A chuva havia cessado completamente, deixando no ar o aroma úmido de terra e folhas. Pequenas gotas escorriam devagar pelas folhas grossas, caindo num ritmo suave sobre o musgo que cobria o solo. O frescor da floresta recém-molhada pairava ao redor, enquanto os troncos escurecidos pela umidade formavam um anel natural ao redor da clareira.

    Sentada sobre uma pedra lisa e ainda úmida, Strivia ergueu o rosto, exausta, mas conformada. À sua frente, Hella permanecia de pé, focada em ajudar no estado de seu nariz. Strivia era uma médica habilidosa, capaz de usar sua aura com precisão para curar, mas sabia o quanto era desgastante tratar a si mesma com a própria aura. Por isso, não se opôs quando Hella insistiu em ajudar.

    — Isso dói… Você deveria puni-lo por atacar sua “parceira” assim — comentou Strivia.

    — Pare com isso, Strivia. Amanhã você pode perder a vida se não confiar cem por cento nele — respondeu Hella.

    Ela concentrou sua aura nas mãos, que começaram a emitir uma leve luz amarela. Com delicadeza, Hella remodulava o nariz de Strivia, curando a carne e os ossos afetados. Apesar de possuir a Aura da Serpente, realizar esse tipo de cura era um desafio.

    Entre as três formas de aura, todas podiam ser usadas para fins medicinais, mas com níveis distintos de eficácia. A Aura da Cabra destacava-se como a mais adequada, enquanto a Aura da Serpente exigia grande esforço. Já a Aura do Leão era tão difícil de manipular para curas que poucos médicos especializados com esse tipo de aura existiam.

    — Por que quer que ele esteja no avanço conosco amanhã? — Strivia perguntou, mas decidiu continuar. — Eu e Kalina vimos o massacre naquela cabana. A perna dele estava na cozinha e faziam uma sopa dela. Não o julgo por ter matado aquelas pessoas; eu faria o mesmo se tentassem me comer. Mas sem aquele selo que usou para se recuperar, ele não é mais útil para nós.

    — Hélio é um homem de valor, Strivia. Você pode ter tido uma má impressão dele hoje à noite, mas eu o conheço há muito tempo.

    — Um homem de valor que é um prisioneiro? — Strivia sentiu uma leve pontada de dor no nariz. — Ai, vai com calma aí!

    — Oh, desculpe! — Hella riu baixo. — Olhe, não o julgue por isso. Conheci Hélio quando éramos pequenos por causa da relação entre nossas famílias.

    — Hélio é um nobre?

    — Ele era. Na época, éramos grandes amigos, mas perdemos contato por anos. De repente, ouço que ele se meteu numa briga em um bar solitudiano e ficou quatro dias amarrado a um tronco. Sem comida, água ou proteção contra o sol. E você sabe o que ele fez? — Hella ergueu o olhar, percebendo a curiosidade nos olhos de Strivia. — No quarto dia, ele morreu, mas voltou à vida com o selo. A primeira coisa que fez ao acordar foi gritar bem alto dizendo que aguentou por quatro dias, como se fosse um anúncio de triunfo para todos no pequeno povoado. 

    — Mas como ele voltou à vida? Ele tinha outro selo?

    — Isso é confidencial, então não posso revelar tudo. Mas o interessante é que Hélio é alguém que sempre tenta superar seus limites. Quando estava amarrado ao tronco, poderia ter usado sua aura para escapar, mas escolheu não fazer isso. Queria ver até onde conseguiria sobreviver nessas condições extremas — Hella olhou para Hélio ao longe, que estava ajudando Kalina a trocar a munição de sua espingarda. — Ele seria executado na capital depois desse incidente, mas intercedi por ele, mesmo após tantos anos sem o ver. Sugeri ao imperador que ele viesse comigo e que nos ajudasse amanhã na investida contra Bizan.

    — Mas, Hella, se ele tentou fugir agora pouco, como podemos confiar nele?

    — Não se pode forçar um animal a fazer o que não quer, Strivia. Hélio não é mais o nobre que eu conhecia antigamente. Não o culpo por tentar sua liberdade. Mas acredito que não agirá novamente dessa forma. Esta madrugada, vou conversar com ele e tentar convencê-lo mais uma vez a colaborar. De manhã não poderá acontecer erros. 

    Enquanto Hella ajudava Strivia com o nariz, Hélio e Kalina estavam sentados em um tronco caído no chão. O espadachim tentava desajeitadamente recarregar a espingarda da jovem moça, sua perna direita tremendo involuntariamente enquanto se concentrava no problema com Enki flutuando ao seu lado. Kalina observava em silêncio, ainda menos familiarizada com o processo do que ele. 

    É só inserir a pólvora, Hélio, a pólvora! — tentava explicar Enki, já perdendo a paciência.

    — Eu sei, eu sei! — Hélio tentava colocar a pólvora, mas suas mãos pareciam não cooperar. — Não tá indo, cacete!

    O que tem de difícil em colocar uma PÓLVORA?!

    — Para o inferno com essa espingarda! — Hélio desistiu, devolvendo-a a Kalina. — É por isso que eu prefiro espadas — cruzou os braços.

    Que decepção… — Enki murmurou.

    — Obrigada por tentar, Hélio. Acho que Hella pode resolver isso depois — disse Kalina, oferecendo um sorriso reconfortante enquanto deixava a espingarda de lado.

    — Ela deve mesmo saber mais dessas coisas do que eu. Mas afinal, que tipo de militar você é, garota? Não consegue nem recarregar sua arma.

    — Ah… — Kalina desviou o olhar. — Na verdade nunca me dei bem com armas no treinamento. Tentei explicar isso para Hella, mas ela não me ouviu.

    — Percebi mesmo — Hélio tocou de leve a cicatriz da bala em seu braço.

    Ao notar sua ação, Kalina olhou para baixo, depois colocou as mãos no rosto.

    — Me desculpe por isso… — ela disse baixo. — Eu não sei se consigo… Eu disse à minha mãe que não queria vir pro exército, mas ela não me ouviu — levantou os olhos, lágrimas acumulando-se, um sorriso fraco surgindo. — Eu queria ser escritora, sabia? Sempre quis escrever um grande livro de romance. Mas agora estou aqui, apavorada com a ideia de que amanhã posso ser a primeira a morrer — ela continuou olhando para Hélio, que se viu sem palavras diante da angústia dela. Então, Kalina colocou as mãos de volta ao rosto, tentando conter as lágrimas. — Me desculpe… Eu sinto muito. Sei que é terrível ouvir isso de alguém que você terá que confiar amanhã. 

    Meio sem jeito, Hélio colocou sua mão nas costas de Kalina e deu leves batidinhas. Pensava em algo para dizer, mas não precisou. Hella e Strivia voltaram e ele retirou sua mão. Kalina se recuperou ao notar a presença delas e Strivia se sentou ao lado de Hélio, evitando contato visual com ele. Já Hella, ficou na frente dos três, com as mãos na cintura. 

    — Bom, finalmente estamos os três reunidos. Acho que é hora de esclarecer as coisas e nos conhecermos melhor — Hella retirou uma das mãos da cintura e apontou para si mesma. — Meu nome é Hella Valentine. Possuo a Aura da Serpente. Sou a mais jovem capitã do Décimo Quarto Batalhão do Exército Especial de Solitude. Sobre mim? Tenho vinte e seis anos, não sou casada, adoro gatos e tenho paixão em estudar pinturas — Hella encostou as costas em uma árvore, cruzando os braços. — Agora é a vez de vocês, da esquerda para a direita. Pode começar, Strivia.

    Strivia se levantou.

    — Sou Strivia Varinth. Possuo a Aura da Cabra. Me formei em Medicina Especial com destaque na minha turma e este é meu segundo trabalho. O primeiro foi em um hospital público, e agora estou no exército. Tenho vinte anos, um namorado na capital, e adoro frequentar a feira de antiguidades todo dia primeiro do mês — ela sorriu ao finalizar e se sentou.

    Hélio foi o próximo, segurando Enki.

    — Hélio Salvatore, tenho vinte e sete anos. Meu histórico acadêmico é um pouco… diversificado. Quanto à minha aura, é a do Leão. Não sou militar, nem nada do tipo. Sobre mim? Bem, gosto de viajar e observar as paisagens. É isso. — ele se sentou.

    A última a se apresentar foi Kalina. Ela se levantou lentamente, suas mãos brincando nervosamente com os dedos enquanto todos os olhos se voltavam para ela.

    — Meu nome é Kalina Vilar, recém-fiz dezoito anos. Este é meu primeiro trabalho após me destacar na faculdade de Rastreio Especial como a terceira melhor aluna do império — ela fez uma pausa, procurando as palavras certas. — Amo cachorros e… não tenho namorado. Também tenho uma paixão pela leitura, e… É, acho que é isso. — ela se sentou rapidamente.

    Hella bateu duas palmas, antes de se ajeitar e ficar ereta frente a todos. 

    — Ótimo, agora que nos conhecemos melhor, vou esclarecer a missão: De manhã, por volta das sete horas, o meu pelotão de vinte homens e mulheres chegará de trem no vilarejo de Sombrevale. Todos eles possuem aura, portanto, é um pelotão de alto nível. São quatro com a Aura da Cabra, dez com a do Leão e seis com a da Serpente. Comigo na liderança, juntos vamos conquistar Heletros, uma pequena cidade a alguns quilômetros daqui que originalmente pertence ao nosso império, mas que agora está sob o controle de Bizan. A razão de vocês estarem aqui antes dos outros, é que Strivia mora em uma cidade próxima, Kalina também, e Hélio veio comigo da capital. Os outros estavam longe, então se reuniram na capital hoje a noite e chegarão de trem ao amanhecer.

    Hella olhou ao redor, certificando-se de que todos estavam atentos.

    — Nossa missão é clara: reconquistar Heletros. A cidade é estratégica, e sua captura será um golpe significativo contra Bizan. Estaremos sob meu comando direto. O pelotão que chegará amanhã será uma força vital, mas nossa cooperação e confiança mútua são igualmente cruciais. Alguém tem alguma dúvida?

    Kalina levantou a mão.

    — Como será nossa abordagem? Iremos direto ao confronto ou seremos mais furtivos?

    — Vamos utilizar uma combinação de estratégias. Inicialmente, iremos avaliar a situação com o pelotão. Se a oportunidade de um ataque furtivo se apresentar, aproveitaremos. Caso contrário, prepararemos um assalto coordenado com o apoio do pelotão. Nosso objetivo é garantir uma vitória rápida e direta.

    Kalina interveio novamente.

    — E quanto os soldados de lá? Tem chance de baixas? E se já estiverem esperando nosso ataque? E se for tudo uma emboscada? Eu… 

    — Kalina. Olhe, confie em mim. Vamos planejar bem amanhã e tudo vai dar tudo certo, está bem?

    — Me disseram isso agora pouco e eu quase matei alguém… — Kalina murmurou. Quando Strivia escutou, ela virou-se para ela incrédula. 

    Já haviam partido.

    Na estrada que levava para Sombrevale, Hella liderava o grupo com passos firmes, mantendo o ritmo constante. Strivia e Kalina seguiam lado a lado, trocando comentários leves sobre assuntos triviais, numa tentativa de afastar a tensão que pairava sobre eles. Mais atrás, Hélio caminhava em silêncio, envolto em seus pensamentos. Enki flutuava ao seu lado, ocasionalmente interrompendo o silêncio com algum comentário seco ou observação.

    Percebendo que Hélio estava ficando para trás, Hella desacelerou, ajustando o passo para caminhar ao lado dele.

    — Então… sua espada realmente fala com você? — perguntou ela.

    Hélio ergueu os olhos, coçando a nuca.

     — Às vezes, sim.

    — Nunca vi uma espada fazer isso com seu… dono.

    Dono? — Enki resmungou.

    Hélio deu de ombros.

    — E você agora é capitã em Solitude, hein? — ele comentou.

    — O que quer dizer com isso? — Hella arqueou uma sobrancelha.

    — Só acho estranho te ver lá, e não em Imera.

    Ela suspirou.

     — Já falamos sobre isso, Hélio. E também é estranho te chamar assim.

    — Assim como?

    — Hélio Salvatore —ela deixou escapar um sorriso leve.

    — Tá zombando do nome que escolhi?

    — Não! — Hella riu, sincera. — Só acho… curioso. Sempre te chamei de Héli. Mas Hélio Salvatore tem um peso. Salvador, não é? Pelo menos teremos alguém para nos salvar amanhã.

    Os dois riram baixo, e Hélio perguntou:

    — Mas então, como foi que você acabou no exército de Solitude?

    — É uma longa história… Resumindo, eu era amiga do pai do imperador Kai. Se dependesse daquele loiro arrogante, eu ainda estaria fugindo. Mas Klaus, seu pai… ele me ajudou.

    — E eles sabem por que você estava fugindo?

    — Todo mundo sabe, Hélio.

    — Complicado. Mas entendo que você teve seus motivos.

    Hella desviou o olhar.

    — Tive. Engraçado como nossas vidas acabaram assim… parecidas.

    — Quem me dera. Eu não tive coragem de matar minha mãe, infelizmente. 

    O que?! — Enki se assustou com o dito. 

    Hélio parou, percebendo o peso das próprias palavras.

     — Me desculpe, Hella, às vezes falo sem pensar!

    Hella parou ao lado dele.

    — Você nunca muda — o tom dela era calmo, mas havia uma nota de tristeza subjacente.

    Hélio desviou o olhar para o chão, envergonhado. O silêncio entre eles se estendeu, e voltaram a caminhar. Mas após alguns passos, Hella decidiu quebrar o silêncio:

    — Parece que ainda guarda rancor dela.

    — Ela é horrível! — a resposta de Hélio veio quase que instantânea.

    — Você está exagerando. Não consigo vê-la assim. Ela até aprovou quando queríamos nos casar.

    — Nem me lembre disso. Eu era péssimo naquele beijo… 

    — Eu não diria isso. Só foi… estranho. Acho que nunca fomos bons juntos desse jeito. Namorados deveriam querer agarrar um ao outro quando se vissem, mas eu e você, só pensávamos em lutar usando espadas.

    — As pessoas nos viam mais como irmãos briguentos que namorados — Hélio riu.

    — Exato! — ela riu também. — Talvez seja isso. Somos mais como irmãos de outra mãe.

    — E agradeça por isso. Se você fosse filha da minha mãe… entenderia porque eu quero que aquela velha morra.

    — É… e eu achava que tive sorte com a minha. Era tão boa…

    — Ela e Armand combinavam muito. Lembro deles dançando na sua festa de doze anos. O seu pai contando aquela piada sobre os dois bêbados… nunca imaginei que ele gostava de piadas. Era tão sério. Agora seu tio? Ele sempre foi o entreterimento das festas. 

    Hella olhou para o chão, sua expressão se tornando sombria à medida que as palavras sobre seu pai saíam. Seu rosto ficou pálido, e os olhos brilharam com uma umidade que ela tentou conter. Ela deixou escapar um suspiro pesado, e as mãos dela se fecharam em punhos ao lado do corpo.

    — Depois de tudo, ainda quero saber como ele está, sabe? Sinto tanta falta dele. Tanta falta… 

    O silêncio se instalou.

     Hélio, ao ver a reação dela, sentiu uma pontada de empatia. Ele notou como a presença de Hella parecia mais pequena agora, como se o peso de suas palavras tivesse encurvado seus ombros. A sensação de desconforto fez com que ele hesitasse antes de responder.

    — Eu não consigo imaginar, Hella. Eu nunca tive um pai… Mas deve ser difícil saber que o seu agora quer te matar pelo o que você fez. 

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