Capítulo VI – O Mais Forte dos Inimigos
Na manhã daquele mesmo dia.
Uma névoa densa envolvia o acampamento militar imeriano, localizado a cerca de 20 quilômetros da fronteira com Solitude. O crepitar das fogueiras e o murmúrio contido dos soldados eram os únicos sons que preenchiam aquele início de dia ainda escuro. No centro do acampamento, destacava-se a tenda de comando, identificada pelo estandarte real que tremulava suavemente ao vento. Sentinelas armados com rifles vigiavam a entrada, atentos a qualquer movimento suspeito.
Lá dentro, à luz bruxuleante das lamparinas, generais se reuniam ao redor de uma mesa repleta de mapas e relatórios. O rei Armand estava inclinado sobre o mapa principal, traçando linhas com o dedo sobre o terreno de um pequeno vilarejo que em breve se tornaria um campo de batalha.
— Se nos posicionarmos aqui — ele apontou para um estreito desfiladeiro entre as colinas. — podemos cercá-los. Com as tropas divididas em três unidades, bloquearemos todas as saídas. Eles serão esmagados antes que possam reagir.
Armand era um homem de estatura baixa e físico magro, com a pele pálida que parecia nunca ter conhecido o sol. Seus cabelos ondulados, sempre penteados para trás com esmero, teimavam em deixar algumas mechas soltas. O rosto maduro era marcado por um longo nariz e profundas olheiras escuras.
Ele usava um uniforme militar de tecido vermelho-vinho, detalhado em preto e dourado, que se ajustava perfeitamente ao seu corpo. As condecorações brilhantes em seu peito destacavam suas inúmeras conquistas. Por cima do uniforme, ele vestia um sobretudo preto com ombreiras reforçadas e um cinto largo. Em um dos dedos, um anel negro com uma joia vermelha parecia conter uma fumaça em constante movimento.
Um dos generais, um homem de meia-idade com cicatrizes que narravam anos de serviço, inclinou-se para examinar o mapa que Armand apontava.
— E se eles perceberem a emboscada? Poderiam tentar recuar para a planície aberta ao sul, meu senhor.
O rei balançou a cabeça para os lados.
— Não terão tempo para isso. Haverá batedores prontos para fechar essa rota. Além disso, teremos atiradores posicionados ao longo das encostas. Qualquer movimento em falso será punido com uma chuva de balas.
Armand ficou em silêncio por um momento, observando o mapa, enquanto seus olhos avaliavam cada possível ponto de fuga. Após respirar fundo, levantou a cabeça para os homens na sala.
— E o jovem capitão que está a caminho? Ele deve chegar antes da emboscada.
Um dos generais, com uma barba grisalha bem aparada e um semblante sério, assentiu a cabeça ao ouvir a pergunta.
— Sim, majestade. O Capitão Cadell chegará ainda hoje pela manhã, em algumas horas.
— Espero que esteja à altura da tarefa. Esta missão requer precisão absoluta, e qualquer erro pode ser fatal. Ainda estou inseguro a respeito de um capitão tão jovem…
— Ele é jovem, mas já se mostrou bastante promissor em batalhas menores, majestade. Ouvi dizer que é inteligente e esforçado. Além de que se destacou como o melhor do reino em estratégia de combate e duelos um contra um.
— Esforço é bom, mas não basta. Precisamos de disciplina e habilidade. Ele terá sua chance de provar o que vale. Espero que não estejam errados.
Os militares assentiram, mas o silêncio que se seguiu foi breve. A entrada da tenda foi empurrada com força, e o general Carver entrou. Ele era um homem de porte robusto, vestes militares, e um lambido cabelo liso e loiro penteado para o lado esquerdo.
— Majestade, majestade! Precisamos conversar! Os nobres estão exigindo uma reunião antes de darmos qualquer passo adiante. Eles acreditam que precisamos reavaliar a situação — disse Carver, com um tom que combinava respeito e urgência.
Armand continuou a examinar o mapa por um momento, sem dar sinais de ter ouvido. Quando finalmente ergueu os olhos, sua expressão era de impaciência contida.
— Nobres… sempre prontos para debater quando há sangue a ser derramado — ele disse, e Carver deu um passo à frente, insistindo.
— O problema, Majestade, é que eles estão questionando a necessidade dessa guerra. Alguns estão começando a se perguntar se o rei está em pleno uso de suas faculdades mentais para insistir em entrar em um conflito que, para eles, parece desproporcional… especialmente se for apenas para lidar com sua filha.
— Questionar minha sanidade?… — Armand perguntou. Ele se virou lentamente para enfrentar Carver. — Minha filha representa uma ameaça que não podemos ignorar. Não estou lutando apenas para preservar a honra da coroa, mas para garantir a estabilidade do reino! Acham que eu não sei o que faço?!
Os capitães, agora visivelmente nervosos, tentaram evitar o olhar de Armand. Carver, com a voz hesitante, foi o único que respondeu:
— A preocupação não é com a sua decisão, senhor, mas com a justificativa para a guerra. Muitos acreditam que essa ação pode ser vista como uma obsessão pessoal, ao invés de uma necessidade estratégica para o bem do reino.
Ele tentou se controlar. Tentou conter o seu rosto contorcendo e as piscadas involuntárias. Mas não conseguiu. Armand deu um soco na mesa, fazendo os mapas e relatórios balançarem. O estalo reverberou pela tenda, e todos os presentes se assustaram.
— UMA OBSESSÃO PESSOAL?! — ele rugiu. — Pensem em como as outras nações nos veem enquanto permanecemos inertes, permitindo que uma assassina da rainha ainda ande livremente entre os vivos! É uma questão de princípio e sobrevivência! Se tenho que enfrentar a traição de minha própria filha, isso é um teste da minha capacidade de liderança e lealdade ao reino. Não serão os caprichos de nobres ou os questionamentos de generais que me desviarão do caminho. Se não compreendem isso, então não merecem estar aqui!
A reação foi instantânea. Os generais se levantaram abruptamente, as expressões de medo e respeito estampadas em seus rostos. Carver, visivelmente também abalado, tentou intervir, mas suas palavras foram abafadas pela intensidade de Armand.
— Vamos continuar com a emboscada em Sombrevale ao anoitecer! Quem quer que questione minha liderança ou a necessidade deste conflito, encontrará apenas um deserto de resposta.
…
A reunião já havia acabado.
Do lado de fora, o acampamento estava começando a se animar com o início do dia. A aurora tingia o céu de laranja e rosa, enquanto os soldados se preparavam para a missão ao anoitecer. O hino nacional de Imera preenchia o ar, uma melodia de incentivo e ordem. Armand apreciava aquele hino, que sempre o fazia olhar para a bandeira vermelho-vinho com um falcão brilhante de cor dourada no centro, símbolo de sua nação.
O grande rei caminhava pelo acampamento militar, recebendo saudações respeitosas de todos que cruzavam seu caminho. “Bom dia, senhor!”, “Dormiu bem esta noite, majestade?”, eram algumas das expressões de respeito que ele recebia, respondendo sempre com um aceno de cabeça e um sorriso afável.
Ele chegou à pequena tenda de seu sobrinho, Vini, e hesitou ao abrir a entrada. O jovem estava adormecido, de barriga para baixo, com uma leve marca de baba no travesseiro. Armand soltou um suspiro e se aproximou.
— Vini, acorde! — disse o cutucando.
Vini se mexeu, virando-se com um olhar confuso e sonolento. Seus médios cabelos castanhos estavam bagunçados, caindo sobre a testa. Ele esfregou os olhos, piscando várias vezes enquanto tentava focar no tio.
— Armand? O que…? — ele murmurou.
Ele era um jovem esguio com pele clara e um maxilar bem definido. Seus cabelos lisos e de comprimento médio emolduravam seu rosto, caindo até o início do pescoço, com algumas mechas frontais alcançando o nariz. Seus olhos, levemente caídos, possuíam cor de mel, que puxara de seu pai.
— Sua apresentação é em duas horas. É hora de levantar e se preparar — Armand disse.
Vini olhou para o relógio na cabeceira da cama, espantado.
— Ainda faltam duas horas?
— Algum problema com isso?
— Não, não… — Vini balbuciou, esfregando o rosto com as mãos. — É só que… faz pouco tempo que consegui dormir. E mesmo assim o tempo não passou.
Vini se ajeitou na cama, passando a mão pelo cabelo amassado e tentando espantar o sono mal dormido. Armand se sentou ao seu lado, colocando a mão gentilmente em seu ombro antes de retirá-la rapidamente.
— Você está… preocupado com a apresentação? — o rei perguntou.
— Eu só não quero apresentar uma técnica que não chame atenção — Vini suspirou, deixando escapar uma pequena risada nervosa.
— Sei que você se esforçou muito. A técnica vai ser boa. Você é talentoso, e… — ele fez uma pausa, tentando encontrar as palavras certas. — Apenas… não se preocupe demais com isso. Seu pai sempre acreditou em você, Vini, e eu também acredito.
Vini tentou esboçar um sorriso, mas a tensão ainda era visível em seus ombros. Armand levantou-se de repente.
— Vou me retirar agora. Apenas lembre-se de que seu pai estaria orgulhoso. Um garoto de apenas dezoito anos já criando sua própria Técnica de Aura? Você é mesmo um dos Valentine, Vini.
O sorriso de Vini se ampliou um pouco, e ele acenou com a cabeça. Armand deu um último olhar para o sobrinho antes de sair da tenda, deixando Vini se preparar para o grande momento.
Lá fora, ele colocou as mãos na cintura e observou o movimento dos soldados ao seu redor. Seus olhos seguiam cada movimento, mas sua mente estava distante, ainda processando a revelação da noite anterior e a confusão da reunião que ocorrera a poucos minutos. Não demorou muito para que uma figura feminina se aproximasse dele.
Era uma mulher de cabelos ondulados e pretos que caíam sobre os ombros, combinando com a maquiagem escura e discreta em sua pele rosada. Vestida com um uniforme militar que acentuava sua figura esguia, Armand a reconheceu imediatamente.
— Hécate… Vejo que você também acorda cedo. Diferente do meu sobrinho — comentou Armand, observando os olhos verdes dela com um sorriso.
Hécate sorriu de volta, aproximando-se dele.
— Você se preocupa bastante com ele, não é? — perguntou ela, ficando ao seu lado.
— Faço o que meu irmão faria por ele, se ainda estivesse aqui.
— Acredito que está no caminho certo — ela desviou o olhar para os soldados ao longe, o vento brincando com seus cabelos. — Dormiu bem?
— Sim, uma boa noite de sono. E você?
Hécate disse sim com a cabeça, ainda observando os soldados.
— Perguntei porque pensei que a informação que lhe passei ontem pudesse ter perturbado seu sono, meu senhor.
Armand manteve-se em silêncio por alguns instantes, a postura rígida. Ele voltou suas mãos para trás.
— Você realmente me surpreendeu. Esperava algo de grande nível vindo de uma espiã como você, mas me contar que minha filha estará em Sombrevale, servindo ao exército de Solitude e planejando conquistar Heletros amanhã? É mais do que eu imaginava. Você se mostrou uma aliada valiosa, Hécate. Sou grato por isso.
— Fico lisonjeada… — Hécate sorriu levemente. — É mais fácil quando se pode ser outra pessoa. Já decidiu o que fará com essas informações?
— Já conversei com meus homens agora pela manhã. Vamos emboscar ela hoje a noite.
— O que?! Mas isso poderá arrastar Imera para a Guerra Bizan-Solitudiana! — Hécate engoliu em seco, seus olhos se arregalando com a revelação. — Você está falando sério?
Armand assentiu.
— Vamos apoiar os Bizanianos, nossos antigos aliados na Guerra do Sangue. Minha filha sempre foi ambiciosa, mas não imaginei que fosse se aliar aos cachorros solitudianos e lutar a guerra deles.
Hécate tentou processar a informação, o silêncio pairando entre eles por um momento.
— Ela é muito parecida com você, Armand. Determinada, forte. Mas, infelizmente, impulsiva.
— Sim, impulsiva. Ela sempre quis provar algo, tanto para mim quanto para si mesma.
— E você, o que quer provar? — Hécate perguntou de repente.
Armand virou-se para encará-la, surpreso com a pergunta, mas respondeu sem hesitar.
— Quero provar que ainda sou capaz. Muitos têm questionado minha liderança nos últimos anos, Hécate. E agora, há rumores de que estou perdendo a razão… — ele balançou a cabeça. — Mas quem não perderia? Minha filha… ainda sinto o amor de um pai. Mas como perdoá-la por ter feito aquilo? Espero não fraquejar quando a encontrar, Hécate.
— E você não vai. Todos temem você, o Herdeiro do Sangue — Hécate olhou discretamente para o anel de Armand. — O homem que derrotou os Três Irmãos Helmers sozinho… O que pôs fim à Guerra do Sangue. Seu nome é respeitado em toda Pólemos, minha majestade. Muitos o consideram o homem mais forte que já pisou nesta terra. Um Deus entre os homens.
Armand sorriu, mas havia uma sombra de tristeza em seus olhos.
— O mais forte? Não, eu não sou. As pessoas têm uma visão errada sobre força, Hécate. Aqui mesmo, por exemplo… — ele apontou para alguns soldados que realizavam suas tarefas no acampamento. — há homens mais fortes do que eu.
— Você está sendo modesto.
— Falo a verdade. A visão que você tem sobre força é muito superficial. Não sou o homem mais forte, e nem serei. Afinal, nunca consegui derrotar o mais forte dos inimigos.
— O mais forte dos inimigos? — Hécate olhou curiosa para Armand. — E quem seria este?
Armand abaixou a cabeça, seus olhos se tornando introspectivos, como se lutasse para colocar em palavras uma verdade reprimida. Quase respondeu, mas preferiu guardar a resposta para si mesmo. Hécate respeitou o silêncio.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.