Capítulo 40: Início de uma reunião
O vento parou quando eles tocaram o chão.
O dragão de pedra, pousou primeiro. Não houve leveza; houve impacto. O peso da besta fez o piso de mármore polido da Torre de Pouso estalar e ceder centímetros.
Logo ao lado, a dragão-fêmea de escamas de vidro aterrissou com um som de lâminas se embainhando, as garras riscando a pedra branca.
Vindo devagar pela passarela de recepção, um homem de manto pesado e braços abertos sorria. Seus dedos eram calejados, os cabelos longos e bagunçados dançavam com o deslocamento de ar, e seus olhos dourados brilhavam com fanatismo.
No peito, o brasão inconfundível da Família Noctialis: uma garra de dragão entrelaçada com quatro espadas.
— Isso é magnífico… — murmurou ele, rindo sozinho. — Dragões reais em Asgard…
Enquanto isso, os domadores de bestas do Palácio Esmeralda corriam com lanças de contenção e correntes de ouro, tentando, com visível terror, acalmar as criaturas.
O cavaleiro do dragão de pedra desceu. Ele pulou da sela, as botas metálicas retinindo.
Vários empregados correram para ajudá-lo a retirar as placas de armadura prateada. Ele nem olhou para eles; apenas esticou os braços, deixando que o servissem.
Quando o elmo foi retirado, revelou-se o rosto de Lugone Enola.
Ele carregava aquela beleza incômoda e predatória de quem sabe que é o centro das atenções.
Os ossos da face eram marcados, a mandíbula afiada como uma lâmina polida. A pele, de um branco vivo e saudável, contrastava com os olhos de um âmbar líquido e julgador. O cabelo, preto profundo com reflexos azulados, era pesado e comprido até os ombros, preso apenas por um anel metálico grosseiro que gritava “guerreiro”, não “político”.
Por baixo da armadura, ele vestia placas leves sobre tecido grosso em tons de cinza profundo e bronze queimado — as cores do Clã da Sabedoria.
Ele sacudiu os ombros, livrando-se da tensão do voo, e olhou para os empregados que tentavam colocar correntes em seu dragão.
— Ei, vocês aí! — gritou ele, a voz projetada e autoritária. — Tomem cuidado com Ahr-Dun. Ele odeia correntes. Se ele comer um de vocês, não vou pagar o funeral.
Do outro lado, descendo do dragão de vidro com um salto ágil, vinha ela.
Hergelle Enola.
A irmã.
Cabelos pretos azulados idênticos, olhos do mesmo âmbar, rosto delicado mas com uma excentricidade selvagem. O corpo era definido, moldado pela montaria.
Ela veio saltitando na direção do irmão, ignorando completamente o protocolo real.
— Gûd-Rôm… Lugone! — disse ela, a voz soando gutural e estranha, imitando os estalos da garganta de um dragão.
Lugone virou-se para ela e soltou uma risada curta, cheia de soberba.
— Thê-K! Xai-Vrê.
Hergelle riu, acariciando o ar como se ainda tocasse as escamas.
— Lho… Shû. — Ela olhou para Lugone, os olhos brilhando. — Au-Frâ? Ê… Zud!
— M’… Kha. Vrai-tuh. — respondeu ele, ajeitando as luvas.
Hergelle se aproximou, encostando o ombro no dele e gritando uma gargalhada interna:
— Kha’Rûn! Hahahahah!
O homem da família Noctialis, que assistia a tudo fascinado, aproximou-se.
— É tão lindo… — disse ele, interrompendo o momento íntimo dos irmãos. — A Língua dos Dragões… Hâr-Shuun.
Lugone parou de rir instantaneamente.
Ele virou o rosto devagar. O olhar âmbar desceu sobre o homem como se ele fosse uma mancha de óleo no tapete.
— Eu, por acaso… conheço você?
O homem não se abalou. Fez uma reverência respeitosa.
— Me desculpe, Senhor Lugone… Sou Alter Noctialis. Chefe da família Noctialis.
Lugone piscou. O nome entrou por um ouvido e saiu pelo outro.
— Ah… Legal.
Ele olhou para o próprio dragão, que soltava fumaça pelas narinas, e depois voltou o olhar para Alter com um sorriso de escárnio.
— Queria ter um dragão também, “Chefe”?
Alter sorriu, humilde.
— Seria o máximo… O sonho da minha linhagem.
Mas Lugone já tinha perdido o interesse. Ele deu as costas antes que Alter terminasse a frase e continuou andando com a irmã em direção à entrada.
— Irmão… — sussurrou Hergelle, olhando para trás enquanto Alter ia admirar as bestas. — Quem é a “Família Noctialis”? Isso existe?
Lugone deu de ombros.
— Achei que você só ia falar em Hâr-Shuun hoje.
— Falar a Língua Sagrada é somente perto dos Filhos do Céu. — respondeu ela, piscando. — Perto de humanos, a gente usa a língua dos homens. É mais educado… ou não.
Lugone sorriu, achando graça da bipolaridade dela.
Eles entraram no Palácio Esmeralda.
A transição foi brusca. Do vento e caos do terraço para a perfeição silenciosa e climatizada do interior.
Paredes de pedras imaculadas, veios de esmeralda pulsando nas colunas, o cheiro de incenso caro. Criados de uniforme branco deslizavam pelos corredores como fantasmas obedientes.
Lugone e Hergelle caminhavam com a certeza de quem é dono do mundo.
Até que pararam.
No fim do corredor principal, uma comitiva os aguardava.
Nytharia Vharan’Sei.
Mas ela estava diferente.
A pele de porcelana estava marcada. Cicatrizes profundas, recentes e ainda rosadas, cortavam seus braços, mãos e, principalmente, o lado esquerdo do rosto perfeito.
Ao lado dela, duas figuras altas e inquietantes. Mulheres de longos cabelos verdes, vestidas de bege, com faixas de seda cobrindo completamente os olhos. As Guardiãs Cegas.
Ao ver os irmãos, Nytharia fez uma reverência mecânica e elegante.
— Muito prazer em recebê-los. Lorde Lugone Enola. E Lady Hergelle Enola.
Lugone parou, mexendo na fivela do antebraço como se estivesse entediado.
— “Lorde”… Acho que ainda é muito cedo, Nytharia. Não sou Chefe e nem Lorde do Clã Enola ainda. O velho ainda respira. — Ele sorriu, mostrando os dentes. — Mas gostei de ser chamado assim. Me dá um ar de… poder.
Ele deu um passo à frente, invadindo o espaço pessoal dela. Seus olhos âmbar focaram nas cicatrizes no rosto da mulher.
— Vejo que está com… uma “maquiagem” diferente na pele. — O tom era de pura ironia venenosa. — É moda agora no Palácio Esmeralda?
Nytharia permaneceu calma. Nem um músculo do rosto tremeu.
— Foi causada por um… demônio nas Camadas Negativas. Ossos do ofício.
— Aham… — Lugone riu baixo. — E eu finjo que acredito que demônios gostam de brincar de fazer cortes cirúrgicos assim. Parece mais obra de um… fio.
Ele passou por ela, esbarrando o ombro propositalmente. Hergelle seguiu o irmão, lançando um olhar curioso para as cegas.
Nytharia não demonstrou raiva. Não se virou. Apenas continuou olhando para frente, uma estátua de obediência e segredos.
Um tempo depois.
Aposentos de Hóspedes de Luxo.
Lugone estava em seu quarto, um salão que valia mais que vilas inteiras.
Ele estava trocando de roupa, retirando as últimas peças da armadura inferior. Estava sem camisa, exibindo um físico forte, marcado por algumas cicatrizes de treino.
No meio de suas costas, brilhava o número: Rank 1.109.
A porta se abriu timidamente.
Uma mulher entrou. Uma criada do palácio.
Jovem, bonita de rosto, mãos trêmulas segurando uma pilha de roupas de seda lavadas e passadas.
— Senhor Lugone… — a voz dela era um sussurro nervoso. — Trouxe suas roupas de descanso.
Lugone se virou.
Ele a olhou. Não nos olhos, mas no corpo.
Caminhou até ela com passos lentos e predatórios. A aura dele encheu o quarto.
A garota paralisou.
Ele estendeu a mão. Ela pensou que ele pegaria as roupas.
Mas ele ignorou a seda.
Sua mão grande agarrou o braço fino da garota com força.
— Ai!
Ele puxou o braço dela, forçando a manga do uniforme a subir.
Revelando a pele pálida e o número tatuado no antebraço.
Rank 437.987.
Lugone olhou para o número. Depois olhou para ela.
Um sorriso de nojo e diversão se abriu no rosto dele.
— Ora… Ora… — Ele apertou mais o braço dela. — O que temos aqui? Uma sortuda, não é mesmo? Não achei que o sagrado Palácio Esmeralda contratava vadiazinhas das camadas de baixo para servir a elite.
A garota começou a tremer, os olhos enchendo de lágrimas.
— Senhor, por favor…
— É muito bonita mesmo… — continuou ele, analisando o rosto dela como se fosse gado. — Deve ficar muito feliz em conseguir trabalho aqui, respirando o nosso ar. Algum tarado do conselho deve ter encontrado você na sarjeta e trazido para cá em troca de favores… Impressionante como a sujeira sobe rápido.
Ela soltou um soluço, tentando puxar o braço.
— Me solta…
Lugone fechou a cara. O divertimento sumiu.
Com um movimento brusco, ele a soltou, empurrando-a para trás.
— Suma daqui. Você fede a pobreza.
A garota tropeçou, deixou as roupas caírem e saiu correndo do quarto, chorando, a porta batendo atrás dela.
Lugone ficou ali, sozinho.
Ele olhou para a própria mão que tocou nela e a limpou na calça, com nojo.
Depois, olhou para o espelho dourado.
— Asgard está ficando cheia demais… — murmurou para si mesmo.
O Grande Salão de Jantar do Palácio Esmeralda.
Aquele lugar não fora construído apenas para refeições; fora construído para a eternidade.
O teto abobadado, alto como o céu, sustentava um lustre colossal feito das pedras mais preciosas mineradas nas dez camadas — diamantes, safiras e, claro, esmeraldas brutas que pulsavam com luz interna. As janelas gigantescas permitiam que a luz perpétua de Asgard banhasse o salão, fazendo as paredes de mármore rústico e veios verdes brilharem como se estivessem vivas.
Criados de uniforme branco moviam-se como fantasmas ao redor da mesa quilométrica, feita de uma única placa de jade polido.
Não havia som de passos. Apenas o clink suave e musical da prataria sendo ajustada e o farfalhar de tecidos finos. Cada prato, cada taça de cristal, era posicionado com uma precisão milimétrica, sob a ameaça silenciosa de morte por imperfeição.
Nas laterais do salão, os portões duplos de madeira ancestral aguardavam.
Um deles se abriu.
Lugone Enola entrou.
Ele caminhava com a arrogância de quem é dono do chão que pisa. Suas roupas de seda cinza e bronze queimado, detalhadas em esmeralda e ouro, farfalhavam. Ele ignorou o protocolo de esperar ser anunciado e jogou-se na cadeira mais próxima da cabeceira, onde o brasão da Pena e Espada estava gravado no espaldar.
Segundos depois, Hergelle entrou, saltitando levemente, e sentou-se ao lado dele, apoiando o queixo na mão.
— Parece que fomos os primeiros a chegar… — comentou ela, bocejando. — Que tédio. Pensei que a elite fosse pontual.
Lugone tamborilou os dedos calejados na mesa de jade, observando os criados trazerem travessas cobertas por cloches de prata. O cheiro de carnes exóticas e frutas frescas da Camada 4 invadiu o ar.
— Tudo carne de primeira… — murmurou ele, os olhos âmbar brilhando com um interesse predatório. — E frutas que custam o preço de uma vida lá embaixo.
Ele estalou os dedos para um criado que passava. O homem parou imediatamente, tremendo.
— Ei, você. — Lugone nem olhou para o rosto do servo. — Me diga, o que vai ter tanto para comer, hein? E quantos infelizes vêm para essa festa?
O criado fez uma reverência profunda.
— A mesa estará lotada, Lorde Enola. É uma reunião de Cúpula. Teremos a presença confirmada de três dos Top 10, além dos Patriarcas das Famílias Fundadoras.
Lugone dispensou o homem com um gesto de mão e virou-se para a irmã, um sorriso cruel nos lábios.
— O que sobrar… — disse ele, alto o suficiente para os servos ouvirem. — Mande empacotar. Vou levar para os meus dragões. Ahr-Dun adora carne temperada com hipocrisia.
Hergelle riu, o som ecoando no salão vazio.
Então, o ar mudou.
A temperatura caiu e a luz pareceu ficar mais branca.
Outra porta se abriu.
Lentamente, como uma divindade descendo à terra, ele entrou.
Lucios Svet.
Rank 6. O Líder do Clã da Luz.
A beleza dele era desconcertante, andrógena e fria. A pele alva parecia feita de alabastro, sem poros ou falhas. Os olhos eram pálidos, como cristais de quartzo lapidados que refletiam tudo sem absorver nada. Cabelos loiros, cortados numa linha reta perfeita na altura dos ombros, emolduravam um rosto que não demonstrava idade. As orelhas, levemente pontudas, davam-lhe um ar élfico, quase celestial.
Ele vestia mantos cerimoniais brancos, pesados, bordados com fios de ouro puro, cobrindo uma armadura leve. O brasão da família Svet — um sol estilizado — brilhava em suas costas. Na cintura, a Espada Sagrada, adornada com espinhos de metal branco.
Ao lado dele, o contraste.
Elorin Svet. O irmão.
Se Lucios era o sol distante, Elorin era o reflexo ofuscante no espelho.
Pálido, elegante e perigosamente charmoso. Seus cabelos eram curtos e de um branco-neve absoluto — a marca visual de sua origem como filho de uma concubina, destoando do dourado do clã.
Seu rosto fino ostentava um meio-sorriso enigmático e constante. Suas roupas eram extravagantes, ricas em brocados e joias, como se ele zombasse da tradição sagrada ao exagerar nela.
Eles caminharam até o lado oposto da mesa.
A aura que Lucios emitia, mesmo em silêncio absoluto, era uma pressão física. Era como estar perto de um reator nuclear silencioso.
Lugone desencostou da cadeira. O instinto de guerreiro falou mais alto.
— É uma honra vê-lo novamente… — disse Lugone, a voz carregada de uma ironia fina. — Lucios Svet. Rank 6… e atual “Deus” do Clã da Luz.
Lucios não respondeu. Ele nem sequer virou o pescoço. Seus olhos de cristal continuaram fixos no centro da mesa.
Foi Elorin quem falou, a voz macia e venenosa:
— Meu irmão aceita a sua educação, Lorde dos Dragões. Mesmo que ela soe… rústica.
Lugone recostou-se novamente, abrindo um sorriso arrogante.
Ele encarou Lucios, que continuava a ignorá-lo como se ele fosse uma mosca.
As portas começaram a se abrir em sequência. A sala encheu-se de poder.
Os Donroxye chegaram. O Patriarca, um homem corpulento com uma barba trançada e cheiro de produtos químicos, acompanhado da esposa — uma mulher de beleza madura, mas cansada, com cabelos de um roxo vivo, idênticos aos de Maria.
Em seguida, a Família Willians.
O líder era um senhor de cabelos brancos imaculados, pele pálida e doentia, usando um monóculo sobre o olho direito. A semelhança com a “pequena” Ellume era perturbadora. Ele exalava o frio da indústria.
Outras famílias menores, mas poderosas, preencheram os lugares. O barulho de conversas baixas começou a surgir.
Até que o perfume chegou antes das pessoas.
Um aroma de flores noturnas e gelo.
Uma comitiva de mulheres lindas, vestidas com sedas que exalavam luxúria e poder, entrou no salão como uma parada real.
No centro delas, protegida como uma rainha, estava ela.
Ysaria Lysvane.
Rank 9.
Sua beleza era etérea, mas distante, como o topo de uma montanha inalcançável. A pele alva brilhava. Os olhos tinham o tom exato do céu antes de uma nevasca — cinza-azulado. Seus longos cabelos prateados escorriam como fios de luz da lua, adornados com grampos de cristal em forma de dragões de gelo.
As roupas dela flutuavam, camadas de tecido azul-pálido que pareciam névoa sólida.
Ela caminhou com uma soberba que fazia Lugone parecer humilde. Sentou-se perto dos Enola, trazendo consigo uma onda de frio que fez os cristais da mesa embaçarem.
Restavam apenas sete cadeiras vazias.
Um grupo de conselheiros idosos, sem linhagem nobre mas com poder burocrático, entrou em silêncio.
E então…
Todos se calaram.
Até o tilintar dos talheres parou.
A porta principal, a maior de todas, se abriu sozinha.
Dois Rankeadores de manto branco entraram, ladeando a figura central.
O Chefe dos Rankeadores.
Ele não parecia humano.
Uma máscara gigantesca cobria a metade superior do rosto. Feita de um metal alienígena, iridescente, moldada na forma de uma Estrela de Sete Pontas que se estendia além das laterais da cabeça como uma auréola profana. O metal brilhava e pulsava.
A parte visível do rosto — boca, queixo e bochechas — era pálida, andrógena, perfeita e imóvel como cera.
Suas roupas eram volumosas, camadas infindáveis de tecido branco e dourado que lembravam um vestido de noiva cerimonial misturado com vestes papais. As mangas eram tão longas que cobriam as mãos completamente.
Ele flutuou até a cadeira central, na cabeceira absoluta.
Sentou-se. O tecido se espalhou ao redor dele como uma poça de leite.
Ele ergueu levemente o queixo mascarado.
Imediatamente, um Rankeador ao seu lado pegou uma jarra de vinho escuro, quase negro. Serviu uma taça de cristal.
Com reverência, o servo levou a taça até os lábios do Chefe, inclinando-a.
O Chefe bebeu.
O som dele engolindo o vinho foi audível no silêncio sepulcral do salão.
Gulp. Gulp.
Todos olhavam. Alguns com estranheza, outros com temor reverente. Era um ritual bizarro de dependência e poder.
Após os longos goles, o servo limpou os lábios dele com um lenço de seda.
O Chefe virou a máscara para a mesa. A estrela de metal brilhou.
— Iremos começar… — A voz dele preencheu a sala sem esforço. Era feminina, mas tinha uma ressonância grave, metálica, que parecia vibrar dentro dos ossos de quem ouvia. — …a Reunião de Número 560. Pós-Morte de Julia Silvit.
O nome da antiga Rank 1 pairou no ar como um fantasma que nunca foi exorcizado.
A reunião havia começado.

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