Capítulo 44: Decida
Saí da mansão dos Svet carregando mais do que bagagem; carregava o futuro.
Uma carta de recomendação pessoal, selada com a cera dourada e o brasão solar da Família Principal, garantiu minha vaga imediata como professor titular na Academia Oriniel — a mesma instituição que me formou.
Ensinei lá por um ano.
Foram os dias mais leves da minha vida adulta. Longe da pressão dos nobres, longe das intrigas de palácio. Apenas eu, a teoria da luz e alunos que olhavam para mim com admiração genuína.
Pela primeira vez, senti que estava trilhando meu próprio caminho, não o que foi desenhado para mim.
Até que o mundo desabou.
Não com um estrondo, mas com um sussurro na porta da minha sala.
— Sua mãe… foi assassinada. Nas Camadas Negativas Profundas. Uma emboscada de demônios de Rank S.
As palavras foram ditas por um mensageiro sem rosto.
Quando ele estendeu a mão enluvada, entregando o anel que ela sempre usava — aquele com a pedra de âmbar entalhada com um falcão —, senti o chão desaparecer. A gravidade inverteu.
A mulher invencível. A general. Morta na escuridão.
Passei dias recluso.
A luz do meu apartamento parecia cinza. As paredes se estreitavam a cada amanhecer, como se o quarto fosse um caixão que diminuía lentamente para esmagar meu peito. Eu não conseguia criar luz. Minha mana estava morta.
Até que ele apareceu.
Aesyr D’Vharan.
Ele entrou na minha casa como se fosse o dono, trazendo consigo o cheiro de floresta antiga e ozônio.
Dizia vir do Palácio Esmeralda, um dos Três Pilares do mundo.
Sua aparência era… desconcertante.
Cabelos longos, de um verde profundo e sedoso que parecia brilhar sob qualquer espectro de luz. Os olhos tinham um tom de musgo estranho — vibrantes, porém densos, como se escondessem florestas inteiras e predadores atrás das pupilas.
Usava um robe cerimonial aberto, deixando o peitoral musculoso e marcado à mostra. Cada passo que dava era medido. Preciso. Quase ritualístico.
— Você é o filho de Erika Vauz. — disse ele. Não era uma pergunta. Um meio sorriso brincava em seus lábios. — Imagino que não esteja num bom momento. O luto é uma âncora pesada. Mesmo assim… vim te pedir um favor.
Eu estava sentado no chão, cercado por garrafas.
— Que tipo de favor…? — minha voz saiu seca, fraca, irreconhecível.
— Quero que lidere uma das Tropas de Expedição e Investigação das Camadas Negativas.
Franzi o cenho, a confusão furando a névoa do álcool.
— Liderar…? Eu sou um acadêmico. Nunca pisei nas Camadas Negativas.
Ele inclinou levemente a cabeça, os olhos de musgo brilhando com uma luz perigosa.
— E por isso mesmo você deve ir. Sua mãe era uma General dos Três Palácios… o sangue dela corre em você. E como tal mãe, tal filho. Você é o mais qualificado para terminar o que ela começou.
Hesitei. O medo e a raiva se misturaram.
— Eu… não sei se…
— Ora, ora. — O sorriso dele se alargou. Havia algo de sinistro naquilo, como uma serpente oferecendo uma maçã. — Eu irei te ensinar direitinho, Lysanthir Vauz. Vou te ensinar a sobreviver onde a luz morre.
Meses se passaram.
Treinei como um animal. Estudei bestiários proibidos. Me preparei para o inferno.
E, por fim, desci.
Camada 10 — Muspelheim.
O Fundo do Poço.
O ar era uma entidade física; pesado, sufocante, com gosto de enxofre e ferrugem. Respirar ali era um esforço consciente.
As favelas se amontoavam verticalmente como um tumor de metal e concreto que se recusava a morrer. Crianças esquálidas nos observavam das sombras das vielas, olhos famintos e vazios que brilhavam no escuro. Homens de rostos marcados pelo tempo e pela dor repousavam no chão de terra batida, como se já tivessem aceitado que o fim era a única saída.
Fumaça negra, espessa e oleosa, saía de chaminés improvisadas, tingindo o céu de um cinza perpetuamente sujo. Nunca havia sol em Muspelheim.
E no meio de toda aquela podridão, Aesyr D’Vharan caminhava.
Ele destoava de tudo. Uma figura divina passeando no inferno.
A lama não tocava a bainha de seu robe. A fumaça parecia desviar dele. Cada passo que dava parecia purificar o ar ao redor, criando uma bolha de realidade distorcida. Ele era… uma luz verde. Uma presença absurda naquele abismo.
Mas havia algo estranho.
Muito estranho.
O nome dele… Aesyr D’Vharan.
Era quase idêntico ao nome do lendário Rei do Palácio Esmeralda, Aesyr Vharan. Apenas um “D” de diferença.
Mas como eu nunca vira o verdadeiro Rei — ninguém via, ele vivia recluso —, não poderia afirmar.
Ainda assim, um arrepio me percorria a espinha toda vez que ele pronunciava o próprio nome com aquele sorriso ambíguo.
Chegamos à Base da Tropa de Investigação.
Era um bunker fortificado, encravado na rocha da fronteira com a Camada -1. Um lugar que parecia estar sempre coberto por uma névoa silenciosa e fria, como se as paredes de metal suassem a dor de todos que passaram por ali e nunca voltaram.
Aesyr parou diante de uma porta de aço pesado.
Ele a abriu.
— Giovanna. — chamou ele. — Agora você terá um novo integrante na Tropa. Ele será o novo Líder de Esquadrão. Ensine-o bem, ou ele morre na primeira semana.
Ele disse isso com seu habitual tom calmo e desinteressado, antes de simplesmente virar-se e desaparecer na névoa do corredor, deixando-me sozinho na porta.
Entrei.
E então, eu a vi.
Ela estava limpando uma espada curta, sentada sobre uma caixa de munição.
Seu cabelo preto, curto e ligeiramente desgrenhado, emoldurava um rosto sujo de graxa e poeira das camadas inferiores. Mas nem a sujeira conseguia esconder uma beleza bruta, selvagem e hipnotizante.
Ela levantou o rosto.
Seus olhos… eram de um Roxo Profundo.
Olhos que pareciam guardar segredos, tragédias e piadas sujas que palavras jamais poderiam expressar.
Mesmo naquele estado, naquele lugar horrível, a única palavra que ecoou na minha mente analítica foi:
“Maravilhosa.”
Não precisei de confirmação. Os traços, a intensidade no olhar, a aura noturna… ela era, sem dúvida, uma membra do Clã da Escuridão.
Ela me analisou de cima a baixo, limpando as mãos num pano velho.
— Então você é o filho da Erika. — disse ela, levantando-se.
Havia uma energia nela que preenchia a sala. Sem hesitação, sem a etiqueta fria de Vanaheim, ela veio até mim.
Pegou minha mão — a mão dela era quente, calejada e firme — e começou a balançá-la animadamente, como se nos conhecêssemos há anos.
— Me chamo Giovanna Nero. Muito prazer, Senhor Líder!
Ela sorriu. Um sorriso que mostrava dentes brancos e uma covinha na bochecha esquerda.
— Serei sua veterana e… depois, sua subordinada. Que ironia, não acha? O novato vai mandar na veterana. Tente não me matar de tédio, “Luzinha”.
Sua risada foi leve, sincera, ecoando nas paredes de metal.
Ela irradiava algo que eu, até então, desconhecia nas camadas mais altas, cheias de polidez e máscaras:
Vida.
E naquele aperto de mão, no fundo do mundo, eu soube que estava perdido.
Os dias seguintes foram mais tranquilos do que eu tinha o direito de esperar. As Camadas Negativas carregavam uma aura opressora natural, uma gravidade que tentava esmagar sua esperança, mas a presença dela tornava o ar respirável.
Estávamos na Camada -6.
Um território surreal. Plano como uma pintura infinita, sem montanhas ou vales, coberto por um mar de grama dourada da altura da cintura que ondula como trigo ao vento. O céu era de um azul absurdo, sólido, sem nuvens e sem sol, mas iluminado por tudo.
Era um lugar de silêncio absoluto… até o som do meu golpe rasgar a realidade.
VUP. SHING.
A lâmina de luz cortou o ar.
O demônio à minha frente — uma criatura grotesca, uma paródia de ovelha com lã feita de arame farpado e dentes humanos — caiu dividido ao meio. O sangue negro manchou o ouro da grama.
Giovanna aproximou-se, embainhando sua espada curta. Ela sorria, um misto de diversão e admiração.
— Uau. — assobiou ela. — Você é mesmo habilidoso, “Luzinha”. Nem hesitou diante da fofura demoníaca.
Ela abaixou-se e tocou a carcaça do monstro com a bota.
— A maioria dos demônios nessas camadas superiores assume formas similares às de animais conhecidos… mas distorcidos por alguma coisa corrompida. Ainda assim, são raros por aqui. Sorte a nossa.
Naquele momento, enquanto ela falava com aquele sorriso — o rosto sujo de poeira de batalha, o cabelo preto grudado na testa, mas os olhos roxos cheios de vida — o tempo parou para mim.
A lógica do Clã da Luz, as regras de Vanaheim, a proibição de misturar linhagens… tudo virou cinza.
Percebi: Eu estava irremediavelmente apaixonado.
Um ano se passou.
Não houve catedral de cristal. Não houve bênção dos Patriarcas.
Num altar improvisado feito de caixotes de munição e velas derretidas, num porão escondido na Camada 10, cercados por soldados leais, contrabandistas e amigos que a guerra nos deu… nós nos casamos.
O cheiro de enxofre de Muspelheim entrava pelas frestas, mas ali dentro, cheirava a promessa.
— Lysanthir Vauz… — disse o capelão, um velho soldado sem um olho. — Você aceita Giovanna Nero, do Clã da Escuridão, como sua legítima esposa, desafiando as Leis da Superfície?
Olhei para ela.
Ela estava radiante. Usava um vestido branco simples, que mal cobria as botas de combate, mas os olhos dela brilhavam como duas estrelas violetas.
— Aceito. — respondi. A voz firme, o coração disparado como um tambor de guerra.
— E você, Giovanna?
— Até que a morte nos separe. E depois também. — disse ela, apertando minha mão.
Ali, naquele momento, em meio à sombra e ao concreto do fundo do mundo, nasceu a minha verdadeira vida.
— Estou grávida.
Ela disse isso numa manhã qualquer, enquanto limpava a arma. A mão dela repousou com ternura sobre a barriga, ainda plana.
A emoção tomou conta de mim de forma incontrolável. Eu, o prodígio frio, chorei.
Era como se todo o passado, toda a dor da perda da minha mãe, todo o peso da perfeição… tivessem sido recompensados e perdoados com aquela simples frase.
A união da Luz e da Escuridão. O maior tabu. O meu maior milagre.
Mais tempo se passou. O choro de um bebê quebrou o silêncio do bunker.
— Parabéns… é uma menina. — disse o médico da tropa, entregando-me o pequeno ser envolto em panos grossos.
Olhei para ela.
A pequena tinha os olhos da mãe — aquele roxo profundo e inteligente — e os cabelos escuros. O sangue do Clã da Escuridão era forte. Mas quando ela agarrou meu dedo, senti o calor. A minha luz estava nela também.
— Minha família. — sussurrei.
O Dia Final.
Cheguei em casa, no alojamento oficial. Encontrei Giovanna lendo uma carta com o selo do Palácio. A expressão dela era séria.
— Uma missão? — perguntei, sentindo o gosto amargo na boca.
— Sim… Prioridade Vermelha. É para investigar o desaparecimento de membros do Palácio e batedores nas camadas inferiores profundas. — Ela olhou para mim. — Dizem que algo estranho, algo antigo, está ocorrendo na Camada -51.
Antes que eu pudesse protestar, passos rápidos vieram do corredor.
Minha filha correu até mim, agarrando minha perna com força.
— Papai! Papai! Já vai sair de novo? Você prometeu que ia me ensinar a fazer a luz brilhar!
Ela tinha os olhos de Giovanna e um sorriso que podia acender qualquer escuridão. Tão pequena… e já tão cheia de energia caótica.
Do lado de fora, a voz irritante e familiar de Cedric — um dos mais novos e promissores (e baixinhos) membros da tropa — resmungou impaciente.
— Ei, Lysanthir! Já estamos atrasados! O transporte não espera a realeza!
Minha filha soltou minha perna e correu até a porta, mostrando a língua para o garoto. Depois, ergueu o olhar para mim com orgulho inocente.
— Papai… quando eu crescer, eu vou ser mais forte que aquele garoto chato de chapéu, né?
Cedric fez uma careta, ofendido.
— Ei! Eu ouvi isso, pirralha!
Eu apenas sorri, pousando a mão sobre a cabeça dela, bagunçando os cabelos pretos.
— Com certeza, querida… E eu estarei aqui para ver isso. Eu prometo.
Giovanna sorriu para mim, encostada no batente da porta. Aquele olhar que dizia “volte para mim”.
— Cuidem-se, vocês dois.
Foi a última vez que os vi sorrindo.
Camada -51.
A dor foi repentina. Não houve luta.
Um estalo, um ruído seco de carne rasgando… e depois o calor.
Algo atravessando meu corpo de trás para a frente.
Olhei para baixo.
Um braço pálido, envolto em seda elegante, saía do meu estômago.
Sangue quente jorrou, escorrendo pelos cantos da minha boca.
“Não pode ser…” pensei, a visão ficando turva.
Virei os olhos lentamente.
Ali, colada às minhas costas, com o braço cravado em mim até o cotovelo, estava ela.
A guia. A aliada.
Nytharia.
Os olhos dela não tinham ódio. Não tinham arrependimento.
Apenas silêncio e dever.
Ela puxou o braço.
Meu corpo caiu.
Naquele instante, enquanto eu despencava no abismo sem fim, minha mente foi inundada por flashes — o rosto da minha filha chorando, as mãos de Giovanna na minha nuca, o riso alegre dela no nosso casamento improvisado… o grito de Cedric… a luz do sol de Vanaheim… a escuridão do poço…
E depois disso, o nada.
O Despertar.
Quando tudo ficou escuro… por um momento, achei que tivesse morrido. Que aquele frio era o abraço final do além.
Mas, em vez disso, despertei.
Não no paraíso. Não no inferno.
Mas no gelo.
Um frio cortante me envolvia, mordendo a pele exposta. A neve cobria o chão como um manto silencioso e espesso. Flocos suaves caíam de um céu cinzento, dançando lentamente no ar estagnado.
Meus olhos abriram devagar. A primeira coisa que notei foi o silêncio — profundo, quase irreal, geológico.
Então percebi…
Levei a mão ao estômago. A camisa estava rasgada e empapada de sangue seco, duro como pedra.
Mas a pele por baixo…
Estava lisa.
O buraco em meu peito havia desaparecido.
Nenhuma dor. Nenhum ferimento. Apenas uma cicatriz fantasma na memória.
— O quê…? — Minha voz saiu numa nuvem de vapor.
Levantei-me com dificuldade, sentindo o corpo rígido pelo congelamento. A neve estalou.
Quando virei o rosto, ali estava ele.
— Cedric…
Deitado na neve, a alguns metros de distância. Imóvel.
A visão me paralisou por um instante.
O corpo dele estava coberto de sangue seco, escurecido pelo frio, formando uma crosta sobre o uniforme verde.
O sangue não vinha de um ferimento externo.
Havia escorrido por seus ouvidos, nariz, olhos e boca. As marcas do “Sistema de Equilíbrio”. O preço que ele pagou para tentar me salvar.
Corri até ele, tropeçando na neve fofa.
Caí de joelhos ao lado do garoto.
Toquei o pescoço dele. A pele estava gelada.
Esperei.
Um segundo. Dois.
Tum.
Fraco. Lento. Quase imperceptível.
Mas estava lá.
Ainda havia vida.
— Seu idiota… — sussurrei, as lágrimas quentes congelando no meu rosto. — Eu te disse para não morrer.
Olhei ao redor. Para a floresta branca e desconhecida.
Estávamos vivos.
Mas estávamos sozinhos no fim do mundo.

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