Capítulo VIII – A Sombra do Trono
Ele se encontrava de pé em uma sala escura. O ar estava denso. A luz fraca das velas tremiam, projetando sombras inquietas que pareciam dançar no teto.
De repente, ele viu seu pai e seu tio enfrentando-se com uma intensidade feroz. Seu pai, alto e esguio, estava sem armadura, vestindo apenas uma calça de tecido grosso. Seu peito nu brilhava com suor, cada músculo tenso e delineado, enquanto segurava uma longa espada. Linhas vermelhas pulsavam ao longo da lâmina, como veias cheias de sangue fervente que se uniam ao seu braço.
Seu tio, Armand, com os punhos cerrados, tinha os olhos faiscando de raiva em uma feição anos mais jovem.
— Você não vai! Você tem um filho, meu irmão! Não tem porquê ir! — gritava Armand, tentando desesperadamente impedir que o irmão saísse segurando-o com força pelo ombro. Com um movimento brusco, ele tentou puxá-lo, quase tropeçando nos próprios pés na tentativa de mantê-lo ali.
— Saia! — o irmão gritou, sacudindo o ombro com tal força que fez Armand cair no chão.
Armand tentou se recompor rapidamente, apoiando-se nos cotovelos enquanto o peito arfava com a respiração pesada. Ele abriu a boca para responder, mas nenhuma palavra saiu. Por um momento, apenas ficou ali, fitando o chão de terra batida, como se buscasse alguma força que já não tinha.
— Você não muda… nunca mudou, desde quando éramos garotos — lágrimas começaram a escorrer dos olhos de Armand. Aquela era a primeira vez que o pequeno garoto escondido viu seu tio chorar.
— Isso… são lágrimas? O grande Herdeiro do Sangue está chorando? — o irmão perguntou, com um sorriso sarcástico nos lábios. — Oh, pequeno Armand. Tão pequeno…
— Você vai morrer, e sabe disso! Se for até lá, deixará seu filho órfão… Você deixará uma nação sem o seu rei! — Armand gritou.
— Tão pequeno, mas tão grande — o irmão murmurou, dando alguns passos à frente em direção oposta a Armand. — A nossa diferença, pequeno irmão… — ele parou, lançando um olhar lateral para ele. — É que eu sou forte.
De repente, o pai do garoto notou sua presença escondida atrás da porta semiaberta. Ele abriu um sorriso. Um sorriso puro e sincero. Não precisava de despedidas. Só aquilo já bastava. Foi um adeus que ele sempre guardou em sua memória.
Então, a claridade começou a invadir o lugar, dissipando as sombras e trazendo uma luz quase dolorosa, iluminando a realidade de forma cruel.
…
Vini acordou em uma cama na enfermaria do acampamento militar. Piscou algumas vezes, tentando se ajustar à luz fria e sentiu o cheiro estéril e químico impregnando o ar. Ao seu lado, percebeu a presença de uma mulher sentada numa cadeira, absorta na leitura de um livro. Quando olhou de relance, reconheceu imediatamente a figura.
— Hécate… — murmurou ele, a voz rouca.
A mulher se surpreendeu com o chamado repentino. Fechou o livro no colo, revelando um sorriso caloroso enquanto voltava toda sua atenção para o rapaz.
— Você acordou — disse ela, com alívio na voz.
— Eu falhei.
Hécate suavizou seu olhar e tocou no pescoço do rapaz.
— Como está se sentindo? Ainda dói?
Vini permaneceu imóvel, seu olhar perdido no teto.
— Eu sonhei com o meu pai — ele desabafou de uma vez, roubando o olhar curioso de Hécate. — Estranho, não acha? Depois de tantos anos, sonhar justo no dia em que falhei diante do meu tio.
— O que você sonhou?
— O último dia que o vi. O dia em que ele me deu aquele sorriso. Aquele sorriso… — ele fechou os olhos por um instante, tentando se lembrar. — Hoje naquela sala, Hécate, eu me senti humilhado, como a menor das formigas neste mundo. E sonhar com aquele dia, ver meu tio caído no chão com lágrimas nos olhos… isso me fez perceber quão forte meu pai era. Nunca esquecerei como Armand Valentine, temido por todos neste mundo como o Herdeiro do Sangue, nunca foi o mais forte. Meu pai era o verdadeiro gigante. Perto dele, Armand parecia tão pequeno… Ele era amado por todos, sabia? Laurent Valentine era o homem mais querido de Imera — Vini deixou escapar uma risada suave. — Todos riam com ele. Todos o adoravam — ele baixou os olhos brevemente, perdendo-se em lembranças dolorosas. — Mas então veio o tão esperto Armand Valentine… Todo o amor que meu pai tinha como rei se transformou em medo quando a coroa passou para ele. A coroa que deveria ter sido minha.
— Vini, você não é mais uma criança. Pode reivindicar seu direito ao trono agora.
— Posso mesmo? Quem deseja um rei cuja cabeça foi cortada pelo próprio tio? Acha mesmo que vão me aceitar? Sou um fracasso, Hécate — Vini cerrava os punhos enquanto dizia. — Você sabia que nós Valentines sentimos uma grande necessidade em lutar contra nós mesmos? Meu pai e Armand viviam duelando. Eu e minha prima… Mas hoje, quando eu e o grande Herdeiro do Sangue duelamos, mesmo eu sendo um Valentine, vi apenas desgosto em seu rosto. Seus olhos não tinham mais brilho; era apenas… decepção.
A mão do rapaz começou a tremer, e Hécate delicadamente deslizou seus dedos por ele. Vini encontrou seu olhar, vendo-a sorrir, o que o acalmou um pouco.
— Não seja tão duro consigo mesmo, meu querido. Você sabe que não é uma decepção. — disse ela.
— Você tem certeza?
— Eu não me apaixonaria por uma decepção…
Vini sorriu, desviando o olhar.
— Você é muito boa nisso.
— Em quê?
— Em me enganar com esse amor — ele brincou.
— Oh, seu… — Hécate deu um tapinha leve nele. — Eu não brinco quando digo que o amo.
— Então por que não se casa comigo?
Hécate abaixou os olhos.
— Vini, já conversamos sobre isso. Como poderia me casar? Uma mulher impura e de sangue pobre como eu, casada com um dos Valentines? Eles nunca aceitariam.
— Não precisamos da aprovação deles — Vini a encarou nos olhos. — Podemos fugir. Podemos ir para algum país distante e viver como fazendeiros. Seria uma vida perfeita, se eu estivesse ao seu lado.
— Não seja tolo, meu querido. Quero um futuro grandioso para você. Eu vejo o seu potencial. E se nos casarmos um dia, será quando você se tornar rei e ninguém ousar contestar nosso amor.
— Rei… então morreremos sem nos casar, Hécate.
Hécate desviou o olhar, hesitante, ponderando se deveria revelar o que sabia. Após um breve momento, tomou coragem.
— Os nobres de toda Imera estão insatisfeitos com seu tio no poder — disse.
— Isso não é nenhuma novidade.
— Não… Eles estão REALMENTE insatisfeitos, Vini. A ponto de agirem.
Vini franziu o cenho, endireitando-se na cama.
— O que você descobriu? — perguntou.
— Você sabe que eu tenho meus contatos — Hécate começou, a voz baixa. — Fiquei sabendo que nobres de todo o reino têm se reunido em segredo, discutindo como tirar Armand do poder… e colocar você no trono.
Os olhos de Vini se arregalaram, e por um instante, ele ficou sem fôlego.
— Isso é impossível! Ninguém pode destronar Armand.
— Eu conheci um homem. Um homem poderoso. Ele me revelou um plano para acabar com Armand. E eu gostei da ideia.
— Você quer matar meu tio, Hécate?…
— Eu não disse isso — Hécate respondeu, seus dedos brincando com uma mecha de cabelo de Vini. — Só quero ver meu Valentine preferido no trono. O que será necessário? Isso, meu querido, eu ainda não sei.
Vini fechou os olhos por um momento, absorvendo as palavras dela. Sua mente estava em um turbilhão, dividido entre a tentação de finalmente reivindicar o trono de seu pai e a repulsa pela traição que isso representaria. Quando ele abriu os olhos novamente, havia uma intensidade nova em seu olhar.
— E o que mais você sabe sobre esse plano? — perguntou, sua voz firme.
— O homem que mencionei, ele é da Alta Patente de Fengaria.
— Fengaria? Por que alguém de Fengaria estaria envolvido nisso?
— Pense, Vini. O que Fengaria mais deseja que Armand possui?
Vini refletiu por um instante antes de um sorriso surgir em seus lábios.
— Ah, entendi… Faz sentido. Quem é esse homem?
— Ele prefere manter-se anônimo por enquanto, mas confie em mim, ele é influente e poderoso. E acredita que você seria um rei muito melhor para Imera do que Armand.
— E o que eu devo fazer?
— Primeiro, você precisa se recuperar, conquistar a confiança dos soldados e dos nobres. Mostre que é capaz de liderar. E quando o momento certo chegar, estaremos prontos para agir.
— Como eu poderia provar meu valor? Nunca mais subirei de posto depois de hoje.
— Oh, eu não te contei? É verdade, você estava dormindo…
— O que aconteceu?
— Ontem eu informei Armand sobre a localização da filha dele. Ela está servindo Solitude, e amanhã pretende conquistar Helestros.
— Hella em Solitude?! Aquela garota… ela não cansa de manchar nosso nome! O que Armand fará com essa informação?
Hécate soltou uma risada suave, quase debochada.
— Por que está rindo? — Vini perguntou, irritado.
— É curioso como os sentimentos podem transformar as pessoas, querido. Armand Valentine, o grande e poderoso rei de Imera, decidiu se aliar aos bizans e emboscar Hella.
— O quê?! De repente? Temos acordos comerciais com Solitude. Os nobres não tentaram impedi-lo?
— Quem ousaria impedir o Herdeiro do Sangue, Vini? Ele arrancaria a cabeça de qualquer tolo que tentasse.
— Meu tio não faria isso!
— E o que ele fez com você?
— Isso… foi diferente! Eu o desafiei para um duelo. Se fosse apenas uma conversa, ele não faria isso. Armand não é descontrolado, Hécate.
— Talvez, mas no fim das contas, a decisão é dele.
— Absolutismo em Imera… que piada. Então, quando será a emboscada?
— Quando? — Hécate se inclinou ligeiramente, seus olhos cintilando com malícia. — Armand não é tolo para esperar. Ele irá para Sombrevale hoje mesmo.
— Hoje?!
— Esta noite, para ser exata — Hécate confirmou, seus lábios se curvando em um sorriso. Ela se aproximou, sussurrando no ouvido de Vini. — Você não foi convidado, não é, meu querido? Armand estará em Sombrevale em sete horas. Hella chega em três. Imagine o prestígio que ganhará quem capturar Hella antes de Armand. Acho que você sabe onde quero chegar… meu rei.
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