Capítulo Prólogo
Um sonho.
Tinha que ser um sonho. Ou, pelo menos, era o que eu repetia para mim mesmo, como um mantra inútil.
Depois de tudo o que vivi nesse mundo podre, onde cada aperto de mão pode esconder uma lâmina e “confiança” é só uma palavra bonita para “fraqueza”, sonhar parecia um luxo proibido. Um que eu certamente não merecia.
Eu estava ali, afundado. O corpo jogado numa velha cadeira de madeira que rangia em protesto a cada respiração minha, como se ameaçasse se desfazer. Cotovelos cravados nos joelhos, cabeça baixa. O peso nos meus ombros não era cansaço. Era culpa. Era o mundo.
O cheiro de poeira e papel antigo era tão denso que quase sufocava, grudando na garganta. Ao meu redor, um caos silencioso: livros. Milhares deles. Uma tempestade de conhecimento varrido, volumes jogados pelo chão, abertos em páginas esquecidas, empilhados como lápides tortas.
Esta não era uma biblioteca comum. Era um abismo.
As prateleiras de madeira escura subiam até onde a vista não alcançava, perdendo-se numa escuridão que engolia a luz. Corredores se estendiam para sempre, como uma ilusão de ótica, um labirinto infinito projetado para prender e enlouquecer.
Sufocante. Silencioso demais. Infinito demais.
O silêncio era tão absoluto, tão pesado, que o estalar do meu pescoço, quando finalmente levantei a cabeça, soou como um trovão profano.
E foi então que a vi.
Ela estava ali. Não sentada em algo, mas pairando. Ela repousava no próprio ar como se ele fosse um trono invisível, esculpido para deuses. Pernas cruzadas, postura de uma rainha que jamais conheceu a dúvida.
Seus cabelos… longos demais para serem reais. Cascatas de um castanho profundo que cobriam suas costas por completo e flutuavam lentamente ao seu redor, como algas preciosas na mais calma das águas, desafiando qualquer lógica. O próprio ar parecia distorcido perto dela, vibrando como uma névoa de calor, venerando sua presença.
Mas foram os olhos que congelaram meu sangue.
Aqueles malditos olhos.
Não havia íris. Não havia pupilas. Nenhuma cor. Apenas duas esferas de luz leitosa, pura, que pareciam sugar toda a cor e esperança do ambiente. Globos brancos e brilhantes que viam tudo. Como se alguém tivesse arrancado o sentido da humanidade dali e substituído por algo… divino. Ou demoníaco.
Ela sorriu.
E aquele sorriso foi pior que um grito de agonia. Era a curva suave de lábios que sabiam de todos os seus pecados. Havia uma crueldade contida ali. Uma diversão sádica. Uma verdade que eu passara anos enterrando.
Então, ela falou. A voz não veio de seus lábios; ela simplesmente aconteceu dentro da minha cabeça. Fria, clara e impossível de ignorar, como um sussurro de gelo direto na alma.
— Ken Orquídea…
Meu nome, dito por ela, soou como uma sentença. Um calafrio percorreu minha espinha, fazendo cada pelo do meu corpo se eriçar.
— Você já se arrependeu de algo que fez até agora? — A voz dela era seda e veneno. — Desde o dia em que sua mãe adotiva foi sequestrada, você sequer se deu ao trabalho de procurá-la…
Cada palavra era um martelo. Um golpe direto no meu estômago.
— Mas para alguém que mata por prazer, talvez isso não signifique nada, não é mesmo?
Minha garganta secou. A boca abriu, mas o som não saiu. Eu queria gritar, queria xingar, queria pular naquela cadeira e rasgar aquele sorriso do rosto dela. Atacar. Qualquer coisa.
Mas eu estava paralisado.
Não havia forças. Só o silêncio esmagador da biblioteca e a verdade. Aquela maldita verdade, cravada em mim como um ferro em brasa.
Talvez eu esteja amaldiçoado. Não, “talvez” é uma mentira. Eu estou. Preso em algo que vai além da compreensão humana. Desde aquele dia, carrego isso comigo. No meu olho direito… o símbolo da minha ruína.
O Olho do Pecado. Luxúria.
Mas esqueça o que os livros velhos dizem. Não é o sentido carnal, barato, da coisa. Minha luxúria é por algo mais torcido. Mais sujo.
Eu sinto prazer no conhecimento. Em ver os segredos mais sombrios se desfazendo na minha frente. Em observar as engrenagens do mundo. Em assistir o sofrimento humano — a queda, o desespero, a agonia — e saber que, de alguma forma, estou acima disso.
É nojento. Eu sei. É um vício que corrói a alma. Cada segredo desvendado, cada mentira exposta, cada gota de desespero que eu testemunho… é um êxtase doentio que me faz querer vomitar.
E, ao mesmo tempo… é viciante.
Me diz… alguém que só queria fazer o bem, alguém que só queria proteger os amigos… também pode sofrer assim?
Eu os deixei para trás. Enterrei quem eu fui. E agora… sou outra coisa. Algo que se alimenta de um prazer que me revira o estômago.
Para entender como cheguei a este poço… preciso voltar.
Voltar cinco anos.

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