Ele despertou lentamente.

    Sentado no chão, recostava-se contra a parede de pedra que sugava seu último resquício de calor. Um leve movimento cortou o silêncio, puxando-o de volta à consciência. A boca seca como areia tornava difícil qualquer reação, mas, com esforço, ele abriu os olhos, mas devido a pouca luz, não enxergou nada.

    — Ugh… minha cabeça… — ele murmurou, a voz baixa e rouca, enquanto um arrepio gélido subia pela coxa direita e se espalhava até o abdômen. — Que lugar é esse? O que aconteceu? Mas que dor… — pensou.

    A dor latejante atrás de sua cabeça denunciava uma ferida. Seu peito começou a subir e descer em ritmo descontrolado, a respiração curta e entrecortada enquanto o ar parecia insuficiente. Seus dedos tremiam ao tentar mover os braços, apenas para sentir as correntes de aço mordendo seus pulsos, firmemente presas à parede. A dor na coxa direita já se espalhava por todo o corpo, aguda e insuportável, como uma faca sendo torcida em sua carne.

    Logo, avistou um pequeno roedor, o provável responsável por tê-lo despertado. A luz pálida da lua infiltrava-se pelos buracos no teto, lentamente revelando o ambiente ao seu redor: um cômodo frio e úmido, com paredes de pedra cobertas por camadas de mofo e diversos móveis velhos. 

    O homem arquejou tentando forçar os braços, os músculos tremendo de exaustão enquanto as correntes de ferro cortavam sua pele, deixando marcas vermelhas e profundas. O som metálico do atrito das algemas ecoava na sala sombria, mas elas não cederam nem um milímetro. Um novo grunhido escapou de sua garganta quando ele tentou se levantar.

    Foi então que ele viu.

    Seu corpo estremeceu e o ar fugiu de seus pulmões. O espaço onde sua perna direita deveria estar… vazio. A carne estava dilacerada, o osso exposto em um toco irregular, envolto por sangue coagulado. Veias escuras pulsavam, como se ainda tentassem manter a vida em um membro que já não existia mais. Pedaços de pele rasgada pendiam como trapos, e o cheiro de carne queimada o envolvia, sufocante, enojante.

    — Aaah! — ele gritou com a visão. Tudo o que podia se lembrar eram flashes confusos invadindo sua mente: uma criança perdida na floresta, a sensação de um golpe atingindo sua cabeça, e então… escuridão total.

    Após o grito, o perneta percebeu que não estava sozinho naquele lugar.

    — Ei, idiota! Continua gritando e ele vai te escutar — a alguns passos de distância, uma nova voz surgiu.

    O homem recuou instintivamente com seus olhos buscando pela origem da voz. No entanto, tudo o que ele encontrava era um espaço pequeno e sujo, com manchas de sangue no chão, algumas dele mesmo, outras não. 

    A fraca luz revelou a ausência de janelas e portas visíveis, mas ele pôde distinguir móveis velhos e empoeirados ao redor. Também havia um leve cheiro de mofo que se misturava ao de comida sendo feita, e, ao olhar para cima, notou um alçapão no teto com uma escada descendo em direção ao chão.

    O que você tá olhando aí? Não me diga que esqueceu da burrada em que VOCÊ nos meteu! — a voz continuou, tingida com um tom de sarcasmo. O som que vinha dela era jovial, mais agudo do que grave, mas longe de ser infantil ou feminina. Algo estranho transparecia em sua entonação, pois, mesmo que sutil, percebia-se um toque metálico, como se não fosse humano. 

    — Shh! Fale baixo! Você disse que ele pode nos escutar — o homem sussurrou em resposta.

    Você perdeu o juízo! — a voz riu. — Ele não pode me ouvir, Hélio. Já te disse isso.

    Hélio? Esse é o meu nome?… É, é sim — pensou, o olhar vazio fixo em nada. Então, virou-se lentamente na direção da voz. — Você me conhece?

    É claro que eu te conheço, ora! Não se finja de tolo, rapaz. É bonito, não é? Ver as consequências de ações tolas acontecendo. Vá, não me escute, faça o que dá na telha. Tudo vai dar certo, Héliozinho… — e finalizou com um riso tão irritante quanto o som de duas lâminas se arranhando.

    — Mas… cacete, quem é você, cara?— Hélio perguntou girando a cabeça para os lados, porém seus olhos encontraram nenhum sinal de outra pessoa. — Onde você tá? Como você me conhece?!

    Vai mesmo fingir que se esqueceu de tudo? Desculpinha hein…

    Hélio cerrou os dentes.

    — Se eu me lembrasse de algo não estaria te perguntando nada, miserável! — quase gritou.

    A voz misteriosa desapareceu por um momento, pensando se aquilo era atuação ou não. Ao retornar, disse:

    Hélio, Hélio… Espero mesmo que tenha batido a cabeça e, quem sabe, ganhado alguns neurônios no processo — um suspiro escapou dela. — Meu nome é Enki. Éramos para sermos uma dupla, não se lembra? Mas parece que você não entende que duplas agem juntas, e você se meteu nessa sozinho, seu estúpido!

    — Uma dupla?— Hélio perguntou, tentando se ajeitar e soltando um gemido novamente. — Ahh… cacete! Está bem, Enki, me desculpe por qualquer tolice que eu tenha feito, tá bem? Agora você pode me ajudar aqui? Tem uma mão livre? Onde é que você tá?

    Enki desapareceu novamente, hesitando. 

    — Mesmo com pedidos de desculpas, continua com isso?! — Hélio apertou os lábios. — Seu desgra…

    Interrompendo-o, uma luz esverdeada começou a irradiar pelo cômodo, destacando uma espada sobre uma estante de madeira. Inicialmente confuso, Hélio logo compreendeu o significado por trás daquela cena.

    — Cacete! Você é uma espada?!

    Exatamente, Hélio, eu sou uma espada. Uma espada belíssima, aliás! Mas e então, qual é o seu plano? Vai ficar admirando minha beleza como uma princesa apaixonada? Só para constar, baixinhos não são meu tipo — riu sutilmente. 

    — Shh! Fale baixo! — Hélio alertou enquanto tentava mover as correntes novamente, sentindo apenas a pressão e o desconforto nos pulsos em carne viva. — Mas que… droga! Olha, Enki, nem quero pensar que você é uma espada. Só… que merda! Quero me livrar dessas correntes! Odeio isso!

    Veja só… estou surpreso. Situações desesperadoras realmente “mudam” as pessoas, não é? Bom, meu nobre Hélio, tenho a péssima notícia de que parece que nós nos conhecemos hoje e nos despedirmos também. Não há chance de você matar aquele homem. Você é muito… ingênuo. 

    — Homem? Meu amigo… Por que só não me conta o que aconteceu aqui?

    E pra quê? Se a morte está crua e nítida, ela é inevitável. Logo, Héliozinho, aquele homem descerá aqui e arrancará a sua outra perna. Depois, seus braços, e por fim, o que restar. Há!… Se quer saber, acho que seria melhor você pedir para eu matá-lo de uma vez. Seria mais misericordioso. Eu mesmo não gostaria de ter uma morte horrenda como a que te espera.

    Com o dito por Enki, estranhamente, um sorriso brotou nos lábios de Hélio. Em meio a sua memória turbulenta, uma lembrança valiosa emergiu: uma tatuagem em seu pulso, o número UM em algarismos romanos (I).

    Morrer? Sim… eu quero morrer! Resolverá tudo. É claro! — pensou. — Isso mesmo! Me mate, Enki! Faça isso! — pediu com entusiasmo na voz. 

    O quê?! — a espada quase se engasgou.

    — Não finja que não ouviu! Apenas me mate! Você pode me matar, não é? 

    — Eu… Eu posso… claro que posso — a voz de Enki soava incerta, vacilante, como se tentasse se convencer do que estava prestes a dizer. Mas então, uma onda de choque o atingiu. — Na verdade… isso é sério? Mas é claro! Você bateu a cabeça. É óbvio que ficou louco! — uma risada nervosa veio, desesperada.

    Enquanto Enki buscava não acreditar naquele pedido, uma energia começou a pulsar nas mãos de Hélio, envolvendo-o numa sensação familiar, como se uma aura fluísse através dele. Movido pela curiosidade, ele decidiu explorar o alcance dessa sensação. Ao fazê-lo, testemunhou chamas brotando entre seus dedos. Sua pele ardia à medida que as algemas esquentavam, mas ele não recuou, pois percebeu que o aço estava cedendo ao calor.

    As correntes, tingidas por um tom avermelhado, apertavam sua pele, provocando uma dor ardente, mas estranhamente familiar. Não havia gemidos ou lágrimas, apenas um silêncio tenso, como se seu corpo já estivesse acostumado àquele sofrimento. Mesmo assim, a dor não deixava de ser real, corroendo cada fibra de sua resistência. Quando finalmente se viu livre, respirou fundo, sentindo a energia espiritual pulsar ao seu redor. Sem hesitar, direcionou sua aura para resfriar as gotas de aço que ainda queimavam sua pele, sugando o calor e impedindo que novas queimaduras se formassem.

    — Me livre dessa morte horrenda, Enki. Me mate! — Hélio começou a se arrastar pelo chão em direção à espada na mesa.

    Veja só para onde chegou. Desprezível. Um verme rastejando no chão, indo em direção à própria morte. E que situação… Que piada! Décadas esperando por alguém compatível, e agora, na mesma noite, sou forçado a acabar com ele... — Enki desabafou, a voz carregada de desprezo. — Tudo bem, então, seu pedaço de esterco! Vou acabar com teu sofrimento. Mas antes, lembre-se que tudo o que aconteceu foi culpa sua!

    Enki começou a flutuar no ar, como se tivesse vontade própria. A pedra verde fixada em seu cabo, que anteriormente brilhava intensamente, agora emitia uma luz mais suave, porém pulsante como um coração. E, em um movimento rápido e preciso, a espada avançou contra o crânio de Hélio, desferindo um golpe certeiro e misericordioso. 

    Sem dor, apenas morte. Naquela noite, o homem perdeu sua vida.

    Cabana na Floresta

    Além das paredes da cabana, a chuva caía em um sussurro constante. Embora não fosse uma tempestade intensa, os raios ribombavam no céu como se travassem uma batalha entre as nuvens. E dentro da acolhedora cabana, cercada por uma floresta de pinheiros, uma sala espaçosa se conectava à cozinha, onde um velho homem estava em pé perto de um caldeirão fervente. À beira do tapete na sala, uma criança explorava a estante de livros com seus dedos pequenos e curiosos passeando pelas lombadas gastas.

    — “O Chamado do Gelo”, já leu esse, papai? — ele perguntou ao pegar um livro. 

    O garotinho, magro, de palidez evidente, cabelos negros desalinhados e olhos castanhos, exibia um semblante sério. Em contraste, seu pai, Franz, um homem robusto com barba espessa e mãos calejadas, sorriu ao ouvir a pergunta do filho. 

    — O Chamado do Gelo… Quem é o autor, Brian? — na cozinha iluminada por velas trêmulas, Franz cuidadosamente mexia a sopa no caldeirão.

    Depois da pergunta de seu pai, com mãos ágeis, Brian procurou o nome do autor ao virar o livro.

    — É o… Greg… Gregoro? Gregori? — franzindo a testa, tentou responder.

    — Gregório Sutton — confirmou o pai enquanto lançava um breve olhar para seu filho. — Lembro de ter ouvido falar dele lá na venda perto de onde morávamos. Fabricia disse que era um escritor muito bom. Se eu fosse você, leria o livro — acrescentou, voltando sua atenção para a sopa borbulhante na panela, mexendo-a com a colher de pau.

    Apesar da sugestão, Brian recolocou o livro na estante e acomodou-se ao lado, observando seu pai.

    — Quanto tempo acha que ficaremos aqui, pai? Este lugar tem um cheiro estranho…

    — Eu não sei. Talvez alguns dias, semanas… não sei. Tudo vai depender de como desenrolar essa maldita guerra — respondeu antes de, com um gesto ágil, mergulhar a colher na sopa efervescente e levá-la à boca, apreciando o delicioso sabor de carne com legumes. — Hmmm… delicioso como eu imaginava!

    Após as palavras do pai, Brian dirigiu seu olhar para a janela, onde as árvores dançavam sob a carícia suave do vento da pouca chuva. Seus olhos então desviaram para a pia da cozinha, onde uma perna humana quase totalmente desossada descansava. Com um suspiro, ele abraçou o próprio cotovelo.

    — Pai… 

    — Sim?

    — Por que atacamos aquele homem?…

    Franz olhou de relance, parecendo ponderar por um momento antes de responder.

    — Algo te incomoda?

    — É só que… isso não é normal, ou é? Pessoas saem atacando umas às outras e se comendo?

    — Você não pareceu se importar com isso agora pouco. O que houve?

    — Nada… é só que… o que os outros pensam sobre isso?

    — Não se preocupe com os outros. Sente fome, não sente? — Brian assentiu, e Franz continuou: — Pois bem, aqui está nossa comida. Não foram os “outros” que a trouxeram. Eles nunca ajudam. Fomos nós. Porque precisamos sobreviver. Aliás, você fez um bom trabalho mais cedo, cuidando dele.

    Brian baixou os olhos e abraçou mais forte o próprio braço 

    — É… eu fiz sim… — murmurou.

    De repente, um odor repulsivo.

     Franz apertou o cenho, sentindo uma onda de repugnância invadir suas narinas, e Brian compartilhou do mesmo olhar. Era como se um cadáver estivesse defecando no ambiente, uma imagem tão grotesca que fez os estômagos de ambos revirarem. O silêncio tenso no ar foi quebrado pelo som abafado deles inspirando com dificuldade, tentando bloquear o odor nauseante que os envolvia.

    Logo, Franz percebeu que aquele odor sufocante estava se infiltrando na casa vindo do porão, emanando do espaço abaixo do alçapão no canto da cozinha. De imediato, se lembrou de quem estava lá, e encarou seu filho. 

    — Não tem como apodrecer tão rápido, tem? — perguntou. 

    — Mas você o deixou vivo, pai…

    — Para justamente não apodrecer — Franz franziu o cenho e foi em direção a mesa da cozinha. — Não escuto gritos ou qualquer barulho. Fique aqui, Brian. Irei descer lá.

    Repousado na mesa ao seu lado, Franz agarrou um cutelo e avançou em direção de onde vinha o fedor. Com um movimento decidido, ergueu o alçapão, a penumbra se abrindo diante dele. Pegou uma lamparina para clarear o caminho e desceu, pronto para enfrentar o que quer que estivesse lá embaixo.

    Ao descer as escadas, Franz deixou a lamparina sobre uma mesa de madeira. Cercado pela escuridão opressora, o brilho trêmulo da lamparina mal conseguia vencer as sombras, enquanto o cheiro ruim do lugar era tão forte que quase dava para se tocar. Franz avançou com cautela.

    Não demorou para perceber que o homem que havia capturado não estava mais onde deixara. Só restavam manchas do seu sangue e uma corrente derretida.

    — Escapou? — se perguntou, apertando com força o cabo do cutelo e olhando ao redor procurando pelo homem. Em seguida, bateu a lâmina na corrente, fazendo um barulho que se espalhou por todo o porão. — Coelhinho, cadê você? — ele soltou uma risada, brincando. — Eu vou te achar… eu vou te achar…

    — Coelhinho, é?

    A voz atrás de Franz o fez congelar. O som era inconfundível, e o reconhecimento imediato fez suas pernas tremerem. Ele se virou lentamente, cada movimento guiado pelo ritmo frenético de seu coração.

    Na penumbra, surgiu a figura de um homem. Os cabelos médios e desgrenhados, castanhos-claros, caíam sobre uma pele parda que se destacava contra as sombras do ambiente. Apesar da baixa estatura, sua postura firme transparecia autoridade. O rosto triangular era marcado por um nariz longo e reto, sobrancelhas grossas e uma pálpebra caída sobre o olho direito. Magro, mas visivelmente atlético, ele parecia esculpido por uma vida de batalhas.

    Suas roupas eram simples e manchadas de sangue: uma camisa branca de mangas longas, desabotoada no peito, revelava uma fina camada de pelos. Um cinto de couro escuro cruzava seu torso, conectando-se a uma bainha presa no quadril. A calça preta, rasgada na perna direita, contrastava com a bota de cano longo no pé esquerdo. Posicionado ofensivamente com suas duas pernas intactas, ele segurava uma longa espada. O cabo ostentava uma pedra verde que emitia um brilho tênue, quase hipnótico.

    — Eu vou te mostrar o coelhinho — disse Hélio Salvatore.

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