Capítulo 41: A rainha do orgulho
A mulher de cabelos brancos parou diante das portas colossais do Salão da Soberania. Eram feitas de madeira pálida, mas polidas a tal ponto que refletiam nossa imagem distorcida, e se curvavam para dentro como as pétalas de uma flor prestes a se fechar. Ela não disse nada. O silêncio que nos envolveu era denso, carregado de uma expectativa quase religiosa. Então, com um movimento fluido que parecia não exigir esforço algum, ela empurrou as portas.
Elas não rangeram. Deslizaram para os lados com um som baixo e ressonante, como o suspiro de um gigante adormecido.
E a luz nos engoliu.
Foi uma onda de luz pura e branca, tão intensa que doeu. Não era o calor do sol, mas algo mais pesado, mais antigo. Fui forçado a fechar os olhos, erguendo a mão para me proteger. Quando a sensibilidade retornou e consegui abri-los novamente, dei o primeiro passo para dentro do salão. Foi como mergulhar em águas profundas; a pressão do lugar desceu sobre mim, uma força invisível que pesava nos ombros e silenciava os pensamentos.
O salão era uma elipse vasta, um campo cerimonial de uma brancura imaculada. Paredes, pilares e arcadas monumentais erguiam-se como se tivessem sido esculpidos nos ossos de uma divindade. Não havia uma única emenda visível. Pelas frestas do mármore perolado, filetes de ouro líquido pareciam pulsar, traçando padrões solares e espirais sagradas que se repetiam pelo chão, teto e paredes. E no centro de tudo, dominando o espaço, erguia-se o trono.
Meu fôlego ficou preso na garganta.
Não era apenas um assento de poder. Acima dele, como um dossel natural e impossível, uma flor branca e gigantesca estava petrificada. Suas pétalas maciças, fossilizadas numa brancura nívea, curvavam-se em torno do trono, um gesto de proteção eterna… ou de adoração. A imagem me atingiu como um soco. Eu já tinha visto algo assim antes, uma única vez, em um lugar onde mortais não deveriam pisar. Na camada 1. Em Asgard.
E ali, sentada como a personificação da luz que preenchia aquele lugar, estava ela.
Naaz Superbia Sol Albus.
Seu vestido branco, bordado com fios de pérola, caía em dobras perfeitas até beijar o chão de mármore. Um manto etéreo, quase transparente, flutuava suavemente com a brisa que circulava pelas aberturas circulares no alto do teto abobadado. Sua pele morena, de um tom mais claro que a dos outros na tribo, parecia absorver e reemitir a luz ambiente com um brilho suave. Mas eram seus olhos que capturavam a alma. Um era do mais puro dourado, ouro derretido sob o sol do meio-dia. O outro, um castanho profundo, firme e sereno como a terra ancestral. Havia nela uma autoridade tão absoluta que por um instante senti meu próprio nome se dissolver em minha mente.
Mirassol, recuperando-se do choque antes de todos nós, deu um passo à frente. Com uma graça que desmentia a tensão, ela se ajoelhou, a cabeça baixa em um gesto de profundo respeito.
— Meu nome é Mirassol Marezza… — sua voz, sempre firme, agora era um sussurro reverente.
A rainha abriu lentamente os olhos, focando-a.
— Chefe da tribo do Sol Branco… Você…
Antes que Mirassol pudesse terminar, a voz de Naaz cortou o ar, não alta, mas com a clareza cortante de um cristal se partindo.
— Silêncio.
A palavra não foi apenas ouvida; foi sentida. Um sopro gélido varreu o salão, arrepiando minha pele e extinguindo a de Mirassol em seus lábios. O ar pareceu ficar mais fino, mais frio. Ao meu lado, ouvi Cedric engolir em seco, e de relance, vi seu maxilar tenso, os músculos de seu pescoço saltados. Luciano e Yuri permaneciam imóveis, seus rostos como máscaras de autocontrole, mas eu podia sentir a contenção em sua postura. Eram predadores em território alheio, cientes de que qualquer movimento em falso seria fatal.
Naaz se levantou. O movimento foi de uma fluidez hipnótica. A brisa ergueu seu manto num sussurro de seda. Ela desceu um único degrau do trono. E então, ergueu a mão, o dedo apontando diretamente para nós dois. Para mim e para Cedric.
— Vocês de pele branca — sua voz carregava o peso de um decreto divino. — Quais são seus nomes?
— Lysanthir Vauz — respondi, minha voz saindo mais firme do que eu esperava. — E ele é Cedric Valveron.
Ela estreitou os olhos. O dourado brilhou com uma intensidade predatória. — Por acaso… vieram dos céus?
— Sim — confirmei. — Viemos da civilização de cima. Das camadas superiores. Há cerca de quatro anos, nós…
Parei. Não porque quis, mas porque não consegui continuar. A pressão que emanava dela aumentou, uma onda de poder que me sufocou, apertando meu peito e roubando as palavras da minha boca. Nunca, nem mesmo diante dos Reis em Asgard, eu havia sentido uma vontade tão esmagadora.
Foi nesse instante de silêncio absoluto que outros passos ecoaram, pesados e cerimoniais.
Um homem idoso de pele escura emergiu das sombras atrás do trono. Um brinco de argola dourada perfurava seu nariz largo, e seus olhos negros eram profundos como poços. Suas vestes longas e brancas, com uma gola alta e detalhes em ouro, lembravam as de um sumo sacerdote. Flanqueando-o, surgiram duas figuras envoltas em mantos cerimoniais, seus rostos ocultos por capuzes. O primeiro, um homem alto e robusto, segurava uma lança de haste dourada com uma lâmina de osso branco. A segunda, uma mulher de porte esguio, tinha uma espada de bainha verde-esmeralda presa à cintura. Seu corpo, mesmo sob o manto, emanava a tensão afiada de uma lâmina prestes a ser sacada. Eles se posicionaram em cada lado do trono, imóveis como estátuas guardiãs.
O velho sacerdote fixou seu olhar austero em nós, depois se virou para a rainha.
— Vossa Majestade sabe muito bem que é estritamente proibida a entrada de membros de outras tribos em nosso solo sagrado. O tratado de paz de dez anos não anula nossas leis mais antigas. Mesmo sendo a rainha, não tem o direito de…
Ele não terminou. Naaz virou-se para ele, e apenas o seu olho dourado o fitou.
O silêncio que se seguiu foi violento. O velho vacilou, sua arrogância se desfazendo como fumaça. Gotas de suor brotaram em sua testa, escorrendo por suas têmporas.
— Eu não permiti que você falasse — declarou ela. A voz era calma, quase um murmúrio, mas o poder contido nela fez o ancião encolher-se visivelmente. — Você é apenas um ancião. E sem valor para mim neste momento.
Ela se virou novamente para mim e Cedric. — Aqueles dois… são minha prioridade agora.
E então… um som completamente diferente quebrou a tensão.
Um tilintar cristalino, rápido e leve. O som de argolas douradas nos tornozelos.
Uma jovem de cabelos curtos, de um azul vibrante como o céu antes da tempestade, surgiu correndo de uma das passagens laterais. Sua pele era morena como a de Naaz, e um sorriso radiante rasgava a solenidade do salão. Roupas tradicionais e leves esvoaçavam com seu movimento, e um amuleto solar brilhava em seu pescoço.
Ela correu diretamente até Yuri, ignorando a rainha, os guardas e o silêncio mortal. Com um grito de pura alegria, ela se jogou em seus braços, e o impacto foi tão forte que ambos caíram no chão polido, em meio a risos abafados e genuínos.
— Você voltou…! — ela sussurrou, a voz embargada de emoção, abraçando-o com força.
Antes que a cena pudesse ser totalmente assimilada, uma empregada surgiu correndo atrás dela. Sua pele escura contrastava com os cabelos loiros presos em dezenas de tranças finas. Estava visivelmente exausta, ofegando enquanto segurava a barra da saia para não tropeçar.
— Senhorita… Princesa… — arfou ela, parando com as mãos nos joelhos. — V-você… não pode… correr assim… pelo palácio…
A compostura do salão, antes rígida como gelo, havia se estilhaçado completamente.
Eu não conseguia desviar o olhar. A cena diante de mim era um mosaico impossível. De um lado, a autoridade esmagadora de uma rainha-deusa, o silêncio reverente de um salão sagrado e a ameaça velada de guardiões ancestrais. Do outro, o riso, as lágrimas e a paixão desinibida de um reencontro que desafiava todas as regras. Naquele instante, entre a flor petrificada e o abraço no chão, entendi que a Tribo do Sol Branco era um nó de contradições.
E Naaz, muito, muito mais do que apenas uma soberana.
E então, sem hesitar, a garota simplesmente começou a beijá-lo.
O silêncio que se seguiu ao beijo foi tão pesado que parecia ter forma física.
Até mesmo Naaz, a impassível, teve uma fissura em sua máscara de mármore. Uma faísca de genuína surpresa brilhou em seus olhos quando a princesa não só abraçou Yuri, mas o beijou ali mesmo, no chão, alheia à realeza, aos convidados e ao mundo. Os risos abafados do casal ecoavam no salão, misturando-se à brisa suave que dançava vinda das aberturas da cúpula, um som vivo e profano naquele santuário de silêncio.
Vi Mirassol cerrar os punhos ao lado do corpo, as juntas de seus dedos ficando brancas. Seu rosto era uma tempestade contida de irritação, desconforto e uma resignação que só uma irmã mais velha poderia sentir. A expressão dela dizia claramente: “Eu devia ter trancado você em um quarto”.
Luciano, por outro lado, não fez esforço para conter uma risada baixa e rouca. Cruzou os braços, um sorriso de puro deleite no rosto, como se assistisse à cena mais divertida de uma peça de teatro.
Cedric, fiel a si mesmo, permaneceu como uma estátua, seus olhos analíticos registrando cada detalhe, cada reação.
Quanto a mim… eu ainda não suportava aquele moleque chamado Yuri. Nosso primeiro encontro envolveu uma tentativa dele de me matar, algo que não se esquece facilmente. Mas… vê-lo ali, vulnerável, despido de sua arrogância, com o rosto banhado pelas lágrimas e pelo sorriso da garota… algo se moveu dentro de mim. Havia uma verdade inegável naquela cena. E ela…
— Você veio… — sussurrou a princesa, a voz embargada entre soluços e felicidade. — Eu sabia que você viria… finalmente…
Sim, só podia ser ela. Friela, a princesa da Tribo do Sol Branco. Os cabelos de um azul-celeste balançavam com leveza, e sua alegria era tão pura que parecia irradiar luz própria.
Ela se levantou num salto e puxou Yuri consigo, sem nenhuma cerimônia. Então, virou-se para Naaz, com os olhos ainda brilhando de lágrimas, e disse com uma sinceridade que desarmaria exércitos:
— Obrigada de verdade, tia… Eu te amo muito.
O mundo pareceu prender a respiração. Por uma fração de segundo, eu vi. Juro que vi. Um leve estremecer no canto da boca de Naaz, o fantasma de um sorriso que ameaçou nascer e morreu antes de florescer, contido por uma disciplina de ferro. Uma flor forçada a murchar.
— Por favor, me desculpe pelo comportamento do meu irmão… — Mirassol se apressou em dizer, a voz tensa, tentando costurar a etiqueta que havia sido rasgada.
— Não me importo com isso — a voz de Naaz voltou a ser calma, mas a firmeza era absoluta. O momento de vulnerabilidade havia passado.
Ela então se virou para mim. Nossos olhares se cruzaram, e foi como se um fio de eletricidade percorresse minha espinha, trazendo todo o foco do universo para aquele único ponto.
— Lysanthir, não é?
— Isso. Lysanthir Vauz.
— Quero lhes fazer perguntas. A sós. — Ela começou a descer os degraus restantes, seu vestido esvoaçando como se fosse feito de névoa. Com um gesto sutil, indicou uma porta lateral, ornamentada com símbolos solares em ouro pálido.
O ancião sacerdote deu um passo vacilante à frente. — Soberana… — sua voz era um fio de desespero e tradição. — A senhora realmente vai quebrar um costume milenar por…?
Naaz nem sequer diminuiu o passo. Sua presença parecia mais sólida que a arquitetura ao redor.
— Se eles tivessem vindo para profanar este lugar e roubar o corpo da deusa está selada aqui… — ela lançou um olhar penetrante por sobre o ombro, um olhar que silenciou o mundo — …eles não seriam capazes de me derrotar.
Era arrogância pura. Mas uma arrogância tão grandiosa, tão certa de si, que se tornava majestosa. Era como ouvir uma tempestade declarar que iria chover.
— Cuide dos assuntos políticos com os enviados de Marezza — foi sua ordem final, antes de desaparecer pela porta.
Troquei um olhar rápido com Cedric. Sem precisar de palavras, nós a seguimos.
Os corredores internos do palácio eram um santuário de silêncio. Eram largos e abertos, com paredes translúcidas que nos permitiam ver os jardins externos, onde um mar de flores ciano ondulava sob a luz constante. As sombras que dançavam no chão eram suaves, silenciosas.
Naaz caminhou à nossa frente, sem dizer nada por um longo tempo. O silêncio dela não era vazio; era expectante.
Finalmente, sua voz ecoou nas paredes de cristal.
— Há trezentos anos, uma mulher chamada Julia Silvit caiu neste lugar. Imagino que já tenham ouvido esse nome.
— Sim — respondi de imediato, sentindo um arrepio. — Eu li o diário dela. Está sob a posse da tribo Kura’ru.
Ela assentiu levemente, um gesto mínimo, como se apenas confirmasse o que já sabia. Viramos em mais um corredor e paramos diante de uma vista estonteante. Estávamos no topo de uma escadaria de pedra clara que se abria para um abismo interno. No centro da escuridão vertiginosa, uma torre colossal se erguia, um monolito negro que parecia absorver a luz. Ao redor dela, plataformas de madeira reforçada flutuavam no ar, sustentadas por uma tecnologia que parecia pura magia, brilhando com runas fracas.
— Pelas escrituras do meu povo — ela começou, a voz mais baixa, quase confidencial —, diz-se que para ativar a torre e sua função principal é necessário…
— …um membro do Clã da Luz — Cedric completou, sua voz um sussurro carregado de reverência acadêmica. — Segundo os registros fragmentados que temos, os elevadores que conectam as camadas lá em cima foram criados por eles.
Naaz parou de andar e se virou para mim. O movimento foi lento, deliberado.
Seu olho dourado parecia conter uma galáxia. Havia algo de divino e terrivelmente antigo em seu olhar, como se ela não estivesse olhando para mim, mas através de mim, lendo as páginas da minha alma.
— E eu acredito que você seja um deles — sua voz não era uma acusação, nem uma pergunta. Era uma sentença. — Por causa da profecia. Uma que ouvi quando ainda era jovem. Ela fala de um humano que cairá do céu em nosso mundo… para revelar a verdade que foi esquecida.
Ela se virou lentamente, seu olhar se perdendo no abismo ao redor da torre.
O ar ficou pesado. As palavras dela pairavam entre nós, redefinindo tudo. Eu sabia que era um membro do Clã da Luz. Mas usar esse poder… ativar aquela torre colossal… eu não fazia a menor ideia de como começar. Era como receber a chave de um universo e não saber onde ficava a porta.
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