Capítulo II – Inferno no Porão
Já havia começado.
Hélio avançou segurando sua espada. Franz, surpreso, tropeçou para trás, derrubando uma mesa de madeira que se estilhaçou sob seu peso. Livros antigos e artefatos se espalharam pelo chão, enquanto o sangue de Franz em sua mão esquerda, vindo de um corte ao cair, manchava as páginas amareladas e os cacos de madeira.
— Espera! — Franz pediu, mas Hélio não deu sinais de que iria parar. Em um ato desesperado, o canibal chutou uma cadeira em direção a ele, sem sucesso.
Após se desviar, a lâmina de Hélio cortou profundamente o ombro de Franz, provocando um berro de dor que ecoou pelas paredes do porão. Logo girou a espada, fazendo a lâmina rasgar ainda mais a carne e provocando outro berro.
Sangue começou a escorrer pelas roupas de Franz e movido pela adrenalina ele se lançou para o lado, fazendo a lâmina atravessar. Embora a manobra tenha causado mais dor ao rasgar seu ombro, foi necessário, que o livrou da precoce derrota.
— Olha que durão — comentou Hélio, observando o seu raptor banhado no próprio sangue.
Franz recuou para o canto mais escuro do porão, onde a luz da lamparina mal alcançava. Ele se apoiou contra a parede ao lado de um amontoado de pedaços de madeira e cacos de vidro. Com uma mão, pressionava o rasgo no ombro, tentando inútilmente estancar o riacho quente de sangue entre seus dedos. A outra mão, tremendo, ainda segurava seu cutelo.
— Seu… desgraçado! Você é uma escória como todos os outros! Que Bizan acabe com todos vocês! — cuspiu ele.
— Bizan? — o olhar de Hélio se perdeu por um instante. — A missão… — a lembrança veio como um soco no estômago.
A risada baixa de Franz cortou o silêncio, um som rouco que mascarava seus gemidos de dor.
— Sim, o grande Império Bizan! — ele se inclinou para frente, os olhos arregalados e um sorriso grotesco se formando em seus lábios. — Solitude pagará por tudo que fez ao nosso povo! Vocês pagarão pela desgraça que infestou nossas terras…
Com um suspiro exasperado, Hélio interrompeu a diatribe de Franz.
— Chega de politicagem — ele declarou, erguendo a espada com ambas as mãos. Uma expressão de desdém se desenhou em seu rosto suado. — Eu to pouco me fudendo para essa guerra — fez uma pausa, seus olhos se fechando num gesto de desprezo. — No momento, só penso em uma coisa… — a voz de Hélio baixou. — Em como eu vou matar o desgraçado que arrancou a minha perna! — quando Hélio finalmente abriu os olhos, uma chama infernal parecia consumi-los, transformando-os em poços ardentes de fúria.
Franz, vendo aquela cena demoníaca, agarrou um pedaço de madeira e o lançou com todas as suas forças restantes. O objeto voou pelo ar, mas em vez de atingir seu alvo, acertou a lamparina, que caiu ao chão, se quebrou, e começou a incendiar o tapete empoeirado.
Tremendo, ele continuou se armando com fragmentos de vidro e pedaços de madeira que estavam à sua volta, lançando-os freneticamente em direção a Hélio. Alguns erraram totalmente a direção do alvo, enquanto outros foram habilmente desviados pelo espadachim. A cada segundo, mais as chamas cresciam, ameaçando transformar o porão em um mar de fogo.
Vendo nada estar funcionando, Franz soltou seu cutelo e correu em direção à escada do alçapão, a única rota de fuga visível. Porém Hélio, percebendo a tentativa de fuga, lançou sua espada que cortou o ar e se cravou na panturrilha do homem, atravessando-a e prendendo-o ao chão.
Outro berro de dor.
Franz caiu com sua perna impiedosamente fixada ao chão. Com olhos que refletiam o terror de uma presa diante de seu predador, ele encarou o espadachim.
— Por favor! N-não me mate! — implorou o homem.
Atrás de Hélio as chamas cresciam, fazendo Franz vê-lo como a imagem viva de um demônio.
— Não… oh, não! — berrou Franz.
— Sim! Oh, sim!- Hélio abriu um sorriso.
— Não, por favor, não!
Hélio riu e avançou lentamente enquanto Franz implorava pela própria vida. Ao alcançá-lo, ele agarrou a espada cravada em sua panturrilha, e a arrancou com um movimento brusco. Ouvindo suas próprias gotas de sangue escorrendo da espada, Franz colapsou, incapaz de se sustentar, reduzido a nada além de súplicas abafadas, enquanto o fogo ao redor deles começava a devorar o último dos espaços seguros no porão.
O espadachim executou um movimento lateral com sua espada. Com um golpe certeiro, a cabeça de Franz foi separada do corpo, quicando pelo chão. Hélio observou, com um suspiro quase inaudível, o fim daquela vida.
— Enki, você tá aí? — ele perguntou para sua espada, mas o silêncio foi sua única resposta. Então, concentrou sua aura nele, na esperança de causar alguma reação.
A luz das chamas que consumiam o porão revelou os detalhes intrincados da espada Enki. A lâmina curvada, estendendo-se por 80 centímetros, era uma obra-prima forjada de um material cinzento e misterioso, que desafiava a comparação com metais comuns. O cabo, envolto em tiras de couro escuro, era adornado por uma pedra verde incrustada, cujo brilho que acabara de começar a pulsar se harmonizava com o caos ao redor, como se fosse o coração palpitante da própria espada.
Por não ter obtido respostas, Hélio limpou a lâmina ensanguentada na roupa de Franz, que jazia inerte ao seu lado. Depois, guardou-a na bainha presa firmemente à sua cintura. Erguendo o olhar, ele contemplou o caos ao seu redor: o porão estava sendo consumido pelas chamas, que devoravam tudo em seu caminho, eliminando até mesmo o odor fétido que antes permeava o ar.
Hélio estendeu a mão, abrindo a palma em direção ao incêndio. Concentrando sua aura, ele começou a manipular o fogo. Um a um, os focos de chama sumiram, como se uma força invisível os sufocasse, trazendo um fim abrupto ao incêndio que ameaçava engolir tudo.
Após assegurar que o perigo havia passado, ele voltou sua atenção para a escada do alçapão. Subindo, ele emergiu na cozinha, onde foi imediatamente envolvido pelo aroma convidativo que emanava do caldeirão borbulhante sobre o fogão. O cheiro de legumes frescos e carne dançava no ar, despertando sua fome. No entanto, essa sensação foi rapidamente suprimida pela visão que encontrou.
Brian lhe apontava uma faca.
— P-pai?... — a criança perguntou em um sussurro com sua expressão se desfazendo em descrença ao reconhecer o homem diante dele.
Curioso, Hélio ergueu uma sobrancelha, decifrando quem era aquele garoto. Brian permaneceu em silêncio, a mão pequena e determinada agarrando o cabo da faca enquanto se tremia.
— Espera, você é o… — Hélio começou, mas foi abruptamente interrompido.
Sua espada fugiu da bainha como uma serpente faminta indo em direção ao peito de Brian com um estalo seco. A lâmina penetrou, perfurando a carne, músculo e os ossos com precisão mortal.
Surpreendido, Hélio recuou alguns passos.
Brian caiu de joelhos, os olhos arregalados, enquanto o sangue jorrava do ferimento. Um som rouco escapou de sua garganta. O chão abaixo dele rapidamente se banhou em vermelho, seus dedos arranhando o solo numa tentativa inútil de agarrar a vida que se esvaía. O brilho em seus olhos logo se apagou, deixando apenas um vazio frio.
— Hélio… Hélio… — a voz ecoou da lâmina, cortante e familiar, enquanto se retirava do peito de Brian.
— Enki?! — Hélio fitou a espada, ainda gotejando sangue, flutuando diante dele. — Você… você fez isso?!
— É claro que sim! — respondeu Enki, sua voz soando quase orgulhosa. — Foi essa criança que o enganou, seu tolo! Não se lembra? Não se lembra do-
— Mas por que logo no coração? — Hélio interrompeu, cruzando os braços. Seu tom era mais de curiosidade do que indignação. — É uma morte lenta… dolorosa, na maioria das vezes.
— O quê?…
Hélio suspirou, lançando um olhar breve ao corpo caído de Brian.
— Prefiro arrancar a cabeça. É como desligar uma vela. Instantâneo. Mas no coração? Você sente cada maldito segundo antes de apagar. É terrível.
— Hã?… Você… você não está com raiva?
Hélio riu.
— Raiva? Por você ter matado esse merdinha? — ele balançou a cabeça, um sorriso cínico curvando seus lábios. — Acredite, raiva é a última coisa que estou sentindo agora, meu amigo.
— Mas…
— Enki — Hélio interrompeu, sua voz firme. Ele apontou para o corpo de Brian, como se estivesse lidando com algo insignificante. — Você mesmo disse agora há pouco que ele foi o responsável por me colocar nessa situação. Se eu fosse qualquer outro, estaria morto agora. Então, se não fosse você a acabar com ele, seria eu. Mas não precisava ser tão cruel. Ele era só uma criança no final das contas… talvez nem soubesse o que estava fazendo. Não merecia sentir uma espada no coração.
Enki pareceu ponderar, mas Hélio já tinha perdido o interesse, voltando sua atenção para a cozinha.
— Bem, está feito. Que diferença faz agora, não é? — Hélio concluiu enquanto seus olhos varriam a cozinha em busca de algo para saciar a fome que começava a incomodá-lo. Ele avistou um tomate solitário sobre a mesa, pegou-o e o levou até a boca dando uma mordida.
— Devo admitir… — Enki rompeu o silêncio. — Estava esperando por um pouco mais de drama da sua parte.
Hélio, mastigando um pedaço de tomate, parou ao lado da pia e lançou um olhar para sua perna desossada.
— É complicado… Eu até gosto de crianças. Mas esse daí só seria mais uma desgraça no mundo. — deu outra mordida no tomate, o suco vermelho escorrendo pelo canto da boca enquanto olhava os restos de sua antiga perna.
Uma risada involuntária escapou de Enki.
— Qual é a graça? — Hélio indagou.
— É você ter reagido de tal forma. Eu realmente esperava muito drama de sua parte, Hélio. Visto que foi seu coração mole que o levou até aqui.
— Espera, não me diga que eu caí numa armadilha tentando ajudar esse moleque…
Enki riu novamente.
— Cacete… — Hélio murmurou, passando a mão na cabeça. Ele então caminhou pesadamente até a mesa da cozinha e se sentou nela enquanto olhava para seu pulso esquerdo. — Droga, eu achava que esse selo recuperava as memórias também — ele lamentou, tocando a cicatriz que marcava sua pele, substituindo a antiga tatuagem. — Mas eu não me lembro como acabei aqui. Eu estava na estrada da floresta, ouvi uma criança entre as árvores, e então…
— Aquele homem te nocauteou por trás. Eu tentei te avisar que era suspeito aquela criança estar sozinha na floresta gritando por ajuda. Mas é óbvio que você não me deu ouvidos.
— É… eu vacilei bonito nessa — Hélio se levantou da mesa, dando outra mordida no tomate. — Agora só me explica uma coisa, Enki: como eu consegui você?
— Deixe-me lembrar… Hm… Só consigo recordar o instante em que sua aura me trouxe à consciência na floresta. Esse é sempre o gatilho do meu despertar, quando alguém compatível, mais especificamente do tipo Leão, me envolve com sua aura. Você me ativou pouco antes de ouvir a criança na floresta, e então seguiu naquela direção e caiu na tola armadilha. Não se recorda de nada antes disso?
— Me lembro de quase tudo, mas não faço ideia de como consegui você.
— Então temos um problema.
— Talvez — Hélio admitiu com um encolher de ombros, terminando o tomate e limpando as mãos na cintura. — Mas agora não é hora para isso. Há uma oportunidade aqui, uma grande chance, e eu não posso deixá-la escapar.
— Uma grande chance?
— Eu não te contei o que estou fazendo aqui? — ele perguntou, com um tom que sugeria que a resposta era óbvia. — Estou no meio da guerra entre Bizan e Solitude, mas não por escolha própria — Hélio parou, ponderando a importância de suas próximas palavras. — Olha, Enki… eu não sou solitudiano, caso não tenha percebido. Estou aqui contra a minha vontade, um peão em um jogo que não quero jogar.
— Então o que você é?
— Você apenas precisa saber que passei a maior parte dos últimos anos viajando. Recentemente, fui para a capital de Solitude, Nychta, para participar de um torneio. Mas as coisas… não saíram como planejado. Acabei sendo preso. Eu iria ser executado, mas por sorte, uma antiga amiga minha era próxima do imperador. E agora me mandaram para o meio dessa merda de guerra, como uma chance de “redenção” — ele soltou um suspiro pesado, seu rosto endurecendo. — Eles até me chamaram de “O Demônio de Nychta” — Hélio fez um gesto irônico com as mãos, um sorriso amargo curvando seus lábios. — Que assustador, não acha?
— O “Demônio de Nychta”? De demônio, só tem a cara.
— Engraçado. Muito engraçado. Eu fui preso anteontem por causa de uma briga no bar. Depois que eu usei um selo “proibido” para voltar à vida, me prenderam e me mandaram para cá. E foi o fato de voltar à vida que me deu esse título de merda, me associando a droga de um demônio.
— A propósito, ainda estou tentando entender como você conseguiu voltar à vida. Eu tenho certeza que o matei. Até mesmo perdi a consciência após fazer isso. Foi um Selo de Dupla Vida que o salvou, não foi?
— É tipo isso. A questão é que eu acho que agora tenho a oportunidade perfeita de fugir dessa bagunça. Pense comigo, estamos aqui há horas, certo? E ninguém veio atrás de mim ainda. Significa que, ou estamos fora de Solitude, ou em um lugar onde não me encontrarão.
Hélio percorreu o cômodo com passos apressados, procurando por algo que pudesse o ajudar Em uma cômoda empoeirada, sua atenção foi capturada por um rádio antigo. Ele apertou o botão de ligar e começou a girar o dial, procurando por uma estação que pudesse oferecer alguma pista.
— Setenta e um, setenta e dois… aqui, setenta e três! — a voz dele veio com uma ponta de triunfo, mas logo se desfez em frustração ao som de uma suave melodia de jazz. — Merda! Ainda estamos em Solitude — a música começou a falhar, e um lampejo de esperança brilhou em seus olhos novamente. — Ah… isso é bom. Isso é bom sim. Acho que estamos longe de uma antena, e quem sabe perto da fronteira com Bizan.
— Você não sabe onde está?
— Não me informaram o destino da missão. Fui trazido até aqui escoltado pela minha amiga da capital. Na verdade nem sei o que viemos fazer aqui. Quando cheguei, ela me mandou investigar essa floresta — Hélio encarou o nada por um instante. — Isso! A floresta!
Com urgência, ele começou a revirar a sala, até que suas mãos encontraram um velho mapa desbotado de Polemos, o continente.
— Ela mencionou o nome da floresta. Se chama A Floresta dos Patos — seus dedos traçaram as linhas até pararem em um ponto. — Aqui! É um território Solitudiano, droga! — ele colocou a mão no queixo, ponderando. — Vamos ver… Talvez possamos atravessar Imera e seguir para Bizan. Sempre quis saber como são os espadachins de lá.
— Vai fazer uma curva para chegar até Bizan? Por que não atravessa Fengaria que está logo ali?
— É que… se eu pisar o pé lá provavelmente serei morto — Hélio forçou um sorriso.
— Eu não acredito… — Enki suspirou. — Acabei me envolvendo com um foragido, é isso?
— Um foragido injustamente! Não sou responsável por essa lei absurda sobre selos em Solitude. Já sobre Fengaria… é complicado.
— Está bem, Hélio… Mas e se encontrarmos soldados das nações que estão guerreando pelo caminho?
— Eles não serão problemas desde que eu diga que sou um civil. Mas qualquer coisa é só nós-
Toc Toc Toc!
Três batidas firmes na porta interromperam a conversa. Hélio e Enki perderam a língua. Através da fresta inferior da porta, perceberam um par de sapatos escuros.
Alguém estava do lado de fora.
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