Antes que a diplomacia pudesse avançar, a natureza gritou.

    CRAAAAAASH!

    Um estrondo violentíssimo rasgou a copa das árvores acima da cachoeira, como um trovão sísmico. Um enxame de aves de penas metálicas disparou para o céu carmesim, grasnando em pânico.
    Meus músculos travaram. A mão foi para o cabo da espada.

    Eu soube antes de ver.

    Cedric… — murmurei, revirando os olhos e olhando para o topo do penhasco.

    Lá em cima, entre a vegetação densa e as árvores de ferro, uma figura dourada corria.
    Cedric se movia com uma agilidade absurda, usando a gravidade a seu favor. Ele saltava sobre raízes expostas, esgueirava-se por entre troncos espinhosos e usava galhos como trampolins.

    Atrás dele, a floresta vinha abaixo.
    Um rugido monstruoso, grave e quente, fez a água da cachoeira tremer.

    Um Lobo do Magma.
    Descomunal. Vinte metros de puro ódio.
    A pelagem era feita de cerdas grossas que brilhavam como brasas laranjas pulsantes. No rosto deformado, quatro olhos — dois acima e dois abaixo — queimavam com uma fome que não conhecia a saciedade.
    A criatura não corria; ela atropelava. Esmagava árvores centenárias como se fossem palitos de dente, abrindo uma clareira à força bruta na perseguição.

    Cedric derrapou na lama, quase caindo na beira do precipício.
    — Droga… deixei a rapieira com a bolsa de mantimentos! — grunhiu ele, tateando a cintura e sacando uma espada curta, simples, de aço comum. — Vai ter que ser no improviso!

    O monstro saltou.
    A boca se abriu, revelando um forno interno e fileiras de dentes serrilhados negros.

    Mas Cedric não recuou. Ele girou no ar, num mortal para trás, passando por cima da mandíbula aberta.
    Com a mão livre, ele fez um movimento de chicote.
    VUP.
    Fios finos de aço prateado, quase invisíveis, brilharam ao cruzar o espaço, refletindo a luz vermelha.

    As linhas se enrolaram no focinho e na boca aberta do lobo.
    Cedric puxou.

    CLAC! CRAAACK!

    A força das linhas somada à inércia do monstro fechou a boca dele com violência. Dentes se quebraram. Gengivas foram rasgadas. Sangue fervente espirrou como vapor rubro, chiando ao tocar o chão.

    O lobo uivou abafado, cego de dor, debatendo-se.

    AGORA, MARCELLIA! — gritou Cedric, pousando num galho.

    E, como se tivesse sido invocada do próprio ar, ela apareceu.

    Marcellia.

    Ela estava parada no alto de um galho robusto, projetando-se contra a luz do “sol”.
    Pés firmes. Expressão serena. Olhos de jade fechados, respirando o caos.
    O hakama cerimonial ondulava com o vento quente da besta.
    As mãos repousavam delicadamente sobre o cabo da katana embainhada na cintura esquerda.

    Ela abriu os olhos.
    Num gesto calmo, quase reverente, ela puxou a lâmina.

    ZUUUUUN!

    Não foi um corte. Foi uma linha de vácuo.
    A onda de choque invisível viajou mais rápido que o som.

    Árvores atrás da fera tombaram, fatiadas limpas na diagonal. A lâmina cortara não apenas a carne — mas a própria paisagem.
    O lobo gritou, tropeçando para o lado. Um rasgo imenso apareceu em seu flanco, profundo o suficiente para expor costelas brancas e órgãos pulsantes. Pelo chamuscado e sangue voaram.

    Mas a besta ainda estava de pé. Ainda era perigosa.

    Marcellia não parou.
    Com um movimento fluido, ela embainhou a primeira katana. O clique foi audível.
    E, com uma respiração mais profunda, puxou a segunda.

    A Lâmina Negra.
    Ela não refletia a luz. Ela a bebia.
    A espada vibrava, emitindo um zumbido baixo que fazia os dentes doerem, ressoando com o fluxo temporal ao redor.

    Chronotrax Bellator… — murmurou ela. A voz suave como uma prece.

    Ela se lançou do galho.
    O tempo pareceu gaguejar. Ela virou um borrão escuro.

    Um segundo golpe.
    Silencioso. Cirúrgico. Absoluto.

    A lâmina negra passou pelo pescoço da besta como um sussurro de amante.

    Marcellia pousou agachada no chão, dez metros à frente do monstro.
    Ela embainhou a espada devagar.
    Click.

    E então… a física agiu.

    A metade superior da cabeça do lobo — olhos, focinho, crânio — escorregou para a frente em câmera lenta, separada por um corte molecular.
    O resto do corpo desabou logo depois, fazendo o chão tremer.

    A floresta parou.
    O vento cessou.
    Até a cachoeira pareceu diminuir o volume diante daquela demonstração de poder.

    Cedric aterrissou ao lado dela, limpando o suor da testa, um corte superficial na bochecha sangrando levemente. O sorriso maroto estava lá, intacto.

    — Você podia ter feito isso antes, sabia? — provocou ele, ofegante. — Eu quase virei churrasco.

    Marcellia se levantou, ajeitando o uniforme. O rubor subiu pelo pescoço dela, traindo a postura de general.

    — Eu queria ver se você aguentava um pouco de pressão sem a sua “varinha mágica”, Cedric. — retrucou ela, desviando o olhar para a carcaça do lobo, tentando parecer indiferente… mas o brilho divertido (e aliviado) no fundo dos olhos a entregava.


    Após o fim da caçada, com os Lírios Azuis em mãos e a poeira da batalha assentando em nossas roupas, nos reunimos com o grupo da Tribo Marezza na trilha principal.

    Mirassol vinha na dianteira. A cabeça erguida, a expressão firme de quem carrega uma linhagem inteira e um tratado de paz frágil sobre os ombros.
    Atrás dela, seu irmão Yuri caminhava pisando duro, como se cada passo fosse um desafio silencioso ao solo de Kura’ru. Ele ainda limpava a lama do rosto, lançando olhares fuzilantes para as minhas costas.

    Eles eram seguidos por um pequeno grupo de guardas de elite — guerreiros impecáveis vestindo túnicas longas em tons de azul profundo e branco perolado, com bordados que imitavam ondas em movimento.

    A caminhada de volta foi envolta num silêncio espesso. Não por falta de palavras, mas pelo peso delas. Era o tipo de silêncio diplomático que antecede tempestades ou alianças históricas.

    Assim que cruzamos os portões naturais da aldeia — dois troncos retorcidos que se uniam no topo como um arco triunfal —, a atmosfera mudou.

    Sentimos as pupilas da vila cravando-se em nós. Milhares de agulhas.
    Os Marezza eram estrangeiros. Eram “Os da Água”.
    Curiosidade.
    Desconfiança.
    Julgamento.

    O tratado de paz completava dez anos, mas a memória do sangue derramado não seca tão fácil. Estava nos olhos endurecidos dos anciões sentados nas varandas e na cautela dos guerreiros que paravam seus afazeres para observar a comitiva azul passar.

    Mirassol não demonstrava fraqueza. Seus passos eram constantes, seu olhar diplomático cortava o caminho à frente como a proa de um navio.
    Já Yuri… bem, Yuri caminhava com a mão perigosamente perto da adaga de osso, o maxilar travado, esperando uma desculpa.


    No entanto, a tensão competia com a festa.
    A vila estava viva. Pulsante.

    As decorações para o Festival da Lua Vermelha estavam quase prontas.
    Havia cor, som, cheiro.
    Torres rituais de madeira estavam sendo erguidas por jovens que riam e cantavam músicas antigas. Fios de papel colorido e lanternas de vidro vulcânico desciam das janelas das casas hexagonais.
    Crianças com fitas vermelhas nos pulsos corriam entre as pernas dos guardas Marezza, rindo, chutando bolas de couro, alheias à tensão política.

    — Uau… — murmurou Cedric ao meu lado, os olhos brilhando com o reflexo das luzes.

    Para nós, “os de cima”, aquilo era surreal. Uma celebração de vida no coração da morte.
    O ar carregava o cheiro inebriante de frutas cristalizadas, carnes defumadas com ervas raras e incensos doces. Até o vento parecia mais quente, mais convidativo.

    Pouco antes de chegarmos à praça do Palácio, Seruus parou.
    Ele bocejou, espreguiçando-se.

    — Bom… minha parte de babá acabou. — disse ele, com aquele sorriso preguiçoso. — Vou para a casa da Rara entregar as flores. Boa sorte com os velhos resmungões do Conselho, Mirassol.

    Ele se afastou pelas vielas estreitas e enfeitadas, sumindo na multidão sem olhar para trás, como uma sombra verde.

    Marcellia, por outro lado, nem se despediu.
    Com uma força absurda, ela içou a carcaça do lobo gigante (que havia sido trazida num trenó improvisado pelos guardas da vila) e a jogou sobre os ombros.
    — Vou levar isso para o açougue do Festival. — rosnou ela, sem olhar para Cedric.

    E desapareceu na direção oposta, a irritação estampada nos ombros tensos e no passo pesado.

    Ficamos eu, Cedric e os Marezza. Diante dos degraus do Palácio.
    A festa estava prestes a começar. Mas a política… essa nunca parava.


    Finalmente, cruzamos a soleira e adentramos o Palácio Kaetá-Hemiru.

    O interior era um choque de contrastes entre a austeridade tribal e uma beleza orgânica inigualável.
    Serviçais moviam-se com uma graciosidade silenciosa pelos corredores de pedra avermelhada. Suas vestes de linho fino, tingidas com terras raras e adornadas com metais leves e polidos, lembravam a realeza das Camadas Superiores — mas aqui não havia a arrogância fria de Asgard. Havia harmonia. Um senso palpável de que todos, do servo ao chefe, compartilhavam o mesmo chão quente e o mesmo destino.

    Subimos uma escadaria larga, esculpida na própria rocha vulcânica, e fomos guiados até a Sala do Conselho.

    O salão era imenso, um pulmão verde no coração da pedra.
    O teto abobadado era sustentado por colunas vivas — literalmente. Trepadeiras grossas, antigas como a camada, envolviam cada pilar de pedra, florescendo em pequenas pétalas rubras que brilhavam com bioluminescência própria, dispensando a luz solar.
    O ar ali dentro era fresco, úmido e perfumado por natureza viva, mas, ao mesmo tempo, denso de tensão política.

    No centro, dominando o espaço, uma longa mesa de madeira polida. A cor era de sangue seco, profundo e envernizado. Ela refletia a luz das tochas de cristal suspensas nas paredes com um brilho sombrio.

    Ao redor dela, os Conselheiros já estavam sentados. Estátuas de carne esperando para julgar.

    Nas sombras dos cantos, empregadas mantinham-se imóveis como pinturas. O que chamava a atenção eram seus cabelos — verde-menta, azul profundo, lilás suave. Cores exóticas que marcavam suas linhagens ou funções, uma elegância silenciosa e quase invisível.

    Os Conselheiros formavam um mosaico de sabedoria e autoridade inflexível.
    Havia um homem calvo, com uma barba branca tão longa que era enrolada em fios finíssimos e complexos, como um pergaminho tecido. Seus olhos eram miúdos, quase fechados, mas agudos como lâminas de obsidiana.
    Outro, com cabelos lisos e negros caindo até o peito, tinha o rosto inexpressivo de uma máscara de marfim.
    Uma terceira, uma anciã com rugas fundas que pareciam vales de rios secos, exalava uma serenidade perigosa.

    Todos eram de pele morena, filhos legítimos da terra de Kura’ru.
    Somente eu e Cedric destoávamos ali. Dois fantasmas pálidos no meio do povo do sol.

    Mirassol e Yuri sentaram-se lado a lado.
    Os olhos à volta — alguns discretos, outros descarados — crivavam os dois Marezza de julgamento. Eram água num copo de fogo.

    O silêncio se prolongou, tornando-se físico.
    Até que o homem da barba enrolada inclinou-se levemente à frente. A madeira da cadeira rangeu.

    — Estamos apenas aguardando o Chefe Aruan… — disse ele. A voz era grave, ressonante, como se falasse de dentro de um poço. — Imagino que vocês, do Rio, não tenham pressa com esse tipo de coisa. O tempo corre diferente na água, certo?

    A ironia era nítida. Uma farpa diplomática.
    Mas Mirassol não mordeu a isca. Ela sorriu com a elegância que vinha de gerações de liderança. Um sorriso treinado para aparar golpes.

    — Nenhuma pressa, Conselheiro. — respondeu ela, com uma calma quase provocadora. — Estou aqui como a voz do meu pai. E como tal, espero que este encontro seja conduzido com o respeito que nossas tribos merecem… e com clareza.

    O salão permaneceu em silêncio por mais alguns segundos.
    Mas, naquele breve instante… a temperatura mudou.
    Um jogo havia começado. E cada palavra, dali em diante, seria uma peça movida num tabuleiro invisível.

    Então, o som suave das folhas balançando do lado de fora foi interrompido.
    Passos.
    Não pesados, mas ritmados.

    Duas figuras adentraram o recinto. A presença delas silenciou imediatamente qualquer pensamento de rebeldia.

    A primeira era Zeyra-Kaê. A Sacerdotisa.

    Ela caminhava com uma graça quase sobrenatural, deslizando.
    Seus cabelos longos, de um branco prateado absoluto, desciam lisos como véus d’água, escorrendo até quase tocar o chão de pedra polida. A pele bronzeada estava marcada com manchas ritualísticas em vermelho vivo ao redor dos olhos e bochechas.
    Não era tinta comum. Eram símbolos sagrados do Sol Vermelho, pintados com a tintura extraída da flor Kurahá — uma planta rara que ardia em calor. Dizia-se que a tintura queimava a pele de quem não fosse digno.
    Zeyra usava aquilo como maquiagem.

    Seu traje cerimonial era uma obra de arte: padrões florais intrincados e listras verticais em vermelho, preto e branco se entrelaçavam num tecido leve, quase translúcido sob a luz.
    Ela não disse uma única palavra. Apenas parou ao lado da cadeira principal, uma sentinela mística.

    Todos os presentes — inclusive os anciões mais ríspidos e o arrogante Yuri — se empertigaram. O respeito era palpável.

    E então, Aruan-Kaê apareceu.

    O Chefe da Tribo Kura’ru entrou como uma maré alta invadindo a praia — impossível de ignorar, impossível de conter.
    Seu rosto maduro trazia cicatrizes profundas que cruzavam a pele morena como relâmpagos silenciados pela história. Mas nenhuma daquelas marcas tirava sua beleza bruta; apenas a intensificava. Eram mapas de sobrevivência.

    Mesmo sem a armadura de guerra, vestindo apenas túnicas cerimoniais que deixavam parte do peito exposta, sua força era evidente. Ombros largos, braços torneados, postura ereta de quem carrega o mundo nas costas e não reclama do peso. Seus cabelos, em dreads grossos e ornamentados, estavam presos para trás.

    Ele caminhou até a cabeceira da mesa. O som de seus passos firmes ecoou.
    Sentou-se.
    Ergueu uma mão.
    O gesto foi simples, mas bastou para calar até o vento lá fora.

    Eu e Cedric trocamos um olhar rápido. Nossa parte estava feita. Éramos estrangeiros, guarda-costas de ocasião. Não tínhamos lugar na mesa dos Reis.
    Começamos a nos mover em direção à saída, tentando ser invisíveis.

    Mas então, a voz de Aruan cortou o ar como um raio firme, parando-nos no meio do passo.

    — Por favor, Lysanthir e Cedric

    Nós travamos. Ele não olhou para nós, os olhos fixos em Mirassol, mas a ordem era clara.

    — Não precisam sair daqui. — disse ele. O tom era polido, mas carregava a autoridade de uma montanha. — Creio que a presença de vocês… e a perspectiva de “fora”… será bastante necessária nesta conversa.

    Cedric engoliu em seco. Eu apenas assenti, sentindo o peso dos olhares dos conselheiros queimarem nossas costas.
    Não éramos mais apenas hóspedes.
    Tínhamos acabado de ser promovidos a peças do jogo.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota