Capítulo 50: Julia Silvit
Zeyra passou por mim no corredor, o tecido do vestido roçando meu braço levemente.
— Espero que aproveite… — sussurrou ela, a voz carregada de um mistério antigo. — A verdade costuma ter um gosto amargo.
Ela seguiu seu caminho, desaparecendo nas sombras do palácio de pedra.
Eu não queria perder tempo. O peso daquele livro em minhas mãos parecia aumentar a cada segundo, como se a gravidade ao redor dele fosse diferente.
Fui direto para o meu quarto de hóspede.
Fechei a porta e tranquei-a. O silêncio do quarto era absoluto.
Sentei-me na cama rústica, coberta por peles. A luz da Lua Vermelha entrava pela janela, iluminando a capa de couro gasto.
Não havia título. Não havia adornos. Apenas a textura de pele envelhecida.
Respirei fundo. Meus dedos tremeram ao tocar a borda.
Eu estava prestes a olhar para dentro da mente de uma deusa morta.
Abri.
O cheiro de tempo, tinta e sangue seco subiu das páginas amareladas. A caligrafia era elegante, mas firme, de alguém que escrevia com pressa e precisão.
E então… a voz dela invadiu minha mente. Não como uma leitura, mas como uma memória.
O Diário de Julia Silvit.
Era Pré-Fundação.
“Eu nasci em um lugar onde a justiça não era apenas cega; ela estava morta.”
O céu do meu mundo era dominado por sombras aladas.
Dragões.
Bestas colossais de escamas douradas e prateadas sobrevoavam as nossas cabeças, carregando em seus dorsos aqueles que se autodenominavam “Os Escolhidos”.
Era um mundo fraturado, dividido em camadas rígidas. Um sistema tão antigo e cruel que a esperança parecia uma blasfêmia.
Nós, os “Rastejantes”, éramos julgados antes mesmo de aprendermos a falar. O valor de uma vida era definido por um número gravado na carne.
Minha tribo vivia na lama.
Éramos conhecidos por nossos traços que os nobres consideravam “amaldiçoados”: cabelos negros como azeviche e olhos roxos como ametistas brutas.
Vivíamos numa região ironicamente batizada de “Piso do Paraíso”. Um nome poético demais para um lugar que ficava à beira do abismo, onde o vento uivava o nome dos mortos.
Acima de nós, viviam os Clãs Poderosos. O Clã dos Dragões, o Clã do Fogo, o Clã das Flores. Eles viviam no topo, onde diziam que o sol nunca se punha e as cidades eram feitas de ouro maciço.
Nenhum humano nascido entre nós jamais havia subido. A gravidade social era absoluta.
No centro da camada, como um dedo médio apontado para nós, erguia-se a Torre Branca. Diziam que era o teste final, a escada para o céu. Poucos tentaram escalar. Menos ainda voltaram inteiros.
Todo ser humano nascia com um número provisório. Mas, aos dez anos, no “Dia da Marcação”, esse número mudava. Tornava-se definitivo.
Ele decidia seu valor, sua ração de comida, sua dignidade e o preço da sua cabeça.
Os juízes eram os Rankeadores.
Figuras envoltas em mistério, com olhos dourados e pupilas em forma de estrela de sete pontas. Eles desciam dos céus em silêncio, uma vez por ano. Não conversavam. Não demonstravam piedade ou nojo. Apenas cumpriam seu papel burocrático, como deuses entediados carimbando gado.
Naquela época, o menor número já registrado na história era 275.
Esse homem vivia como um imperador.
Quem possuía números altos — milhões, bilhões — era lixo. Mão de obra descartável.
Quem possuía números baixos era reverenciado. Não por inteligência ou bondade. Apenas por Força.
O poder, os “Códigos Genéticos”, nascia com alguns. E a força era a única lei.
Então… chegou o meu dia.
Eu tinha acabado de completar dez anos.
Lembro-me do cheiro de chuva e terra molhada. O céu estava nublado, pesado e cinzento. As pedras do pátio de marcação cortavam meus pés descalços.
As pessoas da minha vila estavam reunidas, cabeças baixas, murmurando orações desesperadas para que suas crianças não recebessem uma sentença de morte numérica.
Eu caminhava em direção ao altar. Estava com frio.
Tropecei numa pedra solta.
Perdi o equilíbrio e, sem querer, esbarrei na perna de um homem.
Era um gigante. Um guerreiro de uma tribo rival, vestindo peles caras.
No pescoço dele, a tatuagem brilhava: 67.000.
Para nós, ele era um nobre. Um poderoso.
Ele olhou para baixo. O olhar dele não tinha humanidade; tinha nojo. Como se eu fosse uma barata que sujou sua bota.
— O que uma pirralha fedorenta está fazendo no meu caminho…? — A voz dele era veneno puro. — E ainda é da Tribo dos Olhos Roxos… Que imundície.
Ele não hesitou.
Não houve aviso.
Ele fechou o punho e me deu um soco no rosto.
O impacto me jogou longe. Meu corpo pequeno voou e bateu na lama.
Senti o gosto metálico de sangue encher minha boca. O mundo girou. Meu ouvido zumbiu.
Ele cuspiu na minha direção.
— Aprenda o seu lugar, lixo.
A praça ficou em silêncio. Ninguém me ajudou. Meus pais abaixaram a cabeça, com medo.
Eu não chorei.
Limpei o sangue da boca com as costas da mão suja. Meus olhos roxos encararam o gigante, gravando o rosto dele na minha memória.
Levantei-me, com as pernas trêmulas, e continuei andando.
Cheguei ao altar.
O Rankeador estava lá. Imóvel.
Ele segurou meu pulso fino e sujo. Seus dedos eram longos, frios como gelo seco.
Ele não olhou para o meu rosto inchado. Ele olhou para o meu braço.
Uma agulha de luz surgiu no dedo dele.
Ele tocou minha pele.
Senti uma queimação. Não doía como o soco; doía como se minha alma estivesse sendo reescrita.
O brilho dourado percorreu minhas veias.
E então… o número apareceu.
Não eram seis dígitos.
Não eram cinco.
Nem quatro, nem três, nem dois.
Apenas um traço.
Simples. Solitário. Absoluto.
1.
O tempo parou.
O Rankeador… tremeu.
Pela primeira vez em séculos, a máscara de indiferença caiu. A estrela em seu olho oscilou, dilatando em choque. Ele soltou meu braço como se tivesse se queimado.
O silêncio na praça mudou de textura. Deixou de ser medo e virou descrença.
As pessoas arregalaram os olhos. O gigante que me bateu ficou pálido. Minha mãe cobriu a boca, sufocando um grito.
Havia terror. Havia veneração. Havia a compreensão de que o mundo tinha acabado de quebrar.
Eu olhei para o meu pulso. Para aquele traço único.
Eu não entendi o que significava na hora. Eu era apenas uma criança que tinha acabado de apanhar.
Mas algo ficou claro nos dias seguintes…
A partir daquele segundo, minha vida acabou. E outra começou.
Minha tribo, antes cuspida e chutada, passou a receber caravanas de ouro.
Nobreza de camadas superiores vinha beijar a barra do meu vestido sujo.
Recebemos alimentos que nunca tínhamos visto. Roupas de seda. Armas de aço.
O homem que me bateu? Foi encontrado morto dois dias depois, executado por “ofensa à coroa”, sem que eu pedisse nada.
Tudo… tudo isso por causa de um simples risco de tinta na minha pele.
“Por que a vida muda tanto por causa de um número…? Por que a humanidade só te enxerga quando você pode esmagá-la?”
Eu fechei minha mão sobre o número.
“Naquele dia chuvoso, a menina morreu. E nasceu a Rank 1.”
“Naquele dia… eu deixei de ser apenas Julia. Eu me tornei a Lei.”
“Quando completei dezesseis anos, o mundo ficou pequeno demais.”
Descobri um segredo enterrado sob camadas de ignorância e medo: uma antiga linhagem, quase extinta, perdida nas dobras do tempo. Eles não eram guerreiros, nem reis. Eram Condutores.
Detinham o poder genético de manipular a frequência da luz. E com esse dom… era possível ativar a espinha dorsal do mundo.
Não era uma escada comum. Era uma estrutura viva, adormecida, esperando o toque certo.
Em apenas dois anos, reuni os remanescentes dessa linhagem — os ancestrais do que hoje chamam de Clã da Luz.
Juntos, fomos ao centro do mundo.
Eles tocaram a pedra branca e fria da torre antiga. Eles entraram nos “circuitos”, nas runas de condução interna.
E fizeram a casca quebrar.
Foi como uma ecdise divina. A pedra branca rachou e caiu, revelando o núcleo.
Luz Pura.
A Grande Torre de Luz nasceu. Um farol que rasgava o céu e o chão, conectando o inferno ao paraíso, brilhando como uma promessa de que não estávamos mais isolados.
Com o tempo, a Torre abriu as portas.
Mais e mais camadas foram reveladas — tanto acima quanto abaixo.
Povos inteiros, civilizações isoladas que achavam ser as únicas no universo, com regras, idiomas e tradições próprias, surgiram diante de nossos olhos.
Eu vi a neve de Jotunheim. Vi as florestas de Alfheim. Vi os rios de Nidavellir.
Assim, mapeei a realidade.
Descobri que existem 10 Camadas onde a humanidade floresceu ou apodreceu. Dei a elas o nomes e as chamei de Camadas Neutras. O palco da nossa história.
E abaixo da Camada 10… o abismo.
Locais onde a física não funcionava, habitados por pesadelos de carne e fome. Dei a eles o nome de Demônios. E chamei aquele lugar de Camadas Negativas.
Mas a Camada 1… Asgard. O topo.
Não havia mais torre para subir além dali. O elevador parava.
Mas quando eu olhava para o céu daquela camada, para o firmamento perfeito… eu sentia. Imaginava que havia algo além da cúpula azul.
Por puro achismo — ou intuição de Rank 1 —, dei o nome àquilo de Camadas Positivas. O lugar inalcançável.
Mas, onde quer que eu fosse, a maldição do número me seguia.
Eu era tratada não como uma líder, mas como uma Deusa literal.
As pessoas não olhavam nos meus olhos; elas beijavam o chão onde eu pisava. Era solitário. Era irritante.
Então, decidi quebrar a última regra.
Encontrei o Chefe dos Rankeadores.
Ele estava num santuário fora do tempo.
Era um ser antigo, curvado pelo peso de milênios. Usava um manto branco que se espalhava pelo chão como névoa, e uma máscara de prata polida em forma de Estrela de Sete Pontas cobria seus olhos cegos. A barba branca tocava seus pés.
— Julia Silvit… — A voz dele era pó e eco. — Você é a primeira Rank de Número 1 em mais de quatro mil anos de história registrada.
Ele se ergueu, flutuando levemente.
— Você fez o impossível. Uniu as tribos. Misturou o sangue. Quebrou as barreiras físicas da Torre. Fez algo que nós, os Observadores, nunca imaginamos que aconteceria… E agora? Agora você vem até mim e me pede para… mudar a Lei?
Eu o encarei. Minha aura não tremia diante da dele.
— Sim. — respondi. — O sistema antigo está podre. Ele cria tiranos, não líderes.
— De agora em diante… O Rank não será definido apenas pela força bruta ou pelo nascimento. Quero um sistema baseado em Lógica, Inteligência, Influência e Capacidade.
— E quero que seja dinâmico. Que todos os anos haja a Reclassificação. Para que os fortes não se acomodem no topo, e para que os fracos não percam a vontade de viver e evoluir.
O Chefe dos Rankeadores ficou em silêncio por um longo tempo.
A máscara brilhou.
— Que assim seja. A Era da Força acabou. Começa a Era da Ordem.
…
A Camada 1.
O tal “Paraíso”.
De fato, as lendas eram reais. Existia uma cidade lá.
A Cidade de Ouro.
Prédios, ruas, estátuas… tudo feito de ouro maciço. Era lindo. E era morto. Era o monumento supremo à ganância e à estagnação dos antigos reis.
Olhei para aquilo. Para aquele brilho amarelo que cegava e não alimentava ninguém.
Dei a ordem.
— Derretam tudo.
Não deixei um tijolo de ouro sobre o outro.
O ouro derretido fluiu como rios de lava amarela, descendo pelos canais, sendo redistribuído para financiar a construção das academias nas camadas inferiores.
E, no lugar da cidade dourada, sobre as cinzas da ganância…
Eu construí algo vivo. Algo que representasse a vida, a cura e a administração justa.
Construí o Palácio de Jade.
“Eu não queria ser uma Deusa num trono de ouro.”
“Eu queria ser humana num mundo justo.”

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