Capítulo 9: Fundo do abismo
Lysanthir jazia no chão, cuspindo sangue, os olhos vidrados, a respiração falhando como se o próprio corpo não soubesse mais como continuar. Cada inspiração era um estalo sufocado, cada exalação uma rajada de sangue que manchava o chão seco da camada -51.
Cedric ficou parado por um momento. Seu punho cerrava e abria sem controle, mas sua voz saiu… calma. Contida.
— …Por quê? — ele perguntou, encarando Nytharia como se ainda tentasse se convencer de que aquilo era algum tipo de erro — Me diz… Qual é o motivo?
Nytharia limpou um pouco do sangue de sua bochecha com a mão ensanguentada e, com a mesma calma de sempre, respondeu:
— Vocês foram descartados. — disse como se estivesse explicando uma mudança de clima. — Tornaram-se perigosos demais para os planos do rei Esmeralda. O grupo de Acara ter subido foi… conveniente. Facilitou as coisas. Os dois erros genéticos foram um azar, mas eles poderiam ter matado vocês dois para facilitar.
Um silêncio cortante caiu.
As veias no pescoço e na testa de Cedric saltaram. A expressão calma foi substituída por um ódio quase monstruoso, transbordando pelos olhos arregalados.
— …Eu vou te matar… — rosnou entre os dentes cerrados — Sua vagabunda.
Nytharia, ainda com aquele sorriso suave e delicado, levantou a mão manchada de vermelho e apontou para ele.
— Flor da Penumbra – Lótus de Jade Negra.
De sua palma, uma névoa escura em forma de fita serpenteou pelo ar, indo direto na direção de Cedric. Mas ele não recuou.
Ele avançou.
Não correu — investiu como um touro enfurecido, ignorando a névoa, ignorando o risco. O olhar era de alguém que já havia aceitado morrer, desde que levasse alguém junto.
Surpresa, Nytharia tentou perfurar o peito dele com a mão novamente, mas errou. Cedric desviou no último segundo e, com um movimento brusco, lançou dezenas de linhas prateadas do nada, que se prenderam ao braço dela.
Ele puxou.
As linhas cortaram a carne como navalhas, deixando rasgos profundos no braço dela, expondo tendões e músculos. Mas não arrancaram o membro — só rasgaram com brutalidade.
Nytharia não gritou. Não gemeu. Nem sequer piscou.
Cedric não esperou. Correu até Lysanthir, o pegou nos braços e recuou para trás, os olhos agora cheios de urgência.
Lysanthir ainda respirava. Fraco, quase imperceptível. Mas estava vivo.
— Droga… — sussurrou Cedric. — Eu nem conheço direito sua vida, Lys… — mordeu os lábios, as mãos tremendo — Mas… acho que você é meu primeiro amigo de verdade.
Com os olhos marejando e as mãos trêmulas, Cedric tocou a ferida do companheiro. As linhas surgiram novamente, e começaram a costurar a carne aberta, como agulhas guiadas por pura força de vontade.
Mas naquele momento — algo mudou.
Cedric tossiu sangue.
Muito sangue.
A vermelhidão jorrou da boca e escorreu pelo queixo. Seu nariz começou a sangrar. Depois os ouvidos. Os olhos.
Nytharia estreitou os olhos, observando. Curiosa. Fascinada.
— Entendi… — murmurou. — Isso é… a primeira vez que vejo um “Sistema de Equilíbrio”.
Cedric se ergueu devagar.
Os joelhos tremiam, o sangue escorria de cada parte do rosto, mas seus olhos estavam queimando. Como se o próprio inferno tivesse nascido dentro dele.
Ele não dizia nada. Mas o corpo falava por ele.
Raiva.
Dor.
Propósito.
Ódio.
Três gatilhos perfeitos.
E então… as linhas se manifestaram novamente. De forma descontrolada. Selvagem.
Elas explodiram no ar ao redor dele como um vendaval invisível de lâminas. E no instante seguinte — CHAK!
As linhas cortaram o ar e atravessaram Nytharia de todos os lados. Pescoço. Braços. Barriga. Pernas. Ombros.
Cortes profundos rasgaram a carne dela como se fossem páginas de um livro. Ela cambaleou, tossindo, finalmente sentindo a dor. Mas mesmo caída no chão… ainda estava viva.
Sangue escorria por todo o seu corpo.
Cedric tentou dar mais um passo.
Mas… seu corpo não obedeceu.
Tossiu novamente, desta vez com mais força. O sangue não parava de jorrar — escorrendo da boca como uma fonte quebrada. As pernas cederam. A visão ficou turva.
Nytharia, de joelhos, toda coberta de cortes, sorriu.
Um sorriso suave. Sincero.
— Estou… lisonjeada… — sussurrou — Por ter presenciado algo assim.
Cedric só arfava.
Não conseguia nem formular uma frase.
Mas os olhos dele… ainda diziam tudo.
Passos lentos ecoaram pela terra manchada de sangue.
Nytharia caminhava em direção a Cedric, a luz morna de sua aura contrastando com o cenário brutal. O chão ainda carregava o cheiro de sangue quente e carne rasgada, mas ela parecia imperturbável, quase serena demais.
— Com vocês descartados… — disse ela, com a voz suave como seda velha — Daremos mais um passo em direção às camadas positivas.
Ela ergueu o braço direito devagar, como quem faz um juramento sagrado.
— O Rei Esmeralda irá guiar o povo escolhido para cima. Tomaremos o que pertence aos Criadores. — seus olhos brilharam com um fanatismo elegante.
Com um gesto seco, ela lançou um corte certeiro contra Cedric. O impacto não foi apenas físico — foi como se toda a energia que ele reunira até ali tivesse sido drenada num piscar de olhos.
Seu corpo caiu no chão com um baque surdo, os olhos sem força, os músculos sem comando. Quase inconsciente. Quase morto.
Nytharia limpou o canto da boca com o dorso da mão, como se limpasse migalhas, e falou consigo mesma, com a mesma calma impecável de antes:
— Não imaginei sair com todos esses ferimentos… — suspirou, como quem reclama de um arranhão no dedo.
Ela se agachou, pegando Cedric e Lysanthir, um em cada mão, como se carregasse bonecos quebrados. Caminhou até a beirada do precipício, onde o vento uivava como um lamento antigo, e sem hesitar… os jogou.
O mundo girou.
Cedric ainda conseguia pensar — meio apagado, meio lúcido.
“Merda… então é assim que eu vou morrer?”
Depois, o nada.
Quando abriu os olhos, a luz era tênue e suave. Estava deitado sobre uma superfície fria e irregular. Seu corpo doía, mas não como antes. Havia calor… e cheiro de fumaça.
Cedric se sentou bruscamente, ignorando a dor que imediatamente subiu pelas costas como fogo. Seu corpo estava coberto por faixas improvisadas… feitas de folhas?
Na sua frente, uma fogueira crepitava, iluminando as paredes de pedra da caverna. Do lado de fora, neve caía em flocos lentos, como se o mundo tivesse desacelerado.
— O quê…? Isso é o céu? Eu morri…? — sussurrou, a voz rouca, confusa. Ele olhava ao redor tentando entender. Nada fazia sentido.
Foi então que ouviu passos.
E lá estava ele — Lysanthir, entrando pela boca da caverna com um cervo nos ombros.
— Que bom que acordou. — disse com aquele jeito seco de sempre.
Cedric se levantou tão rápido que quase caiu. Não pensou duas vezes: correu até Lysanthir e o abraçou, apertado, ignorando a dor, ignorando tudo.
— Isso é… constrangedor. — murmurou Lysanthir, desviando o olhar. — Não faça isso.
— Como você tá vivo, cara…? — a voz de Cedric tremia — Como a gente tá aqui?
— Não faço a menor ideia. Quando acordei, estávamos jogados lá fora, cobertos de neve. Tava frio pra caramba… então te arrastei até aqui. Você tava… mal. Muito mal.
Cedric sentou com um suspiro profundo, e a dor finalmente bateu de verdade. Seu corpo inteiro parecia ter sido esmagado.
— E onde a gente tá agora…? — perguntou, encarando a neve além da entrada da caverna — A gente caiu da camada -51, lembra?
Lysanthir deixou o cervo no chão e começou a preparar a carne com uma faca improvisada.
— A humanidade… só conseguiu chegar até a camada -70 em toda a história. Isso faz quase mil anos. E como eu sou explorador das camadas negativas, eu conheço cada uma delas… e posso afirmar: essa aqui — ele parou, olhando para fora — essa aqui não é nenhuma delas.
Cedric engoliu seco.
— Tá dizendo que… a gente tá onde, então?
— Num lugar desconhecido. Inacreditável. Algo que não deveria existir… mas aqui estamos.
Cedric olhou para o fogo. O calor era real. A dor também. Isso não era um sonho.
— E agora…? O que a gente faz?
Lysanthir começou a cortar o cervo com calma, mas o tom da sua voz pesava como uma premonição:
— A gente tem que voltar. Subir. Contar o que aconteceu.
Ele fez uma pausa, encarando as chamas como se enxergasse o futuro nelas.
— Primeiro quero te mostrar uma coisa.
Cedric seguiu Lysanthir para fora da caverna, e o frio o atingiu como um soco seco no estômago. A neve caía em flocos grossos, dançando no ar como cinzas de um fogo distante. O céu acinzentado pesava sobre eles, e tudo ao redor estava mergulhado num silêncio gelado, quebrado apenas pelo som abafado dos passos afundando na neve fofa.
Eles caminharam até a borda de uma floresta sombria, onde as árvores altas e retorcidas balançavam suavemente, cobertas por uma camada branca espessa. Cedric estava prestes a perguntar o motivo da parada quando paralisou.
Ali, entre as sombras dos pinheiros, uma figura surgiu.
Não era o tipo de coisa que se vê e simplesmente aceita. Não de primeira. Ele parecia humano — ou talvez fosse o que restava de um. Vestia um manto tribal pesado, tingido em tons intensos de vermelho e negro como obsidiana quebrada. Era algo entre cerimonial e pronto para guerra, com tiras e fibras orgânicas trançadas à mão, cruzando seu corpo como se fizessem parte dele.
Uma máscara cobria seu rosto. Vermelha, com símbolos tribais entalhados em curvas agressivas, e chifres curvos saindo dos lados como se fossem parte do crânio. Seu corpo — visível apenas pelas brechas do traje — estava coberto por tatuagens que pareciam pulsar em um ritmo sutil, quase como se estivessem respirando. As mãos e os pés envoltos por tiras rituais revelavam garras negras, afiadas, adaptadas para caça. Um guerreiro. Um espírito? Ou algo entre os dois?
Cedric engoliu seco.
— Lysanthir… o que… o que é isso?
Lysanthir manteve os olhos fixos na figura. Sua voz soou tensa.
— Eu tive o desprazer de cruzar com ele antes.
— Ele é perigoso?
— Não fala a nossa língua… mas até agora não tentou me matar. Então… acho que é “bonzinho”?
Antes que Cedric pudesse reagir, o ser deu um passo à frente e falou algo, a voz profunda e rascante cortando o ar gelado:
— Peẽ nderehegua oĩ hína iñambue umi normal ko’ã tenda, peẽ ohechauka iñambue.
Cedric olhou para Lysanthir, confuso.
— Isso foi… Que língua e essa?
— Não faço a mínima ideia — respondeu Lysanthir, já se agachando.
Ele pegou um graveto e começou a desenhar na neve. Fez três figuras humanas. Escreveu “Lysanthir” sobre uma, “Cedric” sobre outra, e apontou para a terceira, olhando para o estranho.
Tentou falar devagar, usando gestos.
— Nossos nomes… qual é o seu?
O ser os observou. Após um breve silêncio, murmurou:
— Lysanthir ha Cedric…
Virou-se lentamente e, com um movimento firme, apontou para si mesmo.
— Aruan-Kaê.
Em seguida, pegou outro galho. Desenhou no chão uma única casa com duas pessoas dentro, e depois várias casas agrupadas com várias pessoas. Circulou as figuras com precisão, indicando um fluxo, uma conexão. Um convite.
— Ele quer que a gente vá pra vila dele — disse Lysanthir, se levantando.
— E você confia nele assim?
Lysanthir deu de ombros e sorriu, com aquele ar desleixado e irônico que só ele tinha.
— Já tô no fundo do poço, né? E tecnicamente eu já morri uma vez. Qual é o pior que pode acontecer? Hahaha…
Cedric bufou, sem escolha. Seguiram Aruan-Kaê pela floresta, neve cobrindo cada passo, silêncio engolindo o caminho.
Horas depois, escalaram uma montanha coberta de gelo. O vento era cruel ali em cima, mas a vista fazia tudo valer a pena.
Aruan parou, ergueu o braço e bateu no próprio peito.
— Kura’ru.
Apontou para o horizonte.
Mesmo em meio à tempestade de neve, Cedric conseguiu ver. Uma aldeia, parcialmente escondida pela névoa e as árvores. Mas era imponente.
Uma vila viva. Pulsante.
A vila se espalha em espiral, com casas hexagonais de madeira escarlate, dispostas em círculos concêntrico. Cada casa é construída com madeira talvez extraída das árvores carmesins que brilham tenuemente. Os telhados são cobertos por escamas negras endurecidas. De cima, essas casas parecem flores carnívoras adormecidas.
Entre os círculos de moradia, há trilhas suspensas feitas de cipós trançados e ossos esculpidos, formando pontes e caminhos elevados que conectam toda a vila como veias pulsantes.
Árvores gigantescas, crescem no centro de cada círculo habitacional, e suas raízes formam pequenos santuários ao nível do chão. Essas árvores possuem folhas vermelhas transparentes que vibram como membranas com o som do vento, emitindo tons melódicos que servem como comunicação tribal à distância.
No centro de toda a espiral tribal, ergue-se um palácio, parecendo um Conselho de Sangue. Sua arquitetura é inigualável: construído dentro e ao redor de uma imensa cratera vermelha, o palácio foi escavado direto no núcleo rochoso incandescente da camada. A lava passiva do solo foi domesticada, correndo em canais entalhados que brilham como veias abertas.
A estrutura em si se eleva em torres entrelaçadas em forma de espinhos carmesins, com detalhes em pedra obsidiana esculpida com runas. As paredes exteriores são cobertas por tecidos sagrados que se movimentam sozinhos com o fluxo com um Sol de vermelho estampado, como se o palácio estivesse respirando.
No topo da torre central está um Olho uma lente cristalina ancestral que canaliza a luz, Talvez só sol em feixes concentrados.
Os dois olharam com uma mistura de fascínio e surpresa por terem descoberto uma civilização mas camadas negativas
Mas…
Tudo aquilo que Lysanthir e Cedric viveram… nem mesmo eu, naquele momento, fazia ideia do impacto que teria.
Enquanto isso, na academia de Fjorheim, eu estava apenas vivendo mais um dia comum.
Treinando com Shin, Holi e Levi… e com minha mais nova amiga, Mina Mei.
Mas nessa torre gigantesca de camadas que chamamos de mundo… engrenagens começaram a girar.
E o caos não estava apenas nas camadas negativas.
Ele estava subindo.
E alcançaria até mesmo as camadas neutras.
Na camada -4
Um ponto estranho, suspenso entre o inferno das profundezas. A região era um pântano sem fim, onde a água escura cobria quase tudo, e as pedras se erguiam como pequenas ilhas solitárias no mar de lama. O ar era denso, úmido… e completamente silencioso.
Sentada sobre uma dessas pedras, havia uma figura imponente, quase fora de lugar naquele cenário.
Acara.
Ela segurava uma coxa de carne entre os dedos, mastigando com calma, como se estivesse saboreando cada fibra do que quer que aquilo fosse — alguma criatura de aparência duvidosa, mas provavelmente mortal.
Seu quimono negro com padrões florais em tons profundos reluzia sob a luz opaca da camada, como seda envenenada. Os detalhes metálicos refletiam a luz rarefeita da região, destacando ainda mais sua presença. Seu cabelo, preto como carvão, estava preso em dois coques altos e simétricos, e franjas longas caiam por um dos lados do rosto, escondendo parcialmente o brilho cortante de um de seus olhos roxos.
Olhos que não apenas viam, mas julgavam.
Ela não precisava gritar para ser ouvida. Sua simples presença impunha silêncio.
De repente, passos quebraram a quietude da água. Um homem caminhava com cuidado pelas pedras irregulares, seus olhos também roxos e o cabelo escuro denunciando sua origem: Clã da Escuridão.
Ele parou a poucos metros da mulher.
— Senhorita Achlys… — disse, com respeito contido — Precisamos ir. Como foi solicitado, já deveríamos estar no Palácio de Jade há dias.
Acara mordeu mais um pedaço da carne, mastigando com desprezo evidente. Engoliu com lentidão, limpando os dedos na barra do próprio quimono antes de se virar parcialmente para o homem.
— E eu lá me importo…? — sua voz era seca, cortante como uma lâmina mal embainhada. — Se o Palácio de Jade quer a minha presença, que esperem. Eu esperava ter chegado até a camada -51. Queria ver com meus próprios olhos… erros genéticos, demônios que destroem com um sopro, qualquer coisa que tenha massacrado os meus homens.
Seu tom não carregava luto. Era mais… frustração.
Frustração por não ter participado do massacre.
O homem hesitou por um instante. Então falou, com uma ponta de cautela:
— Vendo seu rank…
Acara se levantou lentamente. E nesse momento, o tecido escorregou levemente de seus ombros, revelando parte de sua pele clara… e marcada. No trapézio esquerdo, cravado como uma tatuagem sagrada: o número 30.
Rank 30 do mundo.
— A senhora ainda tem responsabilidades. — continuou o homem, a voz mais firme — Como chefe de um dos quatro grandes clãs, seu papel no Palácio de Jade não pode ser ignorado.
Acara bufou, um som leve e carregado de tédio. Ela girou o corpo e saltou da pedra diretamente na água barrenta. O impacto fez um respingo ecoar na região silenciosa.
— Que inferno… — murmurou enquanto a água subia até seus joelhos — Espero, ao menos, que essa maldita viagem valha a pena.
Ela começou a caminhar, ignorando por completo a lama que sujava a barra do quimono. Era como se cada passo que dava na água fosse um aviso: Acara Achlys estava a caminho… e o mundo precisava prestar atenção.
O homem soltou um suspiro cansado, passando a mão pelo cabelo antes de começar a segui-la, pisando com cuidado nas pedras molhadas.
Eles desapareceram entre a névoa da camada -4.
E o eco das palavras dela ainda parecia vibrar na água imóvel.
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