Guiado pela luz vacilante da chama, Hélio avistou uma escadaria emergindo das profundezas. Com esforço, nadou até ela, arrastando-se pela superfície escorregadia coberta de musgo. Quando finalmente conseguiu deitar-se sobre a escadaria, seus pulmões ofegavam, tentando recuperar o fôlego.

    — Cacete… nunca pensei que ia nadar em sangue — comentou Hélio. 

    Hélio, você confia mesmo em Hella? — perguntou Enki, pairando acima dele como uma sentinela.

    Hélio franziu a testa com a pergunta.

    — Que pergunta é essa? É óbvio que sim! — respondeu enquanto ele tentava se levantar, o corpo ainda encharcado de sangue.

    Então, se fomos interceptados, quem poderia ter feito isso?

    — Não sei. Talvez algum dos soldados que estavam do lado de fora?

    — Se for o caso, ele merece uma promoção — Enki riu. — Não conheço nenhum homem capaz de interceptar um teletransporte sem estar ciente dele com antecedência. É possível, mas exigiria reflexos absurdos.

    — O que você quer dizer?

    — Para realizar um teletransporte, uma quantidade enorme de aura é usada, mas o processo dura no máximo dois segundos. Agora imagine alguém capaz de perceber e alterar a trajetória de um teletransporte em apenas esse tempo? Isso não é coisa de soldado comum.

    — De qualquer forma, precisamos descobrir onde estamos. Um lugar com um poço de sangue… isso é loucura! Espero que Hella e as outras estejam bem.

     Hélio seguiu com os passos até encontrar uma segunda escada mais íngreme e com degraus. Subiu-a, chegando em um corredor escuro. As paredes vermelhas estavam vazias; não havia portas ou móveis, apenas a quietude das sombras. Junto a sua espada, ele começou a caminhar ainda iluminando o caminho com as chamas de seu dedo. 

    — Quem diria que nadar num poço de sangue cansaria tanto… — Hélio comentou, tentando limpar o sangue viscoso de suas roupas. — Meu braço parece estar melhorando… Enki, você tá aí?

    Ainda estou incomodado com essa interceptação, Hélio… Como se chamava mesmo aquela médica?

    — A Strivia?

    Ela mesma. O que garante que ela não tenha nos interceptado?

    Tá achando que ELA nos interceptou?… Apesar de que ela pareceu bem suspeita depois de me fazer levar a culpa de ter matado todos na cabana. 

    — Exatamente. E isso me leva a algo. Você sabe o que é uma técnica do Limbo?

    — Um pouco. Sei que é proibida no mundo todo.

    Não é proibida à toa. Essas técnicas são bênçãos concedidas diretamente pela Mãe. Apenas os devotos podem manejar tal poder.

    Hélio olhou brevemente para a cicatriz que marcava seu pulso esquerdo, antes de focar novamente no caminho à frente.

    — E o que te faz pensar que ela usou uma técnica do Limbo? — ele perguntou. 

    Os olhos dela estavam tingidos de um roxo intenso, a tonalidade sagrada da Mãe. E aquela carnificina na cabana… Quanto tempo ficamos lá fora enquanto os soldados invadiam? Três, cinco minutos? Qualquer aura desperta de sua idade teria sido massacrada ou ainda estaria lutando. Mas ela… os aniquilou, Hélio.

    — Além de que ela usou uma técnica ocular ilusória em mim. Algo que apenas os portadores da Aura da Serpente conseguem fazer. Mas ela tem a Aura da Cabra. Não faz sentido… 

    As técnicas do Limbo vão além dessas limitações. Para usá-las, a pessoa deve sacrificar um humano vivo para a Mãe. Alguém que tem um vínculo sentimental. Sua alma é absorvida, e dizem que é apagada da existência. Depois disso, a pessoa pode até mesmo usar técnicas de uma aura que não herdou. Esse é o único meio conhecido para utilizar técnicas de mais de uma aura sem os usos de selos.

    — Era óbvio que existia algo assim… Esse mundo que vivemos… Eu sinto nojo de quem fere pessoas inocentes por interesses próprios. 

    Olhe, você não é muito diferente, é? 

    — Hã?

    Ora, você me disse antes de perder a perna. Quer viver pela espada, “derrotar o mais forte dos inimigos”. Para isso, vai ter que ferir muita gente.

    — É óbvio que é diferente! Não vou ferir inocentes ou lutar de maneira covarde. Vou desafiar cada homem forte que encontrar. Não obrigarei ninguém, e se aceitarem, saberão o risco de morrer pela minha espada.

    Morrer por mim, no caso — Enki riu. — Você mencionou antes que já morreu várias vezes. Como é que volta mesmo? Só selos de Dupla Vida? Sei que são difíceis de fazer, e proibidos na maioria das nações…

    — É mais complicado que isso — Hélio mostrou o pulso esquerdo, onde uma cicatriz marcava a pele. — Aqui costuma ter uma tatuagem. É o meu Selo de Dupla Vida. E o diferencial é que ele retorna sempre à meia-noite.

    Espera… isso é um selo de dupla vida infinito?!

    — Praticamente. Se eu morrer e não morrer de novo logo em seguida, o selo volta à meia-noite. E o ciclo recomeça.

    Eu nunca pensei nisso… Digo, Gagadum nunca pensou! E como você conseguiu?

    — É uma longa história…

    Bem, estamos andando nesse corredor sem fim há um tempo. Vamos lá, me conte.

    Hélio respirou fundo, preparando-se para falar.

    — Sou o filho mais velho de um dos Três Irmãos, os Helmers, que é a família real de Fengaria. Minha mãe é Theia Helmer. Então, tecnicamente, sou um nobre, mas nunca fui príncipe, pois o rei era meu tio, Érebo.

    — Isso explica sua relação com Hella.

    — Sim, nossas famílias eram próximas. Viajávamos entre Imera e Fengaria como se fossem nações irmãs… até que as coisas mudaram. Uma guerra começou. Na época, meu tio era muito amado pelo povo de Fengaria, e ainda é. Mas ele foi selado em um anel após lutar contra Armand Valentine. O motivo de ter sido selado e não morto, é que Érebo era conhecido como O Amante da Morte. Sabe este selo que eu tenho? Era um dos sete que ele possuía.

    Sete selos de Dupla Vida que retornam à meia noite? Isso é poder demais para um homem só! E como esses selos chegaram até você?

    — Antes de ser selado, meu tio transferiu metade dos selos para sua espada e a enviou de volta à capital. Meses se passaram, Érebo continuou selado, e Fengaria ficou sem um rei. Minha mãe e o tio Aldric não queriam o trono, então decidiram que um dos filhos o tomaria.

    Você foi escolhido?

    — Eu? — Hélio riu. — Eu era visto como um inútil aos olhos deles. Minha mãe escolheu uma das minhas duas irmãs. O problema é que… Éos nunca quis isso. Era a caçula. Tinha apenas quatorze anos na época.

    Colocar tantos selos assim em uma garota de quatorze anos é insano!

    — Não para minha mãe. Ela acreditava que nossa família era forte de sangue e que Éos se tornaria tão poderosa quanto Érebo. Eu me opus desde o início, dizendo que sua aura era descontrolada demais por conta da idade, mas é claro que fui ignorado. Ela dizia que eu estava com inveja… — Hélio deu uma risada amarga. — Minha irmã foi forçada a aceitar. No dia da transferência, era claro que ela morreria. Depois do primeiro selo ser transferido, sua aura já estava no limite, mas mesmo assim minha mãe queria continuar… Então, eu tirei minha irmã de suas mãos. Aquele dia… eu me tornei um traidor. Fugi de lá banhado em sangue como a maior vergonha dos Helmers.

    Hélio parou de caminhar, cerrando o punho, suas lembranças pesando sobre ele.

    — Passei quase um ano fugindo com minha irmã. Vivemos escondidos, mas ela ficou muito doente. O selo estava acabando com seu corpo que não tinha controle de fazê-lo funcionar. Com certeza, morreria na segunda transferência caso eu não fugisse com ela — ele fechou os olhos por um momento. — De qualquer modo, isso não adiantou de nada… Eu ainda me lembro. Ela sonhava em ser uma espadachim forte, longe de politicagem e viver viajando… Ela queria derrotar os mais fortes dos inimigos — Hélio sorriu. — No dia de sua morte, ela transferiu este selo para mim e me pediu para seguir o sonho dela. Ela me conhecia bem. Sabia que eu nunca havia encontrado meu lugar no mundo e me deu essa missão. Eu não podia recusar… Por isso, vou derrotar os mais fortes dos inimigos. Pela minha irmã.

    Isso é… respeitável, Hélio — a voz de Enki se suavizou. — Você carrega o peso dela consigo. Essa é uma boa motivação, mas… não acha que isso é um pouco autodestrutivo?

    — Talvez — Hélio deu de ombros e retomou a caminhada. — Mas é a única coisa que me faz sentir vivo. Não tenho para onde ir, não tenho família para recorrer… só me restou viver o sonho da minha irmã. E isso não é ruim — seus olhos recaíram sobre a cicatriz em seu pulso. — Só tem uma coisa me incomodando… eu lembro que ela me disse algo antes de me dar este selo. Mas não lembro o que foi… droga, ainda não recuperei todas as memórias.

    Bem, foi um presente, não foi?

    — O quê?

    O selo.

    — Ah, o selo… Na verdade, ela o odiava. Detestava isso com todas as forças. Por causa dele, sua vida foi arrancada. Seus sonhos… Ela queria arrancá-lo à força e jogar no lixo. Não sei por que ela me daria algo que odiava tanto… não faz sentido — ele soltou um suspiro pesado. — Enfim, vamos deixar isso de lado. Alguma hora vou lembrar.

    Pelos minutos que se seguiram, Hélio e Enki avançaram. A escuridão ao redor parecia se apertar, tornando o ar denso, pesado. Os sentidos do espadachim estavam em alerta, e ele sentia o peso do vazio à sua frente, até que um som quase imperceptível rompeu o silêncio.

    Hélio parou de repente. Um murmúrio abafado. Era baixo, mal audível, como um sussurro perdido na escuridão. Ele estreitou os olhos, tentando identificar a fonte do som, até que percebeu: era um choro.

    Com cuidado, Hélio moveu-se em sua direção. Cada passo seu era mais lento, mais controlado. Quando se aproximou, a luz frágil revelou uma figura encolhida contra a pedra úmida. Era uma jovem garota, os braços apertados em torno dos joelhos, o rosto oculto, e os ombros sacudindo-se com soluços silenciosos. As vestes estavam encharcadas de sangue. 

    Hélio se abaixou, reconhecendo aqueles cabelos castanhos e ondulados.

    — Kalina…?.

    A garota se afastou assustada. Mas então, ela ergueu o rosto. Era mesmo Kalina. Seus olhos se arregalaram ao reconhecer Hélio; um brilho de alívio e pavor se misturou naqueles olhos. Num impulso, ela se jogou em sua direção, os braços envolvendo-o num abraço desesperado que o pegou de surpresa.

    — Hélio! Graças a Deus você me achou! — disse ela enquanto pressionava o rosto contra o peito dele. — Eu estava com tanto medo… Achei que vocês tinham morrido e me deixado!

    Por um momento, Hélio permaneceu rígido, sem saber como reagir. Sentiu os batimentos acelerados de Kalina contra seu peito, a respiração irregular dela e o aperto de seus braços.

    — Ei, Kalina… — ele murmurou.

    Kalina ergueu o rosto, ainda segurando-o firmemente. Os olhos dela, vermelhos e inchados de tanto chorar, se encontraram com os dele. Hélio notou o sangue seco que cobria suas bochechas. Não sabia o porquê de estar fazendo isso, mas começou a limpar seu rosto suavemente.

    — Você… está cheia de sangue.

    — Eu… eu não sei nadar, Hélio. Eu quase morri… — ela admitiu, a voz vacilando enquanto lágrimas frescas começavam a escorrer novamente. — Eu achei que ia morrer, Hélio! — repetiu, a voz agora tomada por uma angústia quase infantil, e voltou a se encostar no peito dele, os soluços sacudindo seu corpo.

    Hélio finalmente retribuiu o abraço, apertando-a suavemente contra si. Sentiu o calor do corpo dela e a intensidade de sua fragilidade. Por um momento ele se lembrou de sua irmã.

    — Está tudo bem, Kalina… Você está aqui agora. Vamos sair daqui. Encontraremos Strivia e daremos o fora desse lugar.

    Ela assentiu, ainda soluçando, mas sua respiração começou a se estabilizar. Eles começaram a andar juntos, com Enki silenciosamente os acompanhando enquanto Hélio iluminava o caminho à frente.

    — Eu ainda não entendo o que está acontecendo. Esse lugar… — Kalina disse enquanto caminhava segurando o braço de Hélio. 

    Um Poço de Sangue bem estranho — Enki respondeu, esquecendo-se momentaneamente de que Kalina não podia ouvi-lo. Hélio soltou uma risada curta.

    — Pelo o que Enki me contou, isso aqui é o Poço de Sangue. Meio macabro, não acha?

    — Macabro… — Kalina repetiu. — Hélio… posso te perguntar uma coisa?

    — Pode, claro. 

    — Como é a sensação de morrer…? Desculpe se for incomodo, mas é que eu quase morri. Eu senti que ia morrer. Eu… eu implorei a Deus pela minha vida enquanto me afogava. Então, de repente, consegui forças para sair. E a capitã Hella disse que você já morreu várias vezes e voltou por causa de selos. Você deve saber como é, né?

     — Ah, sim… Já me tornei bem íntimo da Dona Morte — disse ele, esboçando um sorriso melancólico. — Eu já morri de muitas formas. Antes de começar com essa coisa de reviver, nem sabia nadar. Foi no dia que morri afogado que aprendi. Também já morri a facadas, a tiros… uma vez fui estraçalhado por um urso — um calafrio subiu só de lembrar da cena. — E, sobre a sensação de morrer… é estranho. É como se tudo se apagasse de repente. Fica escuro, seco, vazio. Como se você simplesmente não existisse mais. Uma hora você está aqui, e no momento seguinte, só há escuridão. E, então, você começa a ver coisas… memórias, talvez, coisas que achava que tinha se esquecido. Não tem dor, não tem medo… só uma sensação de que está indo para algum lugar. Mas eu nunca cheguei a esse tal lugar, porque os selos sempre me puxam de volta. É como… um desmaio, talvez. Se você já desmaiou, sabe como é.

    Kalina ouvia atentamente, absorvendo cada palavra.

     — Acho que consigo imaginar… obrigada, Hélio — agradeceu com um pequeno sorriso de alívio. Hélio sorriu de volta, satisfeito em vê-la um pouco mais calma. 

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