Índice de Capítulo

    Perspectiva de Lysanthir


    Os dias de preparação passaram como uma brisa inquieta — silenciosa, mas cheia de expectativa. Cada reunião, cada mapa analisado, cada despedida silenciosa nos corredores da tribo Kura’ru pareciam carregar o peso de algo maior.

    E enfim, o dia havia chegado.

    O céu, coberto por nuvens finas e alaranjadas, dava à manhã um tom místico. Estávamos reunidos no pátio interno da tribo, rodeados por bandeiras dançantes ao vento e pelo som distante dos sinos de cerimônia. Nosso grupo era pequeno, mas escolhido com precisão.

    Cedric, com aquele olhar analítico e postura disciplinada, verificava os suprimentos com perfeição quase militar.
    Marcellia, envolta em seu manto cerimônial, fitava a estrada com olhos calmos e atentos.
    E Seruus, quieto como uma sombra, mantinha-se um passo atrás de todos, como se já estivesse nos protegendo antes mesmo da partida.

    Da tribo Marezza, viriam os outros.

    Mirrasol, a representante diplomática, irradiava luz com sua presença. Seus cabelos dourados, trançados com fios de conchas, refletiam os primeiros raios do dia.
    Yuri, seu irmão, seguia com a mesma dignidade — embora mais silencioso, havia um brilho em seus olhos que dizia muito mais do que qualquer palavra.

    E por fim, os três irmãos Marezza — mas entre eles, um se destacava.

    Luciano Marezza.
    Alto, pele escura como ébano polido, cabelos brancos como o sal do mar, e olhos azuis tão límpidos que pareciam conter o próprio oceano. Ele usava óculos de armação fina, que lhe conferiam um ar levemente acadêmico, mas o sorriso tranquilo e a postura acessível quebravam qualquer distância.

    Apesar de ser o mais velho dos irmãos, não seria o próximo chefe da tribo, algo que me intrigava desde a primeira vez que o conheci. Havia nele um peso, como se soubesse mais do que dizia, e dissesse menos do que sentia.

    Enquanto nos reuníamos próximo às carruagens preparadas para a viagem, Aruan se aproximou.

    — Espero que dê tudo certo… — disse ele, cruzando os braços enquanto observava o grupo. — Isso será um marco importante para a nossa civilização…

    Sua voz carregava aquela habitual calma, mas havia um brilho nos olhos — não de preocupação, mas de orgulho. Ele confiava em nós. Isso bastava.

    Antes que pudéssemos responder, uma presença forte fez-se notar atrás de nós.

    Kaelen Ventur’i, o General do Norte, surgiu com a imponência de uma tempestade controlada.

    Alto, moreno, com cabelos brancos longos presos num rabo de cavalo que balançava levemente com o vento. Seus olhos dourados refletiam determinação e uma leve melancolia. Vestia-se com camadas azuis e brancas que deixavam parte dos ombros expostos, e um colar azul-turquesa com um pingente dourado em forma de “X” brilhava contra seu peito.

    — Queria muito ir com vocês… — disse ele, em tom descontraído, cruzando os braços com um sorriso que tentava esconder a frustração. — Mas tenho que ficar. A general do leste, aliás, nem quis vir. Tá brava por não ter sido convocada. — E soltou uma risada rouca. — Sabe como ela é.

    Aruan sorriu. Um daqueles sorrisos sinceros, porém carregados de segredos.
    Eu não resisti. Acabei sorrindo também. O clima tenso que pairava no ar se dissipou, ainda que por um instante.

    Pouco depois, com tudo pronto, subimos nas caravanas de madeira escura enfeitadas com bandeiras dos clãs e runas protetoras gravadas à mão. Os cavalos relinchavam, ansiosos, enquanto os cocheiros tomavam posição.

    Era uma comitiva modesta, ideal para atravessar com agilidade a floresta densa que nos separava da tribo do Sol Branco. A jornada levaria alguns dias. Dias em que o mundo à nossa volta mudaria, e talvez nós mudássemos com ele.

    Aos poucos, a trilha se abriu diante de nós, e o portão da tribo ficou para trás, desaparecendo sob a névoa fina da manhã.

    Eu olhei para frente, sentindo no ar o cheiro de folhas úmidas, de expectativa… e algo mais.
    Como se o destino sussurrasse de leve entre as árvores:

    “Avancem. O tempo da mudança começou.”


    Alguns dias depois…

    A floresta que cruzávamos parecia interminável, viva e misteriosa em cada canto. A vegetação era densa, com árvores tão altas que suas copas escondiam o céu. A luz do sol filtrava-se por entre os galhos em feixes dourados, iluminando o caminho de terra úmida por onde nossas carruagens avançavam. O cheiro da natureza era forte — uma mistura de musgo, madeira molhada e flores escondidas entre os arbustos.

    Cedric estava sentado à minha frente, com os braços cruzados e os olhos semicerrados, observando a floresta em silêncio.

    — Sabia que dizem que essa floresta já foi lar de uma tribo extinta que se comunicava apenas com sons de pássaros? — comentou de repente, rompendo o silêncio. — Um velho que conheci dizia que, se você prestar atenção, consegue ouvir os sussurros deles no vento.

    Marcellia riu suavemente ao lado dele.

    — Isso é só superstição, Cedric… Ou você também acredita que tem uma árvore aqui que chora sangue quando está prestes a chover?

    Ele ficou irritado pois só queria falar algo.

    Seruus, que conduzia uma das carruagens mais à frente, assobiava uma melodia baixa. Seu olhar atento não deixava nada passar despercebido entre os galhos e sombras.

    Enquanto isso, do lado da tribo Marezza, Yuri, o irmão de Mirrasol, observava o trajeto com olhos semicerrados. Ele parecia mais calado que o habitual. Já Luciano Marezza caminhava ao lado da caravana com tranquilidade, seus passos leves apesar do terreno irregular.

    — Essa floresta é diferente… — ele comentou, ajustando os óculos enquanto olhava para o alto. — Parece que está viva, como se soubesse que estamos aqui.

    A conversa ia e vinha, suave como o balanço da carruagem. As noites eram frias, mas ao redor das fogueiras os risos eram constantes. Mesmo com a tensão do objetivo, havia algo reconfortante em estarmos juntos naquela jornada.

    No terceiro dia, a floresta começou a se abrir. As árvores, antes colossais e densas, davam lugar a uma vegetação mais baixa e espaçada. Uma brisa diferente tocou nossos rostos, vinda do sul. O cheiro da terra mudou, tornando-se mais seco, e o céu parecia mais claro.

    E então, depois de subirmos uma encosta suave, vimos.

    A tribo do Sol Branco.

    De onde estávamos, ela parecia algo saído de uma pintura ancestral.

    No meio de uma imensa clareira circular, cercada por árvores brancas e retorcidas que pareciam feitas de sal petrificado, estava a tribo. Suas estruturas eram completamente distintas de qualquer outra. As casas não eram de pedra ou madeira comuns, mas sim de um material branco perolado que refletia a luz do sol como se brilhassem. Eram baixas e circulares, com telhados cônicos que lembravam corolas de flores, e finas colunas sustentando varandas abertas por onde tecidos esvoaçavam ao vento.

    Estendendo-se ao centro, o Palácio Solar, imenso e elegante, se erguia como um espelho do próprio sol. Seu formato lembrava o broto de uma flor prestes a desabrochar, com pétalas curvas que se abriam para o céu. No topo, uma cúpula reluzente refletia a luz de forma tão intensa que dificultava olhar diretamente.

    Ao redor da cidade, bandeiras brancas tremulavam com o símbolo de um sol desenhado em linhas simples — mas cheias de significado. A luz que refletia delas fazia a bandeira parecer brilhar, como se o próprio sol a abençoasse.

    Todos paramos diante da visão.

    — Incrível… — sussurrou Marcellia.

    — Parece… um templo inteiro feito de luz — comentou Su, os olhos fixos na estrutura central.

    Cedric assobiou baixinho.

    — Isso sim é saber impressionar.

    Luciano Marezza sorriu, observando a arquitetura com genuína admiração.

    — Os Sol Branco nunca fazem nada que não possa ser visto à distância. Eles vivem para brilhar — comentou.

    Mirrasol, que cavalgava na frente, virou-se para nós.

    — Vamos acampar por aqui esta noite. Entraremos na tribo ao amanhecer. — Sua voz estava firme, mas respeitosa. — O povo do Sol Branco, acredito prefere receber visitantes com o nascer do sol.

    Desci da carruagem e olhei uma última vez para a tribo à distância. Era como se estivéssemos à beira de cruzar uma fronteira invisível — uma linha entre o conhecido e o desconhecido.

    E eu podia sentir… Algo estava esperando por nós lá dentro.

    Algo que não podia ser explicado apenas pela beleza.

    Na madrugada silenciosa, ainda envolta pela névoa baixa e fria, o acampamento repousava adormecido sob o céu tingido por tons pálidos de roxo e laranja — o prenúncio do amanhecer. O fogo da última vigília crepitava fracamente, e os primeiros cantos de pássaros distantes podiam ser ouvidos, misturados ao farfalhar leve das árvores da floresta.

    Foi então que algo me despertou.

    Abri os olhos com lentidão, sentindo a pulsação de uma presença… ou melhor, várias. Meu corpo reagiu antes da minha mente, e, quando me sentei, percebi imediatamente que estávamos cercados.

    Sombras silenciosas se moviam entre as árvores — figuras esguias, todas vestidas com mantos brancos que iam até os tornozelos, seus rostos ocultos por véus finos e esvoaçantes. Cada um deles portava lanças longas, espadas curvas ou arcos recurvados feitos de madeira branca com detalhes dourados. O contraste entre suas vestes e o ambiente escuro da floresta tornava a cena ainda mais solene… e ameaçadora.

    Um deles se destacou ao avançar.

    A figura caminhou com elegância e firmeza até o centro da caravana, parando diante de todos nós. Sua voz ecoou, clara e firme, embora delicada — definitivamente feminina.

    — Voltem. — ela disse, com tom frio, porém contido. — É terminantemente proibido que membros de outras tribos ultrapassem os limites sagrados da Tribo do Sol Branco.

    Antes que qualquer um de nós reagisse, Mirrasol deu um passo à frente com a cabeça erguida, sem hesitação.

    — Viemos sob um convite. — sua voz não tremia — Meu irmão, Yuri Marezza, foi convocado por uma das princesas da sua tribo.

    A mulher de véu branco permaneceu em silêncio por alguns segundos. O silêncio era tão absoluto que o vento parecia ter cessado. Então, ela fez um sinal com a mão esquerda — um gesto simples, mas que imediatamente fez com que todos os guardas da tribo abaixassem suas armas ao mesmo tempo, como se fossem marionetes perfeitamente sincronizados.

    — Entendo… — disse, ainda com a mesma serenidade. — Nesse caso, apenas cinco de vocês poderão entrar. Os demais permanecerão aqui.

    — Hã?! Como assim, só cinco?! — Marcellia deu um passo à frente, indignada.

    Antes que dissesse algo impulsivo, Seruus colocou a mão gentilmente sobre sua boca e sorriu com calma.

    — Acredito que os representantes ideais sejam… — disse, olhando para todos nós com seriedade. — Mirrasol, Yuri… Cedric, Lysanthir… e Luciano.

    Luciano ajustou os óculos, fingindo surpresa, antes de sorrir de forma gentil.

    — Hm. Aceito o convite com honra.

    A mulher de véu assentiu uma última vez, virando-se com elegância.

    — Sigam-me.

    Enquanto começávamos a caminhar, olhei para trás. Seruus e Marcellia permaneciam no acampamento, observando em silêncio. Marcellia resmungava algo entre os dentes, mas já era tarde demais.


    A Tribo do Sol Branco.

    À medida que nos aproximávamos, passamos pelos enormes portões da tribo, guardados por sentinelas imóveis como estátuas. Ao nos aproximarmos, as portas — feitas de madeira branca com entalhes detalhados de sóis em espiral — se abriram automaticamente, revelando a paisagem interior.

    Logo que entramos, o primeiro impacto foi a luz.

    Era diferente de qualquer lugar que eu já havia visto. A luz parecia mais viva aqui. Não era mais o amanhecer comum da floresta; havia um brilho constante pairando sobre a vila, como se o próprio sol tivesse decidido morar entre eles.

    A vila era construída majoritariamente em madeira clara, quase branca, com detalhes dourados e símbolos solares entalhados em cada fachada. Árvores de troncos pálidos cresciam entre as casas, com folhas de tonalidades suaves — azuis, lilases, verde-claras — como se tivessem sido pintadas com tinta aguada. Era uma beleza calma, quase etérea.

    As pessoas que caminhavam pelas ruas nos observavam com curiosidade contida. Seus olhos claros nos fitavam com discrição, mas era impossível não notar os olhares mais longos sobre mim e Cedric. Nossas peles brancas destoavam completamente da tonalidade morena predominante dali. Seus cabelos, mesmo variados, seguiam a paleta clara que parecia fazer parte da alma da tribo: prateados, loiros, azul-claros, verde-água.

    Era como andar dentro de um quadro pintado em tons de alvorecer.

    — Aqui não se parece com a arquitetura do seu clã?, Ly. — comentou Cedric em voz baixa, enquanto caminhávamos.

    De fato era bem parecido com a arquitetura do meu clã, a diferença era o material.

    O símbolo do Sol Branco estava em toda parte. Nas portas, nas roupas, nas placas, até nas pedras do chão: um círculo com oito raios finos se espalhando como pétalas de uma flor sagrada.

    O palácio finalmente apareceu diante de nós.

    E que visão.

    Não era um castelo de pedras frias ou uma fortaleza de ostentação. Era feito da mesma madeira branca, mas com colunas curvas que se erguiam como braços voltados ao céu, e tetos com pequenas aberturas circulares por onde feixes de luz constante desciam, mesmo sem sol visível. O centro da construção tinha uma cúpula dourada com o emblema do Sol Branco desenhado em alto-relevo.

    A mulher de véu parou antes da entrada principal.

    — A partir daqui, ela irá conduzi-los.

    Uma nova figura surgiu.

    Era uma mulher de pele morena, cabelos brancos que fluíam como neve sob o luar. Seus olhos eram de um azul bebê, tão claro que pareciam quase prateados. Vestia um longo vestido branco com linhas douradas nas mangas e cintura, e seu caminhar era suave, como se flutuasse.

    Ela sorriu.

    — Vocês são os convidados da Princesa Friela, certo? — sua voz era tão doce quanto firme. — Faz muito tempo desde que estrangeiros pisaram aqui. É uma surpresa… e um teste.

    Ela nos examinou um por um com o olhar — mas foi a mim e Cedric que ela observou por mais tempo. Talvez pela cor da pele. Talvez por algo mais.

    — A Tribo do Sol Branco é atualmente liderada por Sua Majestade, a Rainha Naaz Superbia Sol Albus.

    Cedric murmurou baixinho:

    — Que nome comprido…

    Eu engoli o riso.

    — Embora ela seja a atual rainha, optou por se afastar das tribos vizinhas — especialmente Marezza e Kura’ru. — explicou a guia, ainda caminhando. — Os motivos… não são segredos, mas são políticos demais para esse momento.

    Paramos diante de um par de portas imensas, com detalhes esculpidos em ouro pálido.

    — Atrás dessas portas… está a rainha. Ela os receberá agora.

    A mulher nos lançou um último olhar sério.

    — Cuidado com o que dizem. As palavras têm peso… especialmente sob a luz do nosso sol.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota