O Passado. Camada 2 – Vanaheim.

    Desde que me entendo por gente… sempre fui rotulado.
    Talento nato.
    Prodígio.
    Essas palavras me cercaram como uma segunda pele, apertada e sufocante, antes mesmo de eu entender o peso real que carregavam.

    Nasci na Camada 2, em Vanaheim, o berço da natureza e da nobreza. Cresci nas províncias sagradas do Clã da Luz — especificamente, na linhagem Vauz.
    Não éramos a elite governante, como os Svet, mas nossa família carregava vestígios diretos e potentes da linhagem principal. O sangue era puro. E isso, por si só, já bastava para que a expectativa me esmagasse desde o berço.

    A cena se repetia como um ciclo eterno e entediante: o campo de treino, o cheiro de ozônio e suor, meus adversários — garotos da minha idade, às vezes mais velhos — caídos ao chão, ofegantes, chorando ou olhando para mim com medo.
    E eu?
    Eu estava em pé. Nem um fio de cabelo fora do lugar. Observando-os com olhos de gelo, indiferentes à vitória.

    As vozes dos tutores e anciões eram um zumbido constante ao meu redor:

    Lysanthir é um monstro.
    Ele vai se tornar um dos pilares do Clã da Luz.
    Um verdadeiro gênio. O código genético dele não flui; ela obedece.
    O futuro maioral do nosso povo.

    Aquilo não me enchia de orgulho.
    Não me empolgava.
    Não havia prazer na facilidade. Era apenas… inevitável. Como o sol nascer ou a chuva cair. Eu vencia porque era o que eu fui desenhado para fazer.

    E assim, eu cresci.
    Cada célula do meu corpo parecia pulsar com uma energia estática. Meu Código Genético não era uma habilidade comum de manipulação ou reforço. Eu havia herdado uma das artes mais raras e sagradas do clã:

    “A Criação de Armas de Luz.”

    Não eram ilusões. Não era calor difuso.
    Eu condensava fótons até que eles ganhassem peso, corte e densidade. Uma arte reservada a pouquíssimos. E, em minhas mãos, ela florescia com uma perfeição quase cruel. Eu podia criar lanças, espadas, escudos… tudo feito da pureza que queimava os impuros.

    Anos se passaram. O mundo ficou pequeno.

    Entrei para a Academia Oriniel, localizada na Camada 3 — Alfheim.
    Era a mais prestigiada instituição de formação de guerreiros, intelectuais e estrategistas das camadas superiores. Diziam que ali, apenas os melhores sobreviviam. Que o desafio quebraria os fracos.
    Eu entrei esperando encontrar um muro.
    Mas eu era a marreta.

    Tornei-me um dos melhores. Não, eu me tornei O melhor.

    Certo dia, ao final do último ano, fui chamado à Sala dos Avaliadores Principais.
    O lugar era intimidante para a maioria. A luz da sala refletia em espelhos de mana que se adaptavam à presença vital de quem entrava, julgando sua força. A atmosfera era densa, cheia de olhos invisíveis.

    O Diretor, um homem rígido, de barba branca e postura de general, leu meu relatório final. Ele baixou o papel e me olhou com um sorriso discreto, raro.

    — Lysanthir… meus parabéns. — disse ele. — Suas notas são as melhores dos últimos dez anos. Cem em quase todas as disciplinas teóricas. E no combate… você demonstra um domínio que beira o absurdo.
    Ele fez uma pausa, os olhos brilhando.
    — Você irá se tornar um grande homem, sem dúvida. As portas do Palácio de Jade estarão abertas para você.

    Eu apenas assenti, educado, frio.
    — Obrigado, Diretor.

    Mas, no fundo…
    Eu nunca fiz aquilo por glória. Eu não ligava para as notas, para os espelhos ou para o Palácio de Jade.

    Havia apenas uma pessoa que eu queria alcançar. Uma única sombra que era maior que a minha luz.

    Minha mãe.

    Erika Vauz.

    Lembro dela com clareza cristalina, como se fosse hoje.
    Cabelos brancos como a neve das camadas inferiores, cortados curtos para a guerra. Olhos dourados como o próprio sol do meio-dia, que viam tudo e perdoavam pouco.
    Sua beleza era como uma lenda viva, austera e magnética, mas não era isso que a tornava grande.
    Ela era uma das Generais do Exército dos Três Palácios. Seu nome era sussurrado com respeito e temor até mesmo entre os Rankeadores. Ela era a espada que protegia a ordem.

    Numa noite, quando eu ainda era jovem e tinha acabado de vencer meu primeiro torneio regional, ela me encontrou na varanda de casa.
    Eu estava limpando minha medalha, orgulhoso, mas arrogante.

    Ela se aproximou. A armadura dela tiniu suavemente.
    Ela se ajoelhou ao meu lado, ficando na minha altura. O luar de Vanaheim iluminava seu rosto com uma delicadeza quase divina, suavizando as cicatrizes de batalha.

    Ela tocou meu rosto. A mão dela era calejada, pesada, mas o toque foi gentil.

    — Meu filho… — disse ela, a voz firme. — Você é talentoso. E isso é raro. O mundo vai tentar te colocar num pedestal.

    Ela olhou nos meus olhos, dourado no azul.

    — Mas lembre-se: os que você vencer na vida não são “fracos”. Eles não são degraus para a sua glória. Apenas tiveram a infelicidade de cruzar o caminho de uma força da natureza como você.
    — Respeite a derrota deles. E, Lysanthir… — Ela apertou meu ombro. — Nunca subestime um inimigo. Nunca. O dia em que você achar que já ganhou antes de sacar a arma… será o dia em que você morrerá.

    Aquelas palavras foram poucas.
    Mas foram sinceras.
    Não havia o elogio vazio dos tutores. Havia um aviso. Um código de conduta.

    Elas tatuaram-se na minha alma mais fundo do que qualquer Rank.
    E eu vivi por elas. Até o fim.


    Anos depois, quando minha fama já havia cruzado as fronteiras de Vanaheim, recebi o chamado.
    Não foi um convite. Foi uma convocação divina.
    A Família Svet — a linhagem principal e sagrada do Clã da Luz — solicitava minha presença. Para um membro de uma família secundária como eu, aquilo era o equivalente a ser chamado pelos próprios deuses.

    Me vi então na Mansão Principal.
    Não parecia uma casa. Parecia um templo construído com luz sólida.
    O saguão era vasto, silencioso e etéreo. O ambiente era banhado por uma brisa suave e constante, perfumada com flores que só cresciam naquele solo sagrado. Tapeçarias tecidas com fios de ouro puro pendiam das paredes, ondulando levemente sem vento aparente.
    Espelhos de mana alinhavam-se no corredor, ativando-se à medida que reconheciam a pureza do sangue, lançando reflexos místicos e fragmentados ao redor. Estátuas de antigos criadores e mestres dominavam os cantos, sentinelas de mármore que pareciam julgar meus passos.

    E ali, sentado num trono modesto mas imponente, estava o Patriarca:

    Balder Svet.

    Sua presença era como a de uma estrela anciã prestes a colapsar. Majestosa, austera, carregada de séculos de tradição e peso. Ele não precisava elevar a voz; o ar vibrava quando ele respirava.
    Ele me observou com olhos pálidos, idênticos aos que seu filho teria, olhos de quem já viu mundos nascerem e desabarem.

    Lysanthir Vauz… — A voz dele ecoou pela sala, grave, preenchendo o vazio.

    Ele se levantou. O manto cerimonial arrastou no chão polido. Ele cruzou a sala com passos lentos, mas cada passo parecia diminuir o tamanho do mundo, até parar diante de mim.

    — Quero, humildemente, fazer um pedido. — disse ele. Mas não havia humildade real ali. Era uma ordem disfarçada de honra.

    Ele colocou a mão no meu ombro.

    — Quero que você treine meu único filho verdadeiro. O herdeiro deste Clã. O futuro Sol.

    Por um momento, não respondi. O ar ficou preso na minha garganta.
    Havia orgulho no pedido. Mas também… um estranho pressentimento. Um frio na espinha.
    Como se aquele pedido fosse mais do que um simples treinamento.
    Como se eu estivesse sendo convidado a polir uma arma que, um dia, poderia cortar o mundo ao meio.


    Depois de alguns dias de triagem e rituais de purificação na Mansão Svet, finalmente fui levado aos jardins internos.
    E lá, eu o conheci.

    Lucios Svet.

    Ele tinha apenas dez anos.
    Mas, à primeira vista… ele parecia feito de vidro.

    Seus traços eram delicados, quase dolorosamente bonitos. Se eu não soubesse quem era, poderia jurar que era uma menina, ou uma boneca de porcelana trazida à vida por magia.
    A pele era alva, translúcida. Os olhos eram pálidos, cristais de quartzo que refletiam a luz sem absorvê-la. Os cabelos dourados eram cortados numa linha reta perfeita, caindo até os ombros como um capacete de ouro fiado.
    As orelhas, levemente pontudas, evocavam os elfos das lendas antigas — seres que não existiam mais, mas cuja estética ele parecia ter roubado.

    Ele vestia trajes cerimoniais brancos, pesados demais para uma criança, adornados com bordados dourados complexos. Sobre os ombros pequenos, um manto com o brasão da família Svet — uma estrela de oito pontas atravessada por uma lâmina de luz — parecia querer esmagá-lo.

    Ele estava sentado num banco, lendo um pergaminho antigo.
    Levantou os olhos quando cheguei. Não sorriu. Não franziu a testa.
    Apenas me observou.

    — Só tem dez anos… — murmurei comigo mesmo, sentindo uma pontada no peito.

    E o que pensei, olhando para aquela criança que parecia uma obra de arte intocável, foi simples e cruel:

    “Que pena.”

    Porque a vida dele já havia sido decidida, escrita e selada no momento em que ele respirou pela primeira vez. Ele não era um menino. Ele era um projeto.

    Mas eu estava errado sobre uma coisa.
    Ele não era frágil.

    Lucios era um monstro.

    No primeiro mês de treinamento, no dojo privado, ele conseguiu algo que ninguém da minha idade tinha feito em anos.

    Ele me feriu.

    Estávamos treinando com lâminas de luz. Eu estava me segurando, claro, usando apenas 10% da minha capacidade, tratando-o como a criança que ele aparentava ser.
    Lucios fez um movimento.
    Foi simples. Casual. Ele apenas girou o pulso, usando uma única mão, enquanto a outra segurava o manto para não arrastar no chão.

    SHHHK.

    Senti o ardor antes de ver o sangue.
    Um corte fino, cirúrgico, apareceu na minha bochecha.
    Imperceptível para muitos… mas profundo o bastante para ferir meu orgulho de “Prodígio”.

    Parei. Toquei o sangue. Olhei para ele.
    Lucios não estava ofegante. Não estava suado. A expressão dele continuava a mesma: serena, distante.
    Sua manipulação de luz beirava o impossível. A precisão, a elegância econômica, a força contida em aquele corpo pequeno.
    Aquilo era… anormal.

    — Professor… — disse ele, a voz suave e melodiosa. — Sua guarda esquerda baixou por dois milissegundos.

    Eu sorri, limpando o sangue.
    — Entendido, Jovem Mestre.


    Treinei Lucios por um ano inteiro.
    Foram doze meses vendo uma criança superar adultos, devorar conhecimento e manipular a luz como se tivesse nascido dentro de uma estrela.

    E então, quando completei dezenove anos, fui dispensado.

    Balder Svet me recebeu pessoalmente na mesma sala da primeira vez. O mesmo ar limpo, o mesmo cheiro de incenso dourado, os espelhos de luz ainda reverberando.
    Mas o olhar dele estava diferente.

    Ele olhou nos meus olhos com uma expressão calma, e pela primeira vez, vi algo além da arrogância do clã. Vi gratidão.

    — Não me entenda mal, Lysanthir. — disse ele, a voz suave. — Você foi um excelente mentor. Talvez o melhor que já contratamos. Mas agora… Lucios atingiu um platô que exige outro tipo de… estímulo. Ele precisa evoluir para além da técnica. Ele precisa aprender a governar.

    Ele fez uma pausa, e um sorriso genuíno, de pai, tocou seus lábios severos.

    — Mas saiba de uma coisa… Foi a primeira vez, em dez anos, que ouvi meu filho dizer que gostou de um professor. Ele disse que você não o tratava como um deus, nem como vidro.

    Balder inclinou a cabeça.

    — Sinta-se muito honrado, Vauz. Você ensinou humanidade a quem deve ser divino.

    As palavras foram cortantes como uma demissão, mas sua entrega foi polida como uma medalha de honra.
    Saí da Mansão Svet naquele dia com o pagamento de uma vida inteira e um buraco no peito.
    Eu tinha treinado o futuro Rank 6.
    E, infelizmente… eu tinha aprendido a gostar do garoto.

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