Hella aterrissou no chão com um salto ágil, a poeira subindo ao seu redor enquanto se posicionava ao lado de Hélio. Seus olhos se fixaram em Cadell, cuja expressão ficou dura como pedra. Hella deu um passo à frente, interpondo-se entre os dois homens.

    — Como está, Hélio? — sussurrou, sem desviar o olhar do capitão.

    — Ferido, mas ainda de pé — Hélio respondeu, espiando a cabana ao longe. — Elas estão…

    — Eu sei — Hella interrompeu, firme. — Vá protegê-las, Hélio. Agora.

    — Você vai enfrentar ele sozinha?

    — Apenas vá — a determinação em sua voz não deixou espaço para discussão.

    Hélio hesitou por um segundo, então correu em direção à cabana. Um silêncio pesado pairou na clareira. O capitão não se moveu para interferir Hélio, apenas manteve os olhos fixos na mulher à sua frente. Eles se estudavam em silêncio. Então, finalmente, Cadell tomou a frente: 

    — Hella Valentine, você ainda é tão pequena quanto da última vez — abriu um sorriso. 

    Hella entrou na onda, também abrindo um sorriso. 

    — E você, Cadell de Valois, continua tão insignificante quanto sempre. Mas pelo que vejo, conseguiu um quepe de capitão… finalmente parou de limpar latrinas? — retrucou com igual veneno.

    Os dois começaram a circular um ao outro à espera do momento certo. Cadell, calmamente, recarregou suas pistolas. Hella, concentrada em cada movimento daquelas mãos, segurava firme sua balestra.

    — Me tornei o capitão mais jovem de Imera. Número um em todos os testes. Graças a mim, minha família agora é reconhecida em todo o reino — Cadell se vangloriou, sem tirar os olhos dela.

    — Então finalmente saiu do buraco? Olha, estou realmente surpresa.

    — E mal saí, você entrou, como a ratazana que sempre foi. Seu pobre pai… ter uma filha como você… — Cadell soltou uma breve risada, interrompendo a frase.

    Hella sentiu um aperto no coração ao ouvir sobre o pai, mas manteve a compostura. Seus olhos, antes desafiadores, agora tinham um leve toque de tristeza.

    — Por que ele está atacando Sombrevale? — perguntou.

    — Para capturar a filhinha, é claro. 

    — Mas isso significa que Imera está rompendo acordos com Solitude! Está entrando em uma guerra que não vai trazer nada de bom para o povo. Meu pai nunca faria isso…

    — Você não tem ideia do que seu pai faria para ter sua cabeça numa bandeja, garotinha. Você o matou, sabe disso, não sabe? Assim como fez com sua mãe, você matou seu pai — Cadell apontou suas pistolas para ela. — Hella, a Desgraça dos Valentines!

    Antes que ele pudesse atirar, Hella se lançou para o lado, rolando no chão enquanto os tiros ecoavam pela clareira. Uma bala roçou seu ombro, mas ela ignorou a dor, focada no combate.

    Ainda no chão, Hella apontou sua balestra para Cadell e disparou. O tiro foi rápido e certeiro. No entanto, Cadell largou uma das pistolas e estendeu a mão em direção à flecha. Graças à Aura da Cabra, capaz de manipular e alterar a realidade física, ele fez com que a flecha perdesse força no meio do voo, caindo inofensivamente no chão antes de alcançá-lo.

    Quase que instantaneamente, ele voltou a mão para o solo, canalizando o poder de sua aura. O chão abaixo de Hella tremeu e, em um instante, se partiu em estilhaços que se elevaram rapidamente, formando um casulo de rocha ao redor dela. Em questão de segundos, Hella estava presa, com apenas sua cabeça exposta, incapaz de se mover enquanto os fragmentos do solo se juntavam ao seu redor.

    Cadell observou com uma sobrancelha arqueada quando conseguiu a capturar tão facilmente.

    — Mas é claro… essa aura nojenta! — zombou ele, desfazendo sua técnica e deixando os estilhaços de terra caírem ao redor de Hella, que na verdade era um clone ilusório. 

    A verdadeira Hella havia utilizado sua Aura da Serpente, capaz de criar ilusões e manipular a mente, para escapar. Durante o curto intervalo de tempo em que Cadell se distraiu olhando para o chão abaixo dela, ela se tornara invisível, deixando apenas o clone para enganá-lo.

    O jovem capitão olhou ao redor tentando localizar a esperta mulher com sua técnica de faro de cão. De repente, um segundo disparo da balestra cortou o ar, vindo de alguns metros à sua esquerda. Ele reagiu a tempo, estendendo a mão e usando sua técnica para diminuir a velocidade da flecha novamente. Sem perder tempo, logo em seguida ele manipulou a gravidade ao redor da mesma mão, criando uma força que começou a puxar Hella que havia acabado de revelar sua localidade com o tiro.

    Enquanto a mulher era arrastada em direção a Cadell, seus olhos se encontraram por um breve momento. Nesse instante, ele percebeu, tarde demais, a intenção dela. Hella utilizou sua própria pupila para ativar uma técnica ocular, usando a Aura da Serpente para atacar diretamente a mente de Cadell. A visão dele escureceu, como se uma sombra densa tivesse se instalado em sua mente, bloqueando sua percepção.

    Desorientado e agora cego, Cadell parou de puxá-la. Ele apenas conseguia ouvir os passos rápidos de Hella se aproximando cada vez mais. Em um ato de puro reflexo e antecipação, ele estendeu a mão para frente, tateando no escuro, e conseguiu agarrá-la pelo pescoço.

    — Te peguei, desgraçada! — disse ele com um sorriso de vitória, apertando com força o pescoço dela, mas percebendo que estava com uma textura diferente.

    — Tem certeza? — uma voz disse atrás dele.

    O sorriso de Cadell sumiu ao perceber que estava segurando apenas mais um clone ilusório, que se desfez em fumaça. A verdadeira Hella estava atrás dele, a balestra apontada diretamente em suas costas. Cadell mal teve tempo de reagir antes que Hella pressionasse o gatilho.

    A flecha atravessou e saiu pelo peito direito do capitão imeriano, arrancando um grito de dor. Ele cambaleou para trás, levando a mão ao ferimento, sentindo o sangue quente escorrer por entre os dedos. Por sorte, a flecha não havia acertado seu coração. 

    Agora caído no chão, a visão de Cadell começou a clarear. Ele viu Hella se aproximar, puxando uma adaga de sua bota. Antes que pudesse se mover, ela já estava em cima dele, pressionando a lâmina contra seu pescoço.

    Mesmo ferido e sentindo a lâmina fria, o homem sorriu.

    Hella arregalou os olhos ao perceber seu erro. Tentou cortar o pescoço dele o mais rápido que pôde, mas já era tarde demais. Diante dela, a pele de Cadell começou a se transformar, crescendo pelos espessos e adquirindo uma textura grotescamente resistente. Suas mãos se deformaram em garras monstruosas, como as de um cão gigante. Com um único golpe, ele acertou o braço de Hella, lançando-a para longe e rasgando sua carne. 

    O capitão levantou, sua forma agora, uma terrível fusão entre homem e cão. O corpo era uma visão distorcida: braços alongados e tortos terminavam em garras afiadas. A pele, antes lisa, estava grotescamente misturada com pelo grosso e negro, que crescia em tufos irregulares, rompendo a carne como se quisesse escapar. Essa transformação era um exemplo clássico do poder de manipulação corporal dos usuários da Aura da Cabra, que lhes permite adquirir formas e membros de animais.

    Cadell odiava ter de recorrer a essa transformação, que tomava parte de sua racionalidade, mas sabia que era a única forma de sair vivo daquela. Sua mente era agora uma confusão, onde o instinto primal dominava, forçando-o a atacar sem pensar.

    — Aí está ele… a mesma coisa feia de sempre — zombou Hella, segurando seu braço ferido enquanto estava caída no chão. Seu olhar vagou pela área, mas a balestra e a adaga estavam perdidas de vista. — Eu tenho que ir atrás deles — ela pensou, lançando um olhar sutil na direção da cabana.

    Hella fechou os olhos por um breve instante, concentrando-se. Quando abriu os olhos novamente, o mundo ao seu redor se distorceu ligeiramente, como se a realidade estivesse sendo dobrada pela força de sua vontade. Cadell hesitou.

    De repente, a figura de Hella diante dele começou a se multiplicar. Uma, duas, três… uma dúzia de Hellas surgiram ao seu redor. 

    — Pegue-me se puder, lobo estúpido — todas as Hellas falaram em sincronia.

    A fera rosnou, suas garras afiadas rasgando o ar enquanto tentava atacar as ilusões. Uma por uma, elas se dissiparam em fumaça, mas sempre havia outra para tomar seu lugar. Cadell estava ficando frustrado, seus ataques se tornando mais desordenados e selvagens. Hella, aproveitando-se da distração, começou a recuar, movendo-se furtivamente para a borda da clareira em a cabana.

    Após ser salvo por Hella, Hélio corria em direção à cabana. Não havia mais nenhum soldado imeriano do lado de fora; todos haviam entrado. Ao chegar à porta, viu sangue escorrendo por baixo dela. 

    Seu coração acelerou.

     Não havia mais sons de luta, apenas um silêncio que ecoava morte. Hélio sentiu um arrepio gelado percorrer sua espinha, e Enki, em sua mão, parecia tão impotente quanto ele, sem palavras para expressar o horror do que poderiam encontrar lá dentro. 

    Com as mãos trêmulas, Hélio agarrou a maçaneta, preparado para enfrentar o pior.

    Seu mundo se transformou em um pesadelo vermelho. O interior da cabana era um abismo de sangue e morte. Nunca antes ele havia presenciado tamanha carnificina, tantos órgãos espalhados, tantas vidas ceifadas. Strivia, banhada em sangue ao lado de Kalina no chão, ainda inconsciente, permanecia de pé, lutando para respirar. Faíscas de energia púrpura ainda dançavam em suas mãos, como um lembrete vívido do poder que ela acabara de usar.

    Aquilo é… a Arte do Limbo! — Enki exclamou.

    O sangue pintava cada centímetro da cena. Hélio não podia escapar dele, estava no teto, nas paredes, no chão, até mesmo em seus próprios pés. Gotas vermelhas e pedaços de carne em seus ombros, trazendo consigo as entranhas daqueles soldados que ousaram invadir a cabana. Quando seus olhos cruzaram os de Strivia, com suas íris tão roxas quanto um campo de violetas, a escuridão o envolveu.

    Naquela escuridão, o tempo se tornou irrelevante. Um silêncio pesado era a única verdade, como se todas as preocupações tivessem sido dissipadas. Havia paz. Sua existência era nula. Então, os chamados começaram a ressoar. “Acorde! Acorde, Hélio!” 

    Ele abriu os olhos e deparou-se com Hella segurando um ferimento em seu braço que já havia sido cicatrizado.

    — Finalmente! — ela disse, ofegante. 

    Hélio se sobressaltou, olhando ao redor. A cena grotesca ainda estava diante dele, o chão e paredes manchados de sangue e corpos inertes espalhados pela sala. Kalina estava sentada em uma cadeira, massageando a têmpora com uma expressão de dor. No canto mais distante, isolada, Strivia permanecia em silêncio, tão imóvel quanto uma estátua.

    Fora da cabana, os soldados imerianos batiam freneticamente nas paredes, clamando por entrada, porém uma barreira de energia erguida por Strivia os mantinha afastados.

    — Estamos cercados! — Hella disse, levantando-se e soltando um gemido de dor por causa do braço. — Maldito Cadell! — resmungou.

    — O que aconteceu?! Quanto tempo eu desmaiei? — Hélio perguntou.

    Sete minutos — Enki respondeu, flutuando acima dele.

    — Não sei ao certo. Dez minutos, talvez. Você foi incrível, Hélio. Realmente incrível — Hella disse.

    — Incrível? — Hélio se levantou, tentando entender melhor.

    — Você salvou seus companheiros. Strivia me contou. Fiz bem em mandar você para cá; você matou todos eles. Não sabia que você era tão… brutal. 

    Hélio olhou para Strivia no canto, que desviou o olhar.

    Percebeu? — Enki interveio.

    — Que ela mentiu? Sim. — Hélio respondeu baixinho.

    Não apenas isso. Ela usou a Arte do Limbo contra você. Por isso você desmaiou. A não ser que você seja uma garotinha que tem medo de sangue.

    — Não mesmo. 

    Então ela realmente usou o Limbo…

    — Os olhos dela não estão mais daquela cor.

    Cuidado, Hélio. Ela não é uma simples médica. Técnicas do Limbo tem um custo imoral para serem usadas. 

    Hélio concordou, sacudindo os braços para se livrar do sangue que havia caído sobre ele. Então, voltou sua atenção para Hella, que andava de um lado para o outro, impaciente. O som de fora, batidas e gritos, mesmo abafados, ainda davam para se ouvir.

    — O que está acontecendo lá fora, Hella? — Hélio perguntou. 

    — Minha localização vazou, e agora os imerianos estão nos emboscando! São como ratos, havia mais de mil atacando o vilarejo! E aquele maldito… — Hella se encolheu, apertando o ferimento em seu braço que havia sido ligeiramente cicatrizado por Strivia. — Tive que fugir para cá, e só estamos conseguindo manter os imerianos do lado de fora graças à técnica de Strivia — fez uma pausa, a expressão carregada de frustração. — Mas é uma desgraça!… Vamos ter que recorrer a isso.

    Ela retirou uma pequena esfera negra de uma das bolsas de sua jaqueta. Strivia reconheceu imediatamente a esfera que Hella segurava, um leve sorriso cruzando seu rosto antes de desaparecer tão rapidamente quanto apareceu.

    — Isso é uma pedra de teletransporte? Vamos abortar a missão? — a médica perguntou.

    — Sim — afirmou Hella. 

    — Oh, Deus… obrigada! — murmurou Kalina, esfregando a testa soada com alívio. 

    De repente, o semblante de Hella se transformou, e sua raiva explodiu como um trovão. Num movimento brusco, ela avançou sobre Kalina, agarrando-a pelos ombros com força. Seu rosto estava a centímetros do da rastreadora.

    — Você está agradecendo?! — Hella cuspiu as palavras, sacudindo Kalina. — Estamos sendo atacados pelos imerianos, perdemos a oportunidade de conquistar Helestros… e você está agradecendo?! — ela apertou os ombros da garota ainda mais, como se tentasse esmagar a ingratidão que via nela. — Você é patética, garotinha! Fica se remoendo como um ratinho assustado, então deveria voltar para o esgoto de onde veio!

    Kalina ficou momentaneamente sem reação, os ombros ainda presos sob o aperto de Hella. Lágrimas involuntárias começaram a se formar em seus olhos, mas ela as conteve, mordendo o lábio inferior para evitar que caíssem. Ela apenas encarou Hella, perdida entre o medo e a humilhação, sem conseguir encontrar palavras.

    Hélio, que observava a cena ainda confuso, decidiu agir. Ele se aproximou de Hella colocando a mão no ombro esquerdo dela.

    — Hella, chega! — ele disse com firmeza, tentando puxá-la de volta à realidade. — Deixa a garota em paz. Ela não tem culpa de nada. Nós sabemos que uma hora seu pai iria fazer algo assim. Vamos agradecer por estarmos todos bem e você ter um meio de fugir. 

    Hella suavizou o olhar, os ombros tensos sob o toque de Hélio, antes de finalmente soltar Kalina, se afastando. Ela abaixou a cabeça, evitando os olhares ao redor.

    — É… vamos agradecer — murmurou ela, a voz menos firme do que antes. Hella ergueu o rosto, resoluta novamente, e olhou para o grupo. — Vamos abortar. Estão todos de acordo?

    Os outros trocaram olhares rápidos e assentiram em silêncio. Hella respirou fundo e convidou-os a se aproximarem. Uma vez reunidos ao redor dela, ela apertou a pedra e a lançou ao chão com força. O impacto gerou um círculo branco ao redor deles, uma luz intensa que envolveu a todos. Num piscar de olhos, a cabana desapareceu ao seu redor.

    Hélio despencava em queda livre, o vento gelado cortando seu rosto como lâminas invisíveis, até que, de repente, foi tragado por um líquido viscoso e vermelho. O impacto foi brutal, e o calor sufocante do líquido envolveu seu corpo, tornando-o pesado e lento. Sentiu o pânico subir pela garganta. A substância espessa fazia cada movimento parecer uma luta contra a própria vontade, como se o sangue ao seu redor quisesse mantê-lo prisioneiro.

    Ele lutava para manter a cabeça fora do líquido, ofegante. Com esforço, levantou a mão, e uma chama fraca tremeluzia na ponta de seu dedo, lançando sombras no ambiente sombrio. O poço ao redor parecia infinito, um abismo sem fim que se estendia em todas as direções.

    — Pessoal?! Enki?! — gritou. Ele girou, os olhos dilatados tentando encontrar qualquer sinal dos outros. Mas não havia ninguém, apenas o silêncio esmagador.

    Ao olhar para cima, sentiu um alívio repentino ao ver Enki, sua espada flutuando logo acima do poço. 

    Mas que lugar é esse? Por que Hella nos mandou para cá? — perguntou a espada, sua voz soando curiosa.

    Hélio, ainda tentando manter a cabeça acima do sangue, olhou ao redor mais uma vez. Nem sinal de Kalina ou Circe, e muito menos de Hella.

    Parece que só nós dois viemos parar aqui… provavelmente por nossas auras estarem conectadas. Isso significa que…

    — Fomos interceptados.

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