Armand estava em pé frente à porta da tenda do hospital do acampamento. Com as mãos para trás e um olhar pensativo, ele ponderava se deveria entrar ou não. Sabia que havia sido muito duro com seu sobrinho horas atrás, mas acreditava que era necessário. Para o rei, Vini herdara a pior parte, e ao mesmo tempo, a melhor, de seu irmão, Laurent: o orgulho.

    Para Armand, o orgulho era uma faca de dois gumes. Com orgulho, Vini poderia ter a confiança necessária para se tornar um grande rei, sempre buscando o melhor para si e para sua nação. Porém, ao mesmo tempo, o orgulho poderia derrubá-lo, transformando-o em um rei problemático, egoísta e obstinado. Este não era o reinado que Laurent, muito menos Armand, desejava para Vini.

    — Vamos lá… — murmurou Armand, respirando fundo.

    Ele entrou na tenda, seus olhos rapidamente localizando Vini deitado na cama. Já fazia algumas horas que o jovem estava ali, e possivelmente nem precisaria mais estar acamado, porém Armand entendia que a recuperação de reanexar uma cabeça variava para cada um.

    Então caminhou até ele e se sentou na cadeira ao lado. Vini havia notado sua presença, mas não disse nada. Armand cruzou as pernas, apoiou o cotovelo no braço da cadeira e descansou o rosto na mão.

    — Está doendo ainda? — ele perguntou.

    Vini demorou para responder, mas negou com um som interno de boca e um gesto de cabeça.

    Armand observou o sobrinho, tentando entender os pensamentos que se escondiam por trás daquele jovem. O silêncio se estendeu por um momento, até ser rompido.

    — Vini… — começou Armand, sua voz mais suave do que o habitual. — Eu sei que você está chateado comigo. E tem todo o direito. Eu arranquei sua cabeça… e esta cicatriz sempre o marcará. Mas saiba que…

    Vini continuava a olhar para o teto da tenda, evitando os olhos do tio.

    — Eu confio em você, Vini. Só que… eu também sei como o orgulho pode nos cegar. E eu não quero que você cometa os mesmos erros que seu pai cometeu.

    O olhar de Vini não mudou.

    — Ser um bom líder não significa apenas ser forte ou orgulhoso. Significa ser justo, sábio e saber ouvir — continuou Armand. — E eu sei que tem isso em você, Vini. Eu vejo o potencial em seus olhos. Mas você precisa saber ouvir. Eu sou mais experiente, eu entendo mais das coisas. Se eu digo que uma técnica não está pronta, apenas aceite, melhore-a, e depois me apresente novamente. Faça isso ou você não se tornará um rei amado como seu pai.

    Vini suspirou, os olhos finalmente desviando para o tio.

    — Está bem, tio… — disse ele, baixo, quase inaudível.

    Armand estreitou os olhos, sua expressão endurecendo. Ele olhou mais atentamente para Vini, absorvendo cada detalhe como um predador observando sua presa. A expressão ligeiramente tensa, a mão que tentava inutilmente esconder um leve tremor, o suor que escorria discretamente pela testa do rapaz. Algo estava errado. Armand conhecia o orgulho feroz de Vini, mas nunca antes o sobrinho havia demonstrado sinais tão evidentes de nervosismo na sua presença.

    — Onde está o verdadeiro Vini? — Armand perguntou de repente, sua voz firme, desviando o olhar para a entrada da tenda. O silêncio se abateu como uma pesada cortina, enquanto o suposto Vini engolia seco.

    — O que, tio?…

    Ser chamado por aquele nome na voz de Vini fez um sorriso surgir no rosto de Armand. No entanto, ao se lembrar de que não era real, ele tentou conter as piscadas involuntárias.

    — Me responda… Eu já sei que está usando uma técnica ilusória — ele disse.

    — Me desculpe, majestade… — o impostor se revelou, com um tom de voz já diferente. — Eu fui obrigado. Vini disse que ou eu fingiria ser ele aqui ou ele inventava mentiras sobre mim para os generais. Isso me custaria uma promoção. Eu não tive escolha… Me desculpe, majestade!

    — O Vini fez isso…? — Armand fechou os olhos por um momento, contendo uma reação mais impulsiva. — E para onde ele foi?

    — Não me disse exatamente. Mas falou algo sobre ir atrás de uma mulher em uma cidade próxima daqui. 

    Armand se levantou lentamente, suas mãos ainda cruzadas atrás das costas, caminhando até a saída do hospital.

    — A culpa não é sua, meu rapaz. Pode se levantar e voltar ao trabalho — ele disse, com um fio de cansaço na voz. Ao parar diante a porta, seu semblante endureceu ainda mais. — A culpa na verdade é minha, por criar um garoto tão arrogante — pensou, antes de se retirar.

    A movimentação dos soldados era frenética do lado de fora, preparando-se para a longa viagem até Sombrevale que levaria algumas horas. Em meio à multidão, Armand avistou Hécate nos estábulos, montando um cavalo. Ele foi até ela com passos apressados, sua presença impondo-se no tumulto.

    — Hécate. Está saindo de cavalo? Por que não se teletransporta? — Armand perguntou ao chegar. 

    Hécate sorriu ao vê-lo.

    — Ah, olá, Armand! — ela respondeu, o sorriso mantendo-se firme. — Estou com saudades de cavalgar, além de que não quero gastar minha aura com um teletransporte. Lamento não poder ir até a emboscada de Sombrevale com vosso senhor, mas estarei lhe desejando toda a sorte.

    — E para onde irá? — Armand avaliou cada nuance da expressão de Hécate.

    — Peço desculpas, mas não posso lhe dizer.

    — Não pode?! Eu sou o Herdeiro do Sangue, rei de Imera! Eu tenho que saber tudo que está acontecendo aqui! — quase gritou. 

    Os dois se encararam por alguns segundos. Hécate não abaixou o olhar, sustentando o desafio com um leve sorriso. Armand, percebendo a obstinação e o tom grosso em sua voz, suavizou a expressão.

    — Me desculpe, Hécate… Você se mostra útil e eu lhe trato assim. Mil perdões. Respeito a privacidade de suas missões com outros nobres. O motivo de eu estar assim deve ser por causa de Vini.

    Hécate inclinou a cabeça ligeiramente.

    — Vini? O que aconteceu com ele?

    — O rapaz não cresce! Já basta a cena de hoje mais cedo e agora descubro que ele foi atrás da prima… Não sei quem o informou, mas, com todo esse movimento no acampamento, uma hora ele descobriria. De toda forma, eu me pergunto… — ele olhou diretamente para Hécate, seus olhos perfurando a fachada tranquila dela. — Por que ele decidiu ir atrás dela?

    Hécate manteve a calma, mas Armand notou um leve estremecimento na mão que segurava as rédeas.

    — Talvez o desejo de provar seu valor? — Hécate sugeriu. 

    Armand desviou o olhar e sorriu, um sorriso que não alcançou seus olhos.

    — O importante é que ele fez sua escolha — murmurou, voltando a olhar para Hécate. — Tenha uma boa viagem, Hécate.

    — Você também. 

    Armand fez um gesto de concordância com a cabeça. Deixou Hécate ir embora enquanto pensava, parado ali no local. 

    Após alguns segundos de reflexão, ele caminhou até um lugar afastado do acampamento, uma pequena clareira entre as árvores altas onde poucos se aventuravam. A luz do sol filtrava-se suavemente pelas folhas, criando padrões dourados no chão de grama. Ele se sentou apoiando as costas em um tronco de uma velha árvore e fechou os olhos por um momento, deixando sua mente repousar.

    A exaustão do dia começava a pesar sobre ele. As tensões da liderança, as preocupações com Vini e a intriga em torno de Hécate formavam uma tempestade de pensamentos em sua mente. Ele não conseguia escapar das responsabilidades nem mesmo em momentos de descanso aparente.

    Sem perceber, o cansaço venceu. Seu corpo relaxou involuntariamente, os olhos se fecharam e sua mente se entregou ao sono. Armand adormeceu ali, sob a proteção tranquila das árvores.

    Seus passos apressados ecoavam pelo corredor nobre. Soldados enfileirados, rígidos e em silêncio, olhavam-no com olhos arregalados e rostos pálidos. Alguns tinham as mãos trêmulas sobre os rifles, enquanto outros evitavam seu olhar, engolindo seco e desviando a cabeça levemente. 

    Ninguém ousava dizer uma palavra.

    Ainda se recuperando do sono interrompido, o rei Armand fora arrancado de seu quarto por um criado aflito. Agora, marchava rapidamente em direção à biblioteca, onde o destino aguardava com crueldade. Quando estava prestes a alcançar a porta, um dos nobres colocou a mão em seu peito.

    — Majestade, é melhor não vê-la nesse estado. 

    Armand parou, o choque transformando sua expressão. Sua espinha gelou, e o coração bateu dolorosamente contra as costelas. O cheiro de cera derretida e o leve odor de sangue invadiam suas narinas.

    — Quem está lá? Amélia… ou minha filha? — ele retirou a mão do homem de seu peito com um gesto firme. — Tenho que saber.

    O nobre ficou sem palavras, desviando o olhar em um silêncio impotente. O rei não tinha tempo para hesitação. Armand empurrou a porta e invadiu a biblioteca.

    Lá dentro, soldados e nobres cercavam o que parecia ser o epicentro de uma tragédia. 

    No meio do caos, uma mulher magra jazia no chão, o corpo marcado por um ferimento profundo no peito direito. Sangue espalhava-se em uma poça ao redor dela, testemunho silencioso de uma violência abrupta e brutal.

    — Amélia! — Armand gritou.

    Ele correu até o corpo, desesperado, ajoelhando-se sobre o mar de sangue que se formara ao redor dela. Seus dedos trêmulos seguraram seus braços flácidos, enquanto lágrimas quentes e descontroladas escorriam livremente por seu rosto.

    Como isso pôde acontecer? Amélia, minha querida Amélia… — Armand pensava, seu peito com uma dor lancinante, uma mistura de raiva e agonia. — Quem fez isso? QUEM FEZ ISSO COM MINHA MULHER?! — sua voz irrompeu em um clamor desesperado. 

    O silêncio pairou pesado na sala, rompendo os murmúrios. De repente, tudo ficou vazio. Armand não via mais nada, não via mais ninguém. O sangue quente de sua amada era sua única companhia, a poça vermelha crescendo lentamente sob seu corpo.

    Então, ouviu passos.

    Lentos, calmos, mas que para seus ouvidos, eram a sinfonia do inferno, cada batida um golpe em seu coração. Seu corpo tremia com seus dedos cravados na carne fria de Amélia, enquanto a sala ao redor parecia se desvanecer em sombras.

    Ele levantou o olhar, e encontrou uma pequena garotinha de cabelos negros e desalinhados à sua frente. Tão pura, tão inocente. Tão doce, tão linda. 

    — Papai — ela disse baixo, a voz suave como um sussurro de vento. — A culpa é sua, papai. 

    De repente, Armand sentiu um puxão em sua consciência. A imagem de Hella ainda uma garotinha desapareceu como fumaça ao vento. 

    Ele despertou abruptamente.

    Não mais que alguns minutos haviam passado. Ele permaneceu imóvel, sentindo o peso sufocante da atmosfera do bosque ao seu redor. O sol poente tingia o ambiente com tons de laranja e vermelho, como um quadro pintado com as cores do desespero, transformando a tranquilidade do bosque em um eco sombrio de seu tormento interior.

    Lentamente, os fragmentos do sonho voltaram à sua mente, rasgando a barreira frágil que ele havia erguido para se proteger. Amélia. Sua amada Amélia, morta, fria e distante, como naquele dia fatídico. Ele podia sentir o peso dela em seus braços outra vez, o calor do sangue que se esvaiu, levando consigo toda a luz de sua vida. 

    Armand sentiu um nó apertar em sua garganta, as lágrimas queimando em seus olhos. No silêncio opressivo do bosque, ele lutava contra a maré avassaladora de sua dor, fechando os olhos com força para conter o dilúvio.

    Não aqui. Não agora. Ele não podia se permitir o luxo de desmoronar, de se entregar à fraqueza que ameaçava devorá-lo. Havia uma batalha pela frente, uma guerra para travar, e não havia espaço para emoções que pudessem enfraquecê-lo. Inspirou profundamente, forçando seus olhos a se abrirem e encararem a realidade cruel que o rodeava.

    — É hora de ir para Sombrevale — ele disse para si mesmo. 

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