Futuro.
    Localização: Camada 5 – As Ruínas de Jotunheim.

    O vento não soprava; ele mordia.
    A neve não parava de cair, nem por um segundo. Era uma cortina branca, densa e eterna, que tentava apagar os erros do passado cobrindo-os com gelo. O uivo da tempestade era constante, como o lamento de um lobo gigante que perdeu a alcateia e agora vagava sozinho na escuridão branca.

    Eu olhava para a frente e via neve. Para os lados, mais neve.
    Mas, sob as solas das minhas botas de couro gasto, a terra não era firme. Era irregular.
    Eu caminhava sobre um cemitério a céu aberto.
    Adultos, crianças, mulheres. Pessoas que um dia tiveram suas vidas, seus amores e seus medos decididos por um número tatuado na pele. Agora, todos tinham o mesmo valor: zero. Eram apenas estátuas de gelo sob meus pés, o alicerce macabro deste novo mundo.

    Eu estava no que sobrou de Jotunheim. Em um futuro não tão distante para ser esquecido, nem tão próximo para ser salvo.

    Amarrei as tiras do meu manto pesado, protegendo o rosto. A roupa de couro curtido mal segurava o calor do meu corpo, e o vento cortava a pele exposta como navalhas de vidro. Mas eu caminhava. Tinha um rumo.

    Até que a montanha de neve à minha frente tremeu.

    Parei. O vapor da minha respiração congelou no ar.
    Ergui a mão direita. O espaço ao meu lado distorceu, rasgando a realidade com um som de vácuo familiar.
    Do portal negro, puxei uma lâmina.

    Não era a Voraz.
    Era uma espada longa, reta, de um branco imaculado que rivalizava com a neve. Ao longo da lâmina, gravada no metal com precisão artística, havia o desenho fino de uma flor: uma Orquídea Fantasma.

    A neve explodiu.
    A criatura se levantou, sacudindo toneladas de gelo das costas.
    Era colossal. Vinte metros de altura, no mínimo. Coberta por uma pelagem branca suja, emaranhada e grossa como cordas. As garras eram foices de osso. O rosto era uma máscara de fúria primitiva: olhos fundos, cegos e brancos, e uma “barba” de pelos que escondia dentes tortos, serrilhados, feitos para rasgar carne e triturar ossos, não para perfurar.
    Um Titã das Neves.

    Levantei meu olhar para a besta.
    A lente de contato já não existia há muito tempo.
    Meu Olho Rosa focou na criatura. Ele pulsou, emitindo um brilho doentio e vibrante que manchou o mar de branco ao redor.

    A besta rugiu e desceu a pata gigantesca para me esmagar.
    Esperei até o último milésimo de segundo.
    Quando a sombra da garra cobriu meu corpo…

    VUP.

    Teleporte.
    A gravidade inverteu.
    Reapareci no ar, caindo em direção à nuca da criatura.

    Eu já não lutava contra a loucura; eu a vestia.
    A aura da Luxúria vazou do meu olho, invadindo meu corpo, fortalecendo meus músculos com desejo de morte.
    Segurei a espada branca com firmeza.
    Não houve grito. Não houve técnica nomeada.
    Apenas um corte.

    SHIIING.

    A lâmina atravessou a pele grossa, a gordura, o músculo e a espinha dorsal como se não existissem.
    A cabeça gigantesca se separou do corpo.

    Ainda no ar, ativei o portal novamente para amortecer a queda, pousando suavemente na neve fofa a dez metros de distância.

    BOOOOM.

    O corpo decapitado do Titã caiu, fazendo o chão tremer e levantando uma nuvem de neve. O sangue preto e oleoso jorrou do pescoço, derretendo o gelo e invadindo meu nariz com o cheiro acre de ferro e almíscar.

    Não perdi tempo com vitórias.
    Guardei a espada e saquei uma faca de caça.
    Comecei a dissecar.
    Com a precisão de um cirurgião — ou de um monstro experiente —, cortei os nervos enrijecidos, separei a carne comestível, arranquei os dentes de marfim para usar como material de troca ou reparo.
    A sobrevivência não tem luxo.

    Com a mochila cheia de carne fresca, segui em direção ao que um dia foi o Centro.

    A Capital de Jotunheim era um esqueleto.
    Casas de madeira esmagadas, telhados desabados sob o peso da neve eterna. Não havia fumaça nas chaminés. Não havia pegadas além das minhas e das bestas.
    A neve cobria os corpos nas ruas, preservando o momento final do Rompimento.

    Caminhei até a única estrutura que desafiava o tempo.
    O Palácio de Neve.

    Era grande, majestoso e triste.
    Feito de uma pedra rúnica antiga que repelia o congelamento, o palácio estava cercado por poças de água líquida, um milagre termal no meio do inferno branco.
    Entrei. O saguão estava vazio, saqueado há anos. Tapeçarias rasgadas, móveis quebrados. O eco dos meus passos era o único rei ali.

    Fui direto para a cozinha real.
    Ainda havia um pouco de carvão seco que eu estocava ali.
    Acendi o fogo. A chama laranja dançou, pequena e frágil, uma piada quente contra o frio infinito lá fora.

    Comecei a preparar a carne do Titã.
    Assei os pedaços na grelha, cozinhei grãos velhos que encontrei em silos abandonados, usei temperos raros que guardava no meu espaço dimensional como tesouros.
    O cheiro de comida quente preencheu a cozinha fria. Parecia errado. Parecia vida.

    Quando tudo estava pronto, servi dois pratos.
    Deixei-os na bancada de pedra.

    Caminhei até uma porta de madeira comum na lateral da despensa.
    Parecia uma porta de armário de vassouras.
    Parei na frente dela.
    Tirei a luva da mão esquerda.

    Toquei a madeira.
    Fechei os olhos.
    Senti a energia correr pelas minhas veias, algo mais antigo. A Chave.
    Houve um pequeno baque, uma vibração que sacudiu a poeira dos batentes. A realidade do outro lado se alterou.

    Voltei, peguei os dois pratos fumegantes e abri a porta.

    Ainda não me acostumei, mesmo depois de tanto tempo.
    O ar mudou. O frio sumiu. O cheiro de ozônio e papel velho me atingiu.

    Eu entrei.
    Não num armário.
    Mas na Biblioteca Infinita.

    As prateleiras de madeira escura subiam até onde a vista não alcançava, perdendo-se numa escuridão vertical que engolia a luz. Corredores se estendiam para sempre em todas as direções, um labirinto de geometria impossível, projetado para prender deuses e enlouquecer mortais. Livros flutuavam suavemente, como peixes num aquário sem água.

    Caminhei pelo corredor familiar, ignorando os tomos que sussurravam segredos proibidos.
    Cheguei a uma clareira entre as estantes.
    Havia uma mesa de carvalho bagunçada, cercada por uma chuva de livros jogados, abertos e esquecidos no chão.

    E lá estava ela.
    Sentada na cadeira, com a cabeça deitada sobre os braços cruzados na mesa, como se tivesse tirado um cochilo durante o estudo.
    A Arquiteta do Conhecimento.

    Seus cabelos castanhos, longos demais para serem naturais, derramavam-se pela mesa e pelo chão como um rio de seda.
    Eu me aproximei em silêncio e coloquei o prato na mesa, perto do rosto dela. O cheiro da carne assada subiu.

    Ela se mexeu.
    Levantou a cabeça devagar, espreguiçando-se com a elegância de um gato. O ar ao redor dela vibrou.
    Ela abriu os olhos.

    Aqueles malditos olhos.
    Sem íris. Sem pupila. Sem cor.
    Duas esferas de um branco imaculado e brilhante, que viam tudo o que já foi escrito e tudo o que seria apagado.

    Ela sorriu. Um sorriso que misturava a inocência de uma criança e a crueldade de um deus.

    — Já voltou… Kenzinho? — disse ela, a voz ressoando dentro da minha mente. — Trouxe o jantar? Espero que não seja carne de rato de novo.

    — Qualquer um que visse isso… acharia uma blasfêmia. Até mesmo os deuses sentem fome.

    Eu me sentei na cadeira de madeira que rangia sob meu peso, o couro da minha roupa estalando no silêncio da biblioteca.
    Olhei para a mesa ao meu lado. Lá estava ele.
    Um livro grosso, de capa dura. O couro era tingido numa mistura caótica de roxo profundo e rosa choque, com detalhes em relevo que lembravam pétalas brancas caindo — ou sangue espirrando.
    O título brilhava em letras douradas, pulsando levemente:
    “A Vida e a Queda de Ken Orquídea”.

    Era o livro da minha vida. A minha história, escrita enquanto eu a sangrava.

    Olhei para a frente. A Arquiteta do Conhecimento comia a carne de Titã e os grãos velhos com um gosto que beirava o obsceno. Era irônico, quase perturbador, ver uma entidade cósmica fazendo expressões tão humanas a cada mordida, fechando os olhos brancos em deleite.

    — Comida humana é tão… visceral. — murmurou ela, lambendo a gordura dos lábios. — É uma delícia. Quente, imperfeita, cheia de textura de morte. Eu queria estar viva lá fora só para sentir o gosto de uma maçã fresca.

    Eu a observava sério. Sem humor. Apenas o cansaço infinito de quem caminha no gelo há tempo demais.

    — Não encontrei ninguém dessa vez… — disse eu, a voz rouca. — Varri a Zona Norte das ruínas. Nenhuma pegada. Nenhuma fumaça.

    A Arquiteta parou de mastigar. Ela pousou o garfo.
    Os olhos brancos se fixaram em mim, perfurando a minha mentira.

    — Tolo. — A voz dela ecoou, não no ar, mas nos meus ossos. — Não tem mais ninguém em Jotunheim, Kenzinho. Acredite em mim. Eu sei de tudo o que vive e o que morre.

    Ela se inclinou sobre a mesa.

    — Essa sua desculpa de ficar aqui, patrulhando escombros para “encontrar sobreviventes”… é uma mentira para enganar seu próprio cérebro humano, que não sabe lidar com a culpa.
    — Você apenas não quer aceitar que o seu lar… o lugar onde você aprendeu a andar… virou o que aconteceu com as Camadas 10, 9, 8, 7 e 6.

    Apertei o braço da cadeira. A madeira trincou.
    Era impossível negar.
    O Rompimento das Camadas.
    Milhões mortos. O eixo do mundo quebrado. E uma parte daquela culpa… uma parte grande e sangrenta… era minha.

    — Já que está de volta, vamos continuar sua história… — disse ela, limpando a boca com as costas da mão, num gesto deselegante. — Como eu sempre digo: para melhorar o futuro, primeiro entenda o passado. Veja seus erros, disseque-os e aprenda com a podridão.

    Ela se levantou. Seus pés descalços e pálidos tocaram o chão de madeira escura sem fazer som. O vestido de sombras flutuou atrás dela enquanto ela caminhava até as prateleiras infinitas.

    — Mas… — Ela parou, passando o dedo pelas lombadas de livros que continham a história de impérios extintos. — Antes de continuarmos a ler o seu sofrimento, você precisa ver o mundo sob outra perspectiva. O seu ponto de vista é limitado, Ken. É viciado em dor.

    Eu a observava procurar, resmungando “onde foi que eu deixei aquele maldito tomo?”. Era a única coisa nela que parecia humana: a desorganização de um gênio.

    — Não é mais fácil encontrar um livro sobre o futuro? — perguntei, impaciente. — Me diga logo como consertar isso.

    Ela parou. Virou-se lentamente para mim. O sorriso dela era condescendente.

    — Não existe um livro que conte o futuro, garoto. Nem mesmo os Arquitetos têm essa capacidade. O futuro é tinta molhada, ainda não secou no papel.
    — Existem profecias, claro. Mas elas são como reflexos na água. Na maioria das vezes acertam a forma, mas erram a profundidade. E confiar nelas cegamente… é o caminho mais rápido para a tragédia.

    — Você é a Arquiteta do Conhecimento. — retruquei. — Deve saber alguma profecia. Sobre o fim do mundo. Sobre mim.

    — Saber, eu sei. E as que eu sei, eu já contei a você em enigmas que você foi burro demais para decifrar. — Ela riu. — Esta biblioteca é minha alma, por assim dizer. E ela é infinita. O título “Conhecimento” é pequeno para mim. Eu sou a Memória.

    Ela parou diante de uma estante alta. Esticou o braço e puxou um livro.
    Não era roxo.
    Era Branco. Puro. Com detalhes em prata e azul-gelo.

    Ela se virou para mim, segurando o livro contra o peito. A expressão dela mudou. Ficou séria, quase triste.

    — Continuar suprindo seu estímulo pelo conhecimento através da dor é um vício perigoso, sabia?

    Senti algo quente no rosto.
    Toquei meu olho direito. Meus dedos voltaram vermelhos.
    Sangue.
    O Olho Rosa estava chorando sangue. De novo.
    Limpei com a manga de couro, indiferente. Para mim, graças à mutação e à regeneração constante, a dor era apenas uma informação inútil. Um ruído de fundo.

    A Arquiteta arrastou a cadeira dela até ficar de frente para mim.
    Colocou o livro branco na mesa, virado para mim.

    A capa de couro branco tinha um título gravado em prata fria:
    “LYSANTHIR VAUZ”

    Fiquei genuinamente surpreso. O ar escapou dos meus pulmões.
    Aquele homem do Clã da Luz que usava roupas escuras. O homem que salvou minha vida nas Camadas Negativas.
    Um livro sobre a vida dele.

    — Você precisa saber das verdades através de outros olhos. — disse ela, acariciando a capa do livro. — Eu tive a “sorte” de ler a vida de bilhões. Mas a dele… a dele é uma bênção trágica que você precisa absorver para entender o seu futuro daqui para a frente. As escolhas dele moldaram o chão onde você pisa hoje.

    Fiquei com receio.
    Ler a vida de um homem morto. Invadir a alma de alguém que eu respeitava.
    Mas a curiosidade do Olho Rosa pulsou.

    Escutei um barulho.
    Crrrack.
    Como ossos se rearranjando.

    Levantei o olhar do livro para a Arquiteta.
    E travei.

    Ela não estava mais lá.
    Ou melhor… ela estava, mas vestia outra pele.

    Os cabelos castanhos sumiram, substituídos por fios prateados curtos e bem penteados.
    Os olhos brancos ganharam íris. Um Azul-Gelo penetrante e inteligente.
    O rosto ficou angular, masculino, bonito de uma forma fria e acadêmica. As roupas de sombra viraram um terno impecável, meio branco, meio preto.

    Ela havia virado Lysanthir Vauz.
    Em todos os aspectos. Até a postura cansada, até o jeito de cruzar as pernas.

    — Acho melhor eu ler para você. — disse a Arquiteta.
    A voz não era mais feminina. Era a voz dele. Calma, didática, com aquele leve tom de sarcasmo que eu me lembrava tão bem.

    — Acredito que a imersão será melhor assim. — continuou o “Lysanthir”, ajeitando uma luva imaginária. — Vamos ler este capítulo. Depois voltamos ao seu livro sangrento. Assim, podemos continuar até o fim da sua história com todas as peças no tabuleiro. Está bem, pequenino?

    O uso do apelido que ele dava ao Cedric me atingiu como um soco.
    Concordei com a cabeça, largando o corpo na cadeira.
    Minha mente estava a milhão, girando entre o luto e a necessidade de saber.

    O “Lysanthir” sorriu. Um sorriso triste.
    Ele abriu o livro branco. As páginas estalaram.

    — Então… vamos começar pelo dia em que eu decidi que a Luz não era o suficiente.

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