instante.
Como ele sabia a direção?
A pergunta ecoou em minha mente, mas decidi não vocalizá-la. Não agora. Por enquanto, era melhor apenas observar. Confirmar o que meu instinto tentava me dizer há dias.
Akane… sempre foi gentil. Um companheiro leal desde nossa infância — ou ao menos foi o que acreditei por muito tempo. Ele era a única criança além de mim que eu via na vastidão sufocante das camadas negativas. Aquilo nos uniu. Ou… talvez tenha apenas me cegado.
Segundo a história que ele próprio contou, era fruto de um humano de cristal, nascido da união com uma criatura nativa das camadas inferiores. Ele, no entanto, nasceu como humano — embora suas marcas tribais no rosto, ombro e braço, além dos cifres discretos que cresciam junto aos cabelos, entregassem sua origem híbrida.
Continuamos caminhando. O tempo era impossível de medir naquele lugar, mas o silêncio foi nosso companheiro por longos minutos até alcançarmos o topo de um morro.
E então a vimos.
A visão me roubou o fôlego. Numa clareira perfeitamente circular, como se a terra tivesse sido esculpida por um deus, repousava uma vila. As árvores que a cercavam eram diferentes: brancas como ossos, seus troncos e galhos retorcidos em espirais agoniantes, como se fossem feitas de sal petrificado. No centro desse anel fantasmagórico, a vila brilhava. Não era feita de madeira ou pedra, mas de um material perolado, iridescente, que capturava a luz sangrenta do céu e a transformava em um brilho suave e etéreo.
As construções eram circulares, graciosas, com telhados cônicos que se assemelhavam a corolas de flores prestes a desabrochar. Varandas delicadas se projetavam das estruturas, sustentadas por colunas finas e curvas. De cada beiral, tecidos brancos e dourados pendiam, dançando com a brisa como almas leves e festivas. Era um lugar de uma beleza dolorosa, um santuário impossível naquele inferno vermelho.
No coração de tudo, o Palácio Central se erguia. Era menos uma construção e mais uma escultura viva, moldada como um colossal botão de flor de lótus. Pétalas maciças de material nacarado se arqueavam para o alto, parecendo se abrir e fechar em uma respiração imperceptivelmente lenta. No topo, uma cúpula de cristal translúcido agia como uma lente, focando a luz escarlate em um ponto tão ofuscante que era fisicamente doloroso de se encarar. Aquilo não era arquitetura; era adoração. Um espelho monumental para o sol branco que eles veneravam, cujo emblema — um círculo simples, de traços quase infantis, mas pulsando com poder — tremulava em centenas de estandartes alvos por toda a vila.
— É ali… — a voz de Akane era um sussurro reverente ao meu lado. Ele apontou com o queixo, seus olhos fixos na cúpula brilhante, uma fome contida em seu olhar. Ele então se virou para mim, talvez esperando admiração, um sinal de cumplicidade.
Forcei meus lábios a se curvarem num arremedo de sorriso. A beleza daquele lugar só tornava nosso propósito mais profano.
— Eu cuido dos guardas — minha voz saiu baixa, mais fria do que eu pretendia, um gelo fino sobre a fúria que fervia por dentro. — Eu enfrento os mais fortes. Você pega a arma.
O silêncio que se seguiu foi pesado. O vento chicoteou os estandartes ao longe, o único som em um mundo suspenso.
Então, Akane sorriu. Não era um sorriso de companheirismo. Havia uma ponta de satisfação sombria, um lampejo de orgulho retorcido que fez meu estômago gelar. Um brilho escuro, antigo, dançou em suas pupilas.
— Sabe… eu realmente prefiro este novo você — ele disse, o tom tingido por uma nostalgia perversa. — Mas ver os resquícios daquele garoto ingênuo ainda me diverte.
A brisa soprou de novo, mais fria desta vez, e eu senti um arrepio percorrer minha espinha.
Fiquei ali, imóvel, observando a vila cintilante. O inimigo não estava apenas lá embaixo, guardando uma arma. Ele estava bem ao meu lado, sorrindo para mim.
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