Índice de Capítulo

    Parados ali, ilhas estáticas num mar de gente que fluía, observávamos o movimento.
    Então, a multidão se partiu.
    Uma pessoa vinha caminhando em nossa direção. E ela estava simplesmente… impecável.

    Marcellia.

    A General do Sul despiu a armadura.
    Ela vinha com a roupa tradicional do festival: um vestido de tecidos sobrepostos em tons de terra e sangue, que deixava os ombros fortes à mostra. Nas mãos, carregava uma lanterna de papel oleado, dentro da qual uma vela vermelha queimava, lançando sombras dançantes sobre seu rosto.
    Ela estava séria. E essa seriedade, paradoxalmente, a deixava deslumbrante.
    Os cabelos loiros, geralmente bagunçados de batalha, estavam domados, enfeitados com pequenas flores brancas que pareciam estrelas presas na noite.

    Olhei para o lado. Cedric estava de boca aberta. O encanto nos olhos dele era tão óbvio que chegava a ser doloroso.

    Ela se aproximou. E todo aquele ar de graça etérea… sumiu assim que ela abriu a boca.

    — Por que vocês parecem dois mendigos no meio da festa? Hein?! — A voz dela era um chicote.

    Ela parou na frente de Cedric, as mãos nos quadris.
    — Você precisa de roupas decentes. Ano passado você usou aquela túnica amarrada errada, parecia um espantalho perdido. É uma ofensa aos espíritos!

    Sem esperar resposta, ela agarrou o pulso dele. O aperto era firme, possessivo.

    — Vamos. Eu mandei as costureiras fazerem uma roupa sob medida para você. E se você reclamar da cor, eu te bato.

    Ela saiu arrastando-o, emburrada, as orelhas vermelhas traindo a vergonha. Cedric tropeçou, olhou para trás com um sorriso bobo e desamparado, e se deixou levar.
    Eu fiquei ali, sorrindo sozinho, vendo-os desaparecer na multidão colorida.


    O chamado dos tambores ficou mais alto.
    Guiado pelo ritmo, fui em direção à Praça Central.

    Quando cheguei, o mundo mudou de frequência.
    O ar no centro tinha cheiro de resina de pinheiro queimada e fruta madura esmagada; um perfume denso, quase alcoólico, que grudava na garganta.
    Quando os tambores graves e os instrumentos de corda — feitos de tripas de animais caçados — entraram em sincronia, senti o chão vibrar. Não era tremor de terra; era como se um coração antigo estivesse despertando sob as pedras.

    As luzes das tochas diminuíram.
    E as dançarinas surgiram do silêncio.

    Eram sombras curvas antes de serem pessoas. Então, a luz da Lua Vermelha as revelou.
    Pele morena refletindo o fogo das tochas ao redor como bronze líquido e aquecido.
    Cada uma tinha uma beleza que não cabia em molduras. Eram traços que pareciam esculpidos por mãos diferentes, estilos diferentes, vidas diferentes… mas, naquele círculo, estavam unidas pela mesma chama.

    Os cabelos eram um espetáculo à parte, uma celebração da diversidade da tribo:
    Algumas traziam fios ondulados, que caíam como serpentes de ébano até a cintura, brilhando com óleos perfumados.
    Outras ostentavam cachos cerrados, tão densos e volumosos que a luz da lua parecia prender-se neles, formando halos avermelhados ao redor de suas cabeças.
    Havia as que exibiam tranças longas e complexas, adornadas com pequenos discos de metal que tilintavam a cada giro — soando como chuva de estrelas implorando para cair no chão.
    E aquelas com cabelos lisos e afiados, deslizando pelas costas como lâminas negras, refletindo o fogo.

    A maquiagem fazia delas criaturas quase míticas, não humanas.
    Traços vermelhos acompanhando os ossos altos das bochechas, brilhos dourados feitos de pó de mica marcando as pálpebras, linhas pretas verticais atravessando os lábios como se guardassem segredos ritualísticos.
    Quando elas piscavam, parecia que o próprio céu tremia.

    A música cresceu. Um grito coletivo dos instrumentos.
    E elas giraram.

    Nesse giro, a lua incendiou tudo.

    As tranças bateram como chicotes. Os cabelos soltos cortaram o ar, liberando novos perfumes de jasmim noturno. Os discos metálicos brilharam como pequenos eclipses estilhaçados.
    A pele, agora suada sob o calor das tochas, cintilava como vidro escuro sendo moldado no fogo.

    Por um instante, cada expressão — a fúria contida, a alegria feroz, a melancolia profunda, o êxtase ritualístico — parecia contar a história de Kura’ru.
    A dança não era só movimento.
    Era súplica aos ancestrais. Era celebração da sobrevivência.
    Era a própria Lua Vermelha descendo à terra e dançando através da carne delas.

    Eu estava hipnotizado.

    Então, um som diferente cortou o transe.
    Trim-trim.
    Pequenos sinos de prata balançando ao meu lado.

    Virei o rosto.
    Ela estava lá.

    Vestia um vestido vermelho profundo, bordado com fios de ouro que desenhavam luas e raios de sol em ciclos infinitos. O rosto estava coberto por uma máscara de porcelana branca com detalhes vermelhos, imitando uma raposa ou um espírito da floresta.
    Era Zeyra-Kaê. A Sacerdotisa.
    Linda. Impecável. Eterea.

    Ela parou do meu lado. A máscara escondia sua expressão, mas a voz era inconfundível.

    — Lysanthir… — disse ela, suavemente. — Já está acostumado com nossa cultura… Essa é a segunda vez que vê nosso festival anual. O que acha?

    — É algo… muito surpreendente. — respondi, sincero. — A energia aqui é diferente de qualquer coisa lá em cima. É mais… visceral.

    Zeyra inclinou a cabeça mascarada.
    — Sabe… Não quer ir vestir as roupas tradicionais? Tenho certeza de que ficariam bem em você. O cinza é muito triste para hoje.

    Olhei para a minha túnica.
    — Acho melhor eu permanecer com essas roupas. Elas já são tradicionais dos Kura’ru, do dia a dia. Eu sou apenas um observador, Zeyra. Não quero fingir que sou um de vocês e ofender os espíritos.

    Zeyra soltou uma pequena risada, abafada pela máscara. Um som musical.
    — Você é muito respeitoso, Lysanthir. Às vezes, até demais.

    Ela deu um passo para trás, virando-se na direção do Palácio que ficava na colina, longe da festa.

    — Poderia me acompanhar… um momento? — O tom dela mudou. Ficou mais sério, solene. — Acho que… chegou a hora de mostrar algo a você. Algo que os olhos comuns não podem ver.

    Fiquei confuso na hora. Sair da festa? Agora?
    Mas a curiosidade, aquele vício antigo, falou mais alto. E havia algo na postura dela que dizia que aquilo não era um convite social. Era importante.

    Assenti.
    — Claro.

    Ela então começou a caminhar em direção ao Palácio Kaetá-Hemiru.
    Ela deslizava por entre as pessoas que vinham ver a apresentação, como um espírito guiando um mortal para o outro lado.
    Eu a segui, deixando o calor dos tambores para trás e entrando no silêncio da noite.

    Zeyra-Kaê é uma mulher diferente.
    Ela é a irmã de sangue de Aruan, a Sacerdotisa Suprema, uma das mulheres mais respeitadas e intocáveis desta camada. No começo, eu tinha um receio instintivo com ela — ela parecia ver demais, saber demais. Mas, com o passar do tempo, percebi que por trás da mística havia uma simpatia genuína e uma atenção aos detalhes que desarmava qualquer um.
    Eu sabia que ela era disputada. Filhos de generais, herdeiros de anciãos, guerreiros de renome… todos tentavam cortejá-la. Mas ela permanecia como a lua: visível para todos, mas inalcançável.

    Ao chegarmos ao Palácio, a atmosfera mudou. O som dos tambores ficou abafado pelas paredes de pedra grossa.
    Subimos as escadas em silêncio. Cruzamos com algumas servas que desciam apressadas, arrumadas para o festival, rindo baixo. Elas pararam e baixaram a cabeça ao ver a Sacerdotisa e o Forasteiro passarem.

    Andamos por um corredor lateral, longe dos salões principais.
    Zeyra levou a mão ao rosto.
    Click.
    Ela soltou as amarras e tirou a máscara de raposa.
    Pela primeira vez na noite, vi seu rosto limpo, sem a tinta ritualística vermelha. Sob a luz das tochas, sua beleza era crua, desprovida de artifícios, quase dolorosa de olhar. Ela parecia cansada, mas seus olhos âmbar brilhavam com propósito.

    Ela parou diante de uma porta de madeira escura, discreta, quase invisível na parede.
    Com delicadeza, pegou uma chave de ferro negro de dentro da manga do vestido.
    Girou a fechadura. O mecanismo estalou, pesado.

    Ela abriu a porta e entrou. Eu a segui.

    Não era um salão. Era um refúgio.
    Uma pequena biblioteca privada. Não havia mesas, apenas prateleiras embutidas nas paredes de pedra, indo do chão ao teto.
    A única iluminação vinha de uma janela alta, por onde a luz da Lua Vermelha entrava, banhando o pó suspenso no ar com um brilho de sangue coagulado.

    Olhei em volta, surpreso. Livros aqui eram raridade extrema.
    Zeyra caminhou calmamente até um armário antigo de madeira no canto mais escuro. A madeira rangeu, um lamento de idade, quando ela o abriu.
    Lá dentro, uma pequena pilha de livros encadernados em couro de besta, cobertos de poeira e selados com símbolos tribais que eu não reconhecia.

    Ela retirou um deles.
    Fez isso com as duas mãos, com um cuidado extremo, como se estivesse tocando o coração ainda pulsante de um deus, e não um objeto.

    Ela se virou para mim. Caminhou até onde eu estava e ergueu o livro.
    A capa estava gasta, o couro rachado pelo tempo, mas a energia que emanava dele fez os pelos do meu braço se arrepiarem.

    — Este livro… — começou ela, a voz suave, quase um sussurro sagrado. — Contém uma lenda de quinhentos anos. É a crônica proibida da nossa tribo. Fala sobre uma mulher que “caiu do céu” e não morreu.

    Eu já tinha ouvido boatos. Citações soltas em pergaminhos velhos sobre a “Visitante”. Mas achava que era mitologia local.

    Zeyra colocou o livro nas minhas mãos. Ele era pesado. Quente.

    — A humana que caiu aqui há cinco séculos… — Ela me olhou nos olhos. — O nome dela, registrado por ela mesma, era… Julia Silvit.

    O mundo parou.
    O nome caiu como um trovão silencioso dentro do meu crânio, explodindo qualquer lógica.

    Julia Silvit.

    Como eu poderia não saber? Como qualquer um de Asgard poderia não saber?
    Ela não era uma pessoa. Ela era uma Lenda.
    A antiga Rank 1. A humana mais forte da história. A mulher que, segundo os livros de história, viveu por oitocentos anos governando o topo.
    A criadora das Lâminas Gêmeas. A fundadora do Grande Elevador que conectava as Camadas Neutras. A pacificadora que trouxe a Era de Ouro.
    Para nós, do Clã da Luz, ela era quase uma divindade.

    E ela esteve aqui?
    No fundo do poço?

    Minhas mãos tremeram ao segurar o livro.
    Zeyra percebeu minha reação. Ela não parecia surpresa; parecia aliviada.

    — Quando ela caiu neste lugar… — continuou Zeyra. — Ela permaneceu aqui por cem anos. Cem anos vivendo entre nós, aprendendo nossa língua, ensinando sua magia.
    — Ela registrou tudo o que viveu e descobriu nesse período. Inclusive…

    Zeyra apontou para o livro.

    — …pistas de como subir. De como escapar dessas camadas e voltar para o céu.

    Olhei para a capa gasta.
    O Diário de Julia Silvit.
    Se ela escapou… se a maior lenda da história encontrou um caminho de volta… então havia esperança.

    Zeyra me observava atentamente, um sorriso triste nos lábios.

    — Acredito que você a conheça, pelo modo como sua alma estremeceu. — disse ela. — Então… quando estiver pronto, leia. Estude. E depois… use esse conhecimento na expedição à Tribo do Sol Branco.

    Apertei o livro contra o peito.

    — Obrigado, Zeyra. — Minha voz falhou. — Você não tem ideia do que isso significa.

    — Talvez eu tenha. — respondeu ela, enigmática.

    Naquele momento, na penumbra da biblioteca secreta, a realidade se reescreveu.
    Até aquele dia…
    Eu achava que sabia alguma coisa sobre o meu mundo. Sobre a história, sobre os Ranks, sobre a verdade.
    Mas a verdade é que eu não sabia absolutamente nada. Estávamos brincando de casinha em cima de segredos titânicos.

    E agora, eu segurava o mapa.
    Estava prestes a pisar em uma terra esquecida pela história, guiado pelas palavras de uma morta.
    Um novo destino — talvez o meu verdadeiro, talvez a minha morte — me esperava no Norte.

    E, pela primeira vez em dois anos… eu senti que o caminho para casa tinha se aberto.

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