Capítulo 8: Dias passando
Os dias na academia passaram de uma forma surpreendentemente tranquila… ou, pelo menos, tão tranquilos quanto poderiam ser num lugar cheio de monstros em treinamento.
Duas semanas.
Fazia apenas quatorze dias desde que pisei em Fjorheim, e para minha própria surpresa, eu não estava apenas sobrevivendo — estava me adaptando. Claro, ainda havia muita coisa sobre a política das camadas e a teoria da energia que parecia grego para mim, mas eu estava pegando o ritmo.
Muito disso eu devia ao Levi.
Meu colega de quarto era uma figura. Ele me ajudava bastante — e quando digo “bastante”, quero dizer que ele não calava a boca um segundo sequer. Ele tinha uma energia inesgotável, acordava antes do sol para arrumar o cabelo e parecia saber de tudo o que acontecia nos corredores antes mesmo dos boatos começarem.
Ele já tinha virado amigo do Shin também. A dinâmica era estranha, mas funcionava: Levi, o extravagante veterano Rank B; Shin, o nobre tranquilo e misterioso; e eu, o novato do olho rosa.
Levi nos chamava de “Garoto Orquídea” e “Garoto Shin” com uma naturalidade que beirava o ridículo, como se fôssemos seus protegidos ou mascotes de luxo. Era meio vergonhoso no começo, mas… com o tempo, acabou ficando engraçado.
Entre as aulas teóricas e a convivência no dormitório, eu me enterrei nos treinos práticos.
Eu precisava dominar meu Código Genético. Precisava entender minha adaga. O professor Ative (com sua obsessão por cálculos de energia) e o Ren têm me ajudado com frequência — especialmente nesta última semana.
Ren, por incrível que pareça, tinha uma paciência absurda para ensinar. Ele sempre encontrava um jeito de descomplicar o impossível, transformando movimentos complexos em algo instintivo.
Os campos de treino da academia estavam sempre cheios. O som de metal colidindo e explosões de energia era a trilha sonora constante. E lá em cima, nas varandas de observação, Sayra ou Cael estavam sempre presentes. Assistindo. Aquele olhar deles… parecia atravessar a carne e julgar a alma.
Mas nem tudo era treino. Havia mistérios que me incomodavam.
Aquela garota… a Mina.
Eu ainda não tinha conseguido trocar uma única palavra com ela. Só de pensar em me aproximar, meu estômago dava um nó. A aura dela era intocável.
A dúvida sobre ela ser filha da Rank 4, Una Mei, não saía da minha cabeça. Como eu não sou bobo e a curiosidade é meu defeito fatal, fui atrás de informação. Usei uma das salas da Mansão Roxa, que servia como uma biblioteca digital, e acessei a tal “Rede de Comunicação”.
Digitei o nome: Una Mei.
A tela se encheu de imagens. Ela era o Rank 4 do mundo. O sinônimo absoluto de beleza em todas as 10 Camadas.
Fiquei encarando as fotos por um longo tempo. Ela era o equilíbrio perfeito entre beleza e presença esmagadora. Os traços eram suaves, simétricos, como se desenhados à mão por uma divindade caprichosa. O cabelo negro, liso e longo, sempre preso num penteado tradicional complexo que gritava nobreza e classe — idêntico ao estilo do Clã Misticia.
Os olhos eram puxados, serenos… mas tinham uma profundidade que assustava. Como se ela visse o futuro e não gostasse do que via.
Havia, sim, uma semelhança inegável com Mina. O formato do rosto, o olhar…
Mas todos os registros oficiais, todas as biografias, diziam a mesma coisa em letras garrafais: “Sem descendentes conhecidos.”
Ela era a figura mais pública dos Top 10. Até mais exposta que o Rei dos Reis, Sol’zher, que raramente aparecia em imagens. Se ela tivesse uma filha, o mundo saberia… não saberia?
Minha cabeça estava cheia dessas teorias quando, naquele mesmo dia, tive uma conversa com o professor Ren que mudou minha perspectiva sobre mim mesmo.
Estávamos no campo de treino, o sol poente tingindo o céu de laranja.
— Você me disse que, com seu código, você cria um armazenamento… mas você pode entrar nele, não é? — Ren perguntou, limpando o suor da testa.
— Sim, eu posso — respondi, ainda ofegante do treino.
Ren parou, me analisando com aquele olhar de brasa.
— Então não é um armazenamento literal, Ken. Se levarmos em conta que você pode entrar dentro dos seus portais e sair em outro ponto… você não está apenas guardando coisas. Você pode se teleportar.
Escutar aquilo em voz alta parecia loucura.
Mas, no fundo, fazia sentido. Eu conseguia entrar dentro do espaço. Era um vazio absoluto, escuro, sem chão ou teto, onde a gravidade não existia, mas eu conseguia me “apoiar” na própria escuridão.
Aprendi isso sozinho quando criança. Era meu esconderijo. Sempre que Katarina brigava comigo ou quando o mundo parecia barulhento demais, eu sumia.
Lembro dela desesperada, gritando meu nome pela casa vazia, enquanto eu estava lá dentro, no silêncio, seguro.
Uma vez, tentei mostrar para ela. Pedi para ela entrar comigo.
Ela não conseguiu. A mão dela passou direto pelo portal, como se fosse fumaça. Para ela, era apenas visual. Para mim, era sólido.
Ren coçou o queixo, pensativo.
— Isso muda tudo. Vamos focar nisso nos próximos dias. Se você dominar a entrada e a saída… você será intocável.
Saí do treino com a cabeça girando. Teleporte. Intangibilidade. As possibilidades eram insanas.
Eu caminhava pelo corredor de mármore do prédio principal, exausto, querendo apenas minha cama e o silêncio (se o Levi permitisse), quando ouvi passos apressados e desajeitados atrás de mim.
Tup, tup, tup.
Virei o rosto.
Cabelos rosa bagunçados. Rosto corado de quem correu uma maratona. Olhos verdes grandes e tímidos.
— O-oi…
Era Holi Resca.
Ela parou na minha frente, tentando recuperar o fôlego, com os dedos entrelaçados nervosamente na frente do corpo. Os olhos dela evitavam os meus, focando no chão, na parede, em qualquer lugar, até finalmente encontrarem meu rosto com um brilho de ansiedade.
— Eu sei que é meio vergonhoso vir assim do nada, mas… — ela mordeu o lábio inferior. — Eu queria ser amiga de vocês. Eu observo vocês de longe. Seu nome é Ken, né? Meu nome é Holi Resca… você deve saber, né?
Ela era bonita — não tinha como negar. Havia uma delicadeza nela que dava vontade de proteger. Mas essa timidez toda criava um contraste curioso, quase cômico, com a memória que eu tinha dela no campo de batalha, aguentando pancadas de uma Rankeadora sem piscar.
— Certo… — respondi, soltando um leve sorriso para tentar deixá-la confortável. — Pode ser nossa amiga, Holi. Na verdade, seria divertido ter uma garota no grupo. Até porque… parece que a prova daqui a três meses vai ser em equipe mesmo.
Os olhos dela se arregalaram levemente. E então, um brilho genuíno de alegria tomou conta do rosto dela. O tipo de sorriso que aquece o ambiente e faz você baixar a guarda.
— Sério? Obrigada, Ken!
Holi, na minha visão superficial, parecia ser daquelas garotas tímidas, meio bobinhas — do tipo que tropeça nas próprias palavras e pede desculpas para a mesa quando esbarra nela.
Mas, enquanto ela sorria, eu não conseguia ignorar o instinto que apitava no fundo da minha mente.
Havia algo nela que eu não conseguia decifrar.
Algo estranho.
Era como se existisse uma camada muito mais profunda, densa e talvez perigosa, escondida bem atrás daquele jeito delicado e daquele cabelo cor-de-rosa.
— Vamos indo? — chamei. — O Shin e o Levi devem estar no refeitório.
— V-vamos! — ela concordou, saltitando ao meu lado.
Mal sabia eu que aquele grupo improvável seria o início de tudo.
Levei-a até o refeitório, onde o barulho de talheres e conversas preenchia o ar. Quando chegamos à mesa e a apresentei ao grupo, a reação foi exatamente o que eu esperava — pelo menos, vinda dele.
Levi se levantou da cadeira num movimento fluido, como se estivesse num palco, e fez uma reverência exageradamente elegante. Ele pegou a mão de Holi com delicadeza e a beijou, sem tirar os olhos dela.
— É um prazer imenso, senhorita Holi — disse ele, com aquele sorriso encantador e predador que mais parecia pertencer a um nobre num baile real do que a um estudante num refeitório escolar.
Holi corou violentamente, encolhendo-se um pouco, mas Levi manteve o sorriso. E bom… considerando quem ele é, até fazia sentido.
Com o passar dos dias, fui montando o quebra-cabeça que eram meus novos companheiros.
Levi Gressi vinha, de fato, da família Gressi, uma linhagem nobre tradicional da Terceira Camada. Eram ricos, influentes, donos de terras e minas, mas “nada de outro mundo” — pelo menos era o que ele dizia enquanto penteava o cabelo pela décima vez no dia.
Já o Shin… ele foi a surpresa. Com aquela postura calma e o olhar nobre, eu jurava que ele tinha crescido em algum palácio. Mas não. Ele nasceu na Camada 5, Jotunheim, assim como eu. Foi criado pela irmã mais velha, Kaede, e isso parecia ter moldado a forma como ele encarava o mundo: com seriedade e gratidão. Ele falava pouco sobre o passado, mas quando mencionava a irmã, a voz dele carregava um respeito absoluto.
E Holi… ela era uma incógnita completa.
Não falava da vida fora da academia. Mas o jeito refinado como segurava os talheres, a postura sempre ereta e os acessórios — presilhas de cabelo e anéis que pareciam simples, mas brilhavam com pedras que eu nunca tinha visto — gritavam “dinheiro velho”. Talvez a família dela fosse até mais rica que a do Levi.
Alguns dias depois, a rotina me levou para os corredores da Mansão Laranja.
Eu carregava uma pilha de livros, acompanhando a Professora Helena. Ela era, sem dúvida, uma das figuras mais peculiares do corpo docente. Seu campo de estudo eram as “raças” e a biologia das camadas, mas naquele dia, ela estava estranhamente empolgada com um assunto que parecia conto de fadas para nós.
— A Lua… — Helena dizia, os olhos brilhando por trás das olheiras profundas. — É um corpo celeste que aparece no céu à noite. Um reflexo suave e prateado da luz do sol.
A voz dela era lenta, quase cantada, como se estivesse recitando poesia para uma sala vazia.
— Mas claro, aqui em Midgard, na Camada 4, ninguém jamais viu uma. As estrelas são tudo o que temos. Um céu pontilhado, mas sem a rainha da noite.
Fiquei apenas assentindo com a cabeça. Para quem nasceu aqui, a Lua é um mito. Em Jotunheim, na Camada 5, existe algo parecido — uma forma pálida e minguante no céu, como se algo tivesse comido metade dela. Mas aqui? Apenas o vazio estrelado.
Enquanto ela divagava sobre marés e gravidade, notei algo que me puxou para fora da conversa.
Olhei pela janela do corredor.
Lá fora, sob a sombra de uma árvore antiga de folhas vermelhas, estava ela.
Mina Mei.
Sozinha.
Havia outros alunos espalhados pelo gramado, rindo, conversando, treinando. Mas ao redor dela existia um círculo vazio. Uma barreira invisível, feita de respeito e medo, que ninguém ousava cruzar. Ela estava apenas ali… em silêncio, olhando para o nada, os cabelos negros escorrendo como seda líquida sobre os ombros. O vento movia as folhas, mas ela parecia imóvel, uma pintura estática num mundo em movimento.
— Você quer falar com ela, não quer?
A voz de Helena surgiu bem ao lado do meu ouvido, num tom adocicado e provocador. Pulei de susto.
— Vai lá, garoto — ela continuou, rindo baixo. — É bonito ver garotos da sua idade se apaixonando. O amor jovem é tão… biologicamente fascinante.
Revirei os olhos, sentindo o rosto esquentar, meio sem paciência para as excentricidades dela.
— Não é isso, professora. Só… só acho estranho ela estar sempre sozinha.
— Sabia que membros do Clã Misticia não precisam usar uniformes, nem mesmo quando trabalham nos Palácios Principais? — Helena comentou, olhando para Mina também. — É a cultura deles. Eles vivem em um mundo próprio, Ken. A solidão para eles não é um castigo. É um estado natural.
Eu mal ouvi. Meus olhos ainda estavam presos na figura solitária de Mina.
— Hmmm… — Helena percebeu que eu não estava mais ouvindo e voltou a viajar nos próprios devaneios, com aquele sorrisinho bobo no rosto.
Depois de terminar de ajudá-la com os papéis, decidi seguir o conselho do Levi e dar uma passada na Arena dos Veteranos, onde o pessoal do terceiro ano treinava.
“Dá perspectiva, Garoto Orquídea!”, ele tinha dito. “Você precisa ver o que é poder de verdade para saber onde quer chegar.”
Bom, ele estava certo. Mas eu não estava preparado para o que veria.
Mal cheguei à arquibancada de pedra e o que vi me travou no lugar.
Solara Whitmore.
Ela estava no centro da arena. De pé. Sozinha.
Parecia uma rainha imbatível contemplando seu reino de destruição. Seu corpo estava ereto, os cabelos dourados ondulando violentamente com um vento quente que parecia emanar dela mesma.
Ao redor dela… caos.
Dezenas de alunos — veteranos, gente forte — estavam no chão. Alguns gemiam de dor, segurando queimaduras ou membros dormentes. Outros estavam completamente apagados. A fumaça subia dos corpos e do chão chamuscado, ondulando no ar como véus de derrota.
“Ela usou fogo?” — pensei, sentindo o calor bater no meu rosto mesmo àquela distância. “Talvez o código genético dela seja solar… ou algo pior.”
Mas aquilo não parecia apenas “poder”. Parecia uma presença divina. Esmagadora.
Solara ergueu o rosto, os olhos dourados brilhando com as três estrelas negras girando lentamente na íris. Ela parecia entediada.
Foi nesse momento que percebi algo estranho ao meu lado.
Havia três pessoas paradas perto de mim na arquibancada. Todas usavam um gorro peculiar, cobrindo parte do rosto, com o símbolo de um sol dividido ao meio bordado em fio laranja.
Eram do Templo Fjell. Um culto religioso recente que começava a ganhar força nas camadas, mas que ainda era pequeno.
Ouvi um deles sussurrar, a voz cheia de reverência e temor:
— Não era de se duvidar… da Quarta Filha do Sol.
Eu escutei aquilo. As palavras entraram no meu ouvido, mas na hora, saíram pelo outro. “Filha do Sol”? Provavelmente algum título religioso maluco que eles davam para gente forte. Ignorei.
Quando eles se afastaram, notei outra pessoa se aproximando da grade da arena, vindo na minha direção.
Mina.
Ela não olhava para mim. Ela observava Solara lá embaixo com uma atenção clínica, quase como se estivesse analisando uma obra de arte complexa… ou dissecando um monstro com o olhar.
— É inacreditável — murmurou ela, a voz suave, como se falasse sozinha. — Alguém como ela estar numa academia dessas… quando poderia estar nas Academias Imperiais de Asgard. É um desperdício de talento. Ou uma punição.
Fiquei em silêncio, tenso, sem saber se deveria responder ou se estava me intrometendo num monólogo.
Mas então, ela virou o rosto lentamente.
Os olhos dela, profundos e indecifráveis, encontraram os meus. Havia uma suavidade neles, mas também algo afiado, como uma lâmina escondida em veludo.
— Você é Ken Orquídea, não é? — perguntou. — O membro perdido do Clã da Escuridão?
Aquilo me pegou desprevenido.
Ela falava meu nome com uma naturalidade assustadora, como se tivesse certeza absoluta de quem eu era. Como se eu fosse… importante.
— Nossos clãs, o Misticia e o da Escuridão, têm uma relação razoável, pelo que sei — continuou ela, num tom neutro, mas agora com uma pitada de desafio colorindo as palavras. — A história diz que somos compatíveis em combate.
Ela inclinou a cabeça levemente para o lado, os cabelos negros deslizando pelo ombro.
— Quer lutar comigo?
Eu pisquei, atônito. O barulho da arena sumiu.
— …
Pera. O quê?

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