Capítulo 42: Novo rumo
Quatro meses.
Cento e vinte dias desde que o céu de Fjorheim caiu sobre nossas cabeças.
Muita coisa mudou nesse tempo. A academia não era mais a mesma.
Muitos alunos — aqueles cujas famílias tinham medo ou poder suficiente — foram embora, transferidos para escolas mais seguras ou simplesmente retirados do caminho do guerreiro. O corpo discente encolheu, mas os que ficaram… esses tinham um olhar diferente. Um olhar de sobreviventes.
A reconstrução física foi rápida. Guindastes e construtores do clã da luz ergueram as paredes novamente. O cheiro de queimado foi substituído pelo cheiro de cimento fresco e tinta. As aulas recomeçaram. A vida tentava, desesperadamente, imitar a normalidade.
Mas meus amigos… eles estavam aprendendo a respirar novamente num mundo onde o ar parecia mais rarefeito.
Dormitório Feminino – Quarto de Mina.
O quarto estava silencioso, iluminado apenas pela luz cinzenta da tarde que entrava pela janela.
Mina estava de pé, olhando para o pátio vazio.
À frente dela, perto da porta, estava uma mulher. Vestia as roupas tradicionais e impecáveis do Clã Misticia, com o brasão da família bordado em prata. Uma emissária direta.
— Tem certeza da sua decisão, Senhorita Mina? — A voz da mulher era polida, mas fria. Não havia preocupação, apenas burocracia.
Mina não se virou.
— Sim.
— A Senhorita Una Mei… — A mulher fez uma pausa reverente ao dizer o nome da Rank 4. — …está disponibilizando vagas imediatas para todas as membranas do Clã Misticia na Academia Fosfia, na Terceira Camada. É um ambiente controlado, seguro e condizente com sua linhagem.
A mulher deu um passo à frente, a voz baixando um tom.
— Se ficar aqui… você será a única. A última representante do Clã Misticia nesta academia manchada de sangue. Estará sozinha, sem a proteção do nome.
Mina apertou a borda do parapeito da janela. Os nós dos dedos ficaram brancos.
Ela pensou no garoto de olho rosa. Pensou na covardia de fugir.
Ela se virou. Os olhos escuros estavam secos e firmes.
— Eu vou ficar. — disse ela. — A proteção do Clã nunca me serviu de nada, afinal.
A mulher sustentou o olhar por um segundo, depois fez uma reverência curta e mecânica.
— Como desejar.
A porta se fechou. Mina estava sozinha.
Mas, pela primeira vez… a solidão não parecia um castigo. Parecia uma escolha.
Desde a minha partida com Acara, um abismo de silêncio se abriu.
Eu, longe dali, acreditava piamente que Mina me odiava. E eu tinha motivos para acreditar nisso: a humilhação na praça, a tentativa de assassinato sob a influência da Luxúria… Eu era o vilão da história dela.
Mas a realidade de Mina era outra.
A dor dela não era de ódio. Era de ausência.
Naquela tarde, incapaz de suportar o silêncio do próprio quarto, ela caminhou até a Mansão Roxa.
O único lugar que ainda parecia seguro. O único lugar onde alguém sabia a verdade.
A oficina estava calma.
Maria Donroxye estava sentada em uma pilha de almofadas de veludo roxo, perto da janela aberta, bebericando um chá de ervas. A luz alaranjada do entardecer iluminava seu rosto, que parecia mais sereno e maternal do que nunca, apesar das olheiras de quem trabalhava demais.
Ao ver Mina entrar, com os ombros caídos e o olhar perdido, Maria não disse nada. Apenas sorriu e deu tapinhas na almofada ao seu lado.
Um convite mudo.
Mina sentou-se. Ela abraçou os joelhos, encolhendo-se.
— O jovem Ken… — começou Maria, a voz mansa quebrando o silêncio como um bálsamo. — Ele agora está em outro mundo, querida.
Mina levantou os olhos, marejados.
— Não digo que ele morreu. — corrigiu Maria rapidamente, com um sorriso triste. — Digo que ele cruzou uma fronteira. Ele já não pertence mais ao mundo comum, das aulas e das notas. Desde a primeira vez que analisei aquele olho rosa… eu já sabia. Ele estava destinado a ir para onde nós não podemos seguir.
Mina tentou falar. Abriu a boca, mas o nó na garganta era uma pedra física.
Ela baixou a cabeça novamente. Uma lágrima pingou no tecido do quimono. Depois outra.
— Mas… por que ele não falou comigo antes de ir…? — A voz dela saiu trêmula, quebrada, infantil. — Eu… eu nem consegui me desculpar por ter ficado brava com ele naquela semana. Eu fui orgulhosa. E agora… ele foi embora achando que eu o odeio.
Maria pousou a xícara na mesa. Ela olhou para a garota com uma paciência infinita.
— Você me contou o que aconteceu durante o ataque, Mina. Que ele te atacou. Que ele tentou te matar.
Mina estremeceu.
A lembrança era vívida. O rosto de Ken distorcido, a aura rosa, a sede de sangue. A lâmina descendo.
— Mas ele não queria… — sussurrou ela, rápido, desesperada para defender o indefensável. — Aquilo… Maria, aquilo não era o Ken. Eu vi os olhos dele. A aura… era estranha, doentia. Ele estava fora de si. Ele estava sofrendo. Eu sei disso. Eu sei…
Ela soluçou, cobrindo o rosto com as mãos.
— E mesmo assim… eu sinto falta dele. Eu sou idiota?
Maria se aproximou.
Com uma ternura que contrastava com a frieza de Una Mei, ela colocou a mão sobre os cabelos negros de Mina e os acariciou devagar.
Depois, puxou a menina suavemente para um abraço. Mina desabou no ombro da administradora, chorando tudo o que tinha guardado por quatro meses.
— Não, você não é idiota. Você é humana. — disse Maria, a voz firme. — Não se preocupe, Mina. Ele vai voltar. O caminho dele é circular.
Ela se afastou um pouco, segurando o rosto de Mina com as duas mãos, obrigando-a a olhar em seus olhos verdes.
— Mas quando ele voltar… ele será diferente. Mais forte. Mais perigoso. E se você quiser estar ao lado dele, não como uma vítima para ser salva, mas como uma igual… você precisa estar pronta.
Maria limpou uma lágrima da bochecha da garota.
— Eu estarei aqui com você. Vou te ajudar no que a ciência puder. Então… foque em se fortalecer. Pare de chorar pelo que foi, e prepare-se para o que virá. Para que, um dia… possa estar ao lado dele de novo sem quebrar. Está bem?
Mina fungou, respirando fundo o cheiro de lavanda de Maria.
Ela assentiu em silêncio.
Era isso.
Era exatamente isso que ela precisava ouvir.
Mesmo com as dúvidas. Mesmo com o medo daquele olho rosa.
Mesmo com a lembrança da lâmina no pescoço.
Ela gostava dele.
Ou melhor… ela gostava de Ken Orquídea. O garoto que comia crepe, que fazia truques de mágica bobos e que teve a coragem de gritar com uma Rank 4 para defendê-la.
Mina limpou o rosto. O olhar dela mudou.
A tristeza deu lugar a uma determinação silenciosa.
— Eu vou ficar forte, Maria. — prometeu ela. — Tão forte que, da próxima vez… eu é que vou salvar ele.
Os corredores recém-reformados cheiravam a tinta fresca e verniz, uma tentativa frágil de encobrir o odor de sangue que a memória de todos ainda guardava.
Shin caminhava sozinho, os passos ecoando no mármore. Ele parecia mais magro, o olhar roxo sempre distante, perdido em pensamentos que não tinham resposta.
— Jovem Shin… — A voz arrastada o parou.
Shin levantou a cabeça.
Levi Gressi estava encostado numa coluna. O uniforme estava, como sempre, impecável, mas ele não sorria com a extravagância habitual.
— Levi…
Levi descruzou os braços e ergueu o queixo, bloqueando o caminho.
— Ainda está preso ao passado? Sua aura está cinzenta. Isso não combina com a sua pele.
— Não é isso. — Shin suspirou, passando a mão no cabelo. — É só… estranho. Eu conheci o Ken por apenas três meses. Mas… o sentimento daquele dia na arena. A energia dele. Não parecia alguém que morreria soterrado. Eu sinto que…
Levi deu um passo à frente.
PLAFT.
Deu um tapa leve, mas firme, na testa de Shin.
— O “Jovem Orquídea” está morto. — disse Levi. A voz dele não admitia réplica.
— O quê? Mas você…
— Me siga.
Levi girou nos calcanhares, o cabelo longo chicoteando o ar.
Havia algo na postura dele. Uma seriedade que Shin nunca tinha visto. Não era um convite; era uma convocação.
De fato, as engrenagens do mundo estavam girando. O massacre não foi o fim; foi o catalisador. Pessoas que antes eram apenas estudantes estavam sendo movidas como peças num tabuleiro que elas nem sabiam que existia.
Levi levou Shin para fora, até o memorial de pedra erguido no jardim.
Centenas de nomes entalhados.
O dedo enluvado de Levi apontou para uma linha específica.
Ken Orquídea.
— Está vendo? — perguntou Levi, baixo. — Ele está ali. O garoto que comia crepes e fazia truques de mágica morreu. Aceite isso.
— Mas ele… — Shin apertou os punhos. — Eu vi os olhos dele naquele dia. Eu sei que ele sobreviveu à queda.
Levi olhou para Shin. Um olhar profundo, negro, cúmplice.
— Exatamente. O Ken morreu.
Ele começou a andar novamente em direção à Mansão Azul.
— Venha. Está na hora de você parar de chorar e começar a entender o jogo.
Shin, confuso e com o coração acelerado, o seguiu.
Eles entraram na Mansão, subiram escadas restritas e pararam diante de uma porta dupla sem identificação.
Levi abriu.
O ar dentro da sala era denso. Pesado.
Shin parou na porta, os olhos arregalados.
Não era uma sala de estudos. Era um conselho de guerra.
Sentados ao redor de uma mesa redonda, estavam figuras que, em qualquer outro dia, estariam tentando se matar.
Rico Zyx, com os pés sobre a mesa e um sorriso sádico.
Lyshera Noctialis, afiando as unhas, os olhos de dragão brilhando na penumbra.
Sevira Lunhall, brincando com uma faca.
Nevara Lyeis, imóvel como uma estátua de gelo.
E, na cabeceira… Solara Whitmore, a Presidente, com os braços cruzados e as três estrelas negras girando no olho.
Todos olharam para Shin.
Levi fechou a porta atrás deles.
Nem Shin, nem Mina (que observava a chuva de seu quarto), imaginavam.
Aquele encontro casual de meses atrás não foi o acaso. Foi o início de uma teia.
As engrenagens giravam devagar, mas moíam fino.
Limites Externos da Academia.
O vento soprava as folhas secas pelo caminho de terra.
Rina Ebony estava parada, os braços cruzados, o quimono preto balançando.
À frente dela, uma garota pequena ajustava um chapéu de viagem sobre os cabelos brancos. Ela carregava uma mala de couro antiga.
— Tem certeza que vai partir mesmo? — perguntou Rina. — Marion?
A garota parou.
Ela se virou devagar.
O rosto era o de Ellume Willians, a inocente.
Mas os olhos…
Não eram mais beges.
Eram verdes. Geométricos. Linhas finas giravam dentro da íris como o mecanismo de um relógio biológico.
— Não me chame mais de Marion. Aquele nome ficou com o corpo masculino no escritório. — A voz dela era dupla, sobreposta. — É preciso, Rina. A Gula terá que se satisfazer de outra forma. Ela mexeu na comida errada aqui.
Rina suspirou, virando as costas para não ver aqueles olhos perturbadores.
— O que você acha que vai acontecer agora? Com ele?
— Só o tempo pode nos dizer… — A “garota” sorriu, um sorriso que rasgou o rosto inocente com malícia antiga. — O tabuleiro virou. Agora, irei partir. Tenho um encontro marcado com a verdadeira família Willians. Eles nem imaginam que a netinha… mudou.
— Até mais, Rina.
Nas Profundezas do Abismo.
Camada -13.
A escala daquele lugar desafiava a sanidade humana.
Não era uma caverna. Era um mundo perdido.
Cataratas de quilômetros de altura despencavam de tetos invisíveis, alimentando lagos que pareciam oceanos interiores.
A fauna era colossal. Criaturas de cinquenta metros de altura, quadrúpedes pacíficos com cascos que geravam terremotos, caminhavam sobre a superfície da água como deuses pastando.
Montanhas furavam o teto de nuvens brancas e densas.
E lá no alto, no pico de uma dessas agulhas de pedra, acima da tempestade de raios perpétua que coroava a camada…
Ele estava sentado.
Don Verk Nosfea.
A espada estava ao seu lado, embainhada. Ele olhava para o horizonte infinito de nuvens, bebendo de um cantil.
WHOOSH.
O vento foi deslocado com violência.
Uma sombra cobriu o pico da montanha.
Sobrevoando Don, uma Hidra colossal de três cabeças desceu.
Suas asas eram vastas o suficiente para cobrir uma cidade. A pele era de um cinza pálido, mortuário. Cada cabeça possuía um olho ciclópeo de cor diferente: verde à esquerda, vermelho à direita, azul no centro.
A besta pousou. A rocha da montanha rachou e cedeu sob as garras. O rugido do impacto foi ensurdecedor.
Don nem sequer se mexeu. Não piscou.
— É impressionante… — Uma voz soou, calma e elegante, cortando o barulho do vento. — Você está aqui, Don Verk… Está passeando no meu quintal?
Don ergueu os olhos roxos, preguiçosos.
Em cima da cabeça central da Hidra, de pé, com as mãos nos bolsos do sobretudo, estava ele.
Johan Enola.
O Diretor da Academia Fjorheim. O “Desertor”.
Ele era a imagem da autoridade absoluta.
Alto, de postura ereta, magro mas denso como aço.
Cabelos longos, pretos com reflexos azulados, exceto por uma única mecha vermelha vibrante que caía pelo lado esquerdo do rosto — como se ele tivesse chorado sangue anos atrás e a mancha nunca tivesse saído.
Seus olhos eram de um âmbar escuro, quase negro. O tipo de olhar que disseca, analisa e descarta em segundos.
Ele vestia um sobretudo preto impecável, com a gola alta e detalhes costurados à mão em fio de prata. No rosto belo e frio, havia um sorriso.
Um sorriso assustadoramente sereno para alguém montado num monstro capaz de destruir exércitos.
Johan desceu flutuando até a rocha.
— Veio me cobrar o aluguel, Verk?
O mundo estava se movendo rápido. Reis renunciavam, monstros subiam, lendas se encontravam.
E eu?
Eu, depois de quatro meses?
Não havia palavras para verbalizar o que sobrou.
Eu estava numa sala negra.
O cheiro era de cera derretida, incenso barato e sangue velho. A única iluminação vinha de velas grossas espalhadas pelo chão de pedra úmida.
Eu estava sentado numa cadeira de ferro.
Minha aparência não havia mudado muito… por fora.
Mas, quando abri meus olhos, o reflexo na lâmina à minha frente mostrou a verdade.
Dois olhos roxos.
Graças à lente de Marion, o rosa estava escondido. Mas a escuridão por trás deles… essa era real.
Na minha frente, na penumbra, vários homens estavam de pé.
Eles tinham aparências cadavéricas, a pele cinza esticada sobre os ossos, cobertos por tatuagens de correntes negras que subiam pelos pescoços. Usavam colares de ferro pesado.
— Estamos muito surpresos… — disse o do meio, a voz rouca como lixa. — E felizes. É raro alguém da superfície descer até aqui e aceitar a nossa natureza tão rápido. Sua admissão como Assassino de Alto Nível… será muito bem-vinda.
Ele estendeu uma adaga cerimonial para mim.
Peguei a adaga. O metal frio na minha mão parecia o único amigo que eu tinha.
Levantei o rosto.
Sorri.
Não o sorriso do garoto que gostava de crepes.
Mas o sorriso de alguém que entendeu a piada cruel do universo.
— Estamos muito felizes em te aceitar… — sussurrou o homem, completando o ritual. — Brander Achlys.
Nesse momento, senti a verdade se assentar nos meus ombros.
O passado era cinzas. O futuro era sangue.
E eu estava, genuinamente, curioso para ver quem eu teria que matar mais uma vez.

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