O crepitar das chamas era sua única companhia.

    O calor das brasas tornava o ar quase irrespirável, mas a dor dentro de Armand queimava ainda mais. Perdido em pensamentos, ele observava os girassóis que ardiam em uma carroça enquanto um zumbido distante incomodava seus ouvidos.

    — Armand… senhor Armand? — a voz firme de Carver, seu fiel general, o trouxe de volta à realidade.

    Armand piscou.

    Ao seu redor, Sombrevale estava repleta de seus soldados. O vilarejo rendido era agora um campo de ocupação. Devido a sua pouca defesa, não houve resistência. Foi uma invasão tranquila e rápida.

     Carver estava ao seu lado acompanhado por Cadell, cujo uniforme encontrava-se rasgado e o corpo marcado por ferimentos da última batalha contra Hella Valentine.

    — General Carver, capitão Cadell… Notícias? — perguntou Armand.

    — Infelizmente não são boas, meu senhor. Hella conseguiu fugir. Fizemos o possível, mas não foi suficiente — Carver respondeu. 

    Armand fechou os olhos, pressionando os dedos contra as têmporas.

    — Fugiu… de novo? — murmurou. Ele pensou em Vini, aliviado por não tê-lo encontrado no vilarejo. Talvez ele tenha escapado disso tudo.

    — Lamento, senhor — respondeu Carver. Ele colocou a mão no ombro de Cadell, incentivando-o a falar. — O capitão enfrentou-a diretamente. Ele pode lhe dar mais detalhes.

    Cadell avançou um passo, visivelmente enfraquecido, segurando o lado do peito onde uma flecha o havia perfurado.

    — Eu quase a capturei, meu rei. Quase. Mas ela usou a Aura da Serpente para escapar. Foi isso que a salvou.

    — Quase… — repetiu Armand, baixinho. Seus olhos voltaram à carroça em chamas. — Foi uma luta difícil, imagino.

    — Devo admitir que sim. Ela é esperta e quase me matou. Não me surpreende, considerando quem é o pai dela.

    Armand permitiu um sorriso fraco no rosto.

    — E como ela está? — perguntou ele.

    — Eu não reparei bem. Estava escuro e tudo foi muito rápido. Mas ela parecia mais magra, talvez. Mas se me permite, meu senhor, posso lhe dizer mais sobre como ela me tratou.

    — Então diga.

    — Arrogância deveria ser seu sobrenome. Ela zomba do que fez, insulta a memória da mãe sem um traço de remorso. Hella se tornou uma assassina fria.

    Carver o encarou com um olhar severo.

    — Cuidado com suas palavras, capitão — disse. 

    — Não, deixe-o falar — Armand ergueu a mão. 

    — Ela… — Cadell tossiu um pouco de sangue e se recompôs. — Ela me enfrentou como se eu fosse um mero obstáculo. Atirou uma flecha no meu peito sem hesitar. Eu, que já a chamei de amiga… Se precisava ouvir de alguém que a conheceu, então escute: Hella não é mais a mesma, meu senhor. Ela se tornou um monstro. E me entristece profundamente saber que não há salvação nela.

    — Você a conhecia bem, Cadell. Estudaram juntos. Se me diz que ela se tornou um monstro… não sei o que posso fazer se não acreditar. Mas me diga, para que direção ela foi? 

    Carver e Cadell trocaram um olhar incerto. 

    — Acreditamos que ela foi teletransportada para o Castelo do Sangue, meu senhor — disse Carver, cauteloso. 

    Armand se virou abruptamente. 

    — O que disse?! Vocês a enviaram para lá?! — gritou.

    — Não, senhor! — Carver ergueu as mãos em um gesto apaziguador. Por um instante, pareceu que Armand avançaria sobre ele. — Detectamos fragmentos de uma interceptação. Ela tentou usar uma pedra de teletransporte, mas alguém interferiu e a mandou para o Castelo do Sangue. 

    Armand estreitou os olhos. 

    — Alguém? Quem? 

    — Ainda não sabemos. Interceptar um teletransporte exige um alto controle de aura. Questionamos nossos homens, mas ninguém assumiu a responsabilidade. 

    Armand passou a mão pela testa, respirando fundo. 

    — Mas… quem teria poder para isso? 

    Carver balançou a cabeça. 

    — Não sei dizer, senhor. Cadell é nosso melhor homem, mas algo assim… 

    — Ainda não consigo fazer isso… — murmurou Cadell, envergonhado. 

    Armand voltou a encarar as chamas, seu olhar perdido por um instante. 

    — O Castelo do Sangue… — sussurrou, quase para si mesmo. — Que ousadia… Desde o reinado de meu irmão, aquele lugar foi abandonado. Ele acreditava que viver ali era desumano. Mas talvez… talvez seja exatamente lá que essa história deva terminar. 

    — O senhor pretende ir para lá? — Carver perguntou. 

    Armand assentiu. 

    — O único motivo pelo qual não liderei essa investida foi para manter as aparências perante os nobres. Para eles, um rei não deve sujar as mãos. Mas agora… agora isso não importa. O Castelo do Sangue pertence à minha família. Está dentro do meu reino. Vou até lá imediatamente. 

    — Sozinho?… 

    — Avise aos outros — Armand ignorou a dúvida de seu general. — Que saibam que fui ao Castelo do Sangue. E que, desta vez, eu mesmo enfrentarei Hella. 

    Após ter conseguido sair do poço de sangue, Hella estava em um dos corredores escuros do castelo. Dilatando sua pupila com uma técnica da Serpente, agora ela conseguia ver tudo com maior facilidade, apesar de não perfeitamente. Então, começou a caminhar enquanto limpava a roupa banhada em sangue. 

    Cadell, seu desgraçado… você interceptou meu teletransporte. Eu deveria tê-lo matado aquele dia — pensava. 

    Ela parou abruptamente, algo a incomodando. Com movimentos hesitantes, deslizou a mão pela parede fria. Sentiu a textura estranha de um líquido viscoso sob seus dedos. Franziu o cenho, o coração acelerando com a possibilidade mais óbvia.

    Quando afastou a mão para examiná-la, seu estômago revirou. Estava limpa. Nenhuma gota de sangue marcava sua pele.

    — Miserável, você me trouxe para cá?… — ela disse baixo para si. 

    Então, ouviu passos.

     Não conseguia determinar quantos eram, mas tinha certeza de que havia mais de um. Endireitou a balestra com a respiração controlada enquanto puxava uma flecha da cintura e a engatilhava. Seus olhos varreram o corredor escuro, o corpo inteiro em alerta.

    A alguns metros um feixe de luz fraca surgiu, tremulando como uma chama instável. O brilho crescia lentamente conforme se aproximava. Hella ergueu a sua balestra.

    De repente, a luz se apagou.

     O corredor mergulhou novamente na escuridão densa. Ela piscou, tentando ajustar a visão, mas não conseguiu distinguir nenhuma figura. Nem mesmo os passos continuaram. Tudo estava silencioso. E mais inquietante do que antes.

    — QUEM ESTÁ AÍ?! — Hella gritou, um pouco nervosa. 

    Não houve resposta. Apenas o silêncio, até que o som de passos correndo em sua direção ecoaram. Hella disparou a flecha, mas ela errou seu alvo que não conseguia ver. 

    Hella não teve tempo para engatilhar outra flecha. Havia muita escuridão e os passos se aproximaram com uma rapidez assustadora. Um brilho metálico refletiu de relance como a lâmina de uma espada vindo direto em sua direção. Ela recuou, esquivando-se com um movimento rápido, enquanto largava a balestra no chão e sacava sua adaga curta, ajustando a postura.

    A luta começou sem palavras, apenas o som do metal cortando o ar. Hella usava sua técnica da Serpente ampliando cada vez mais sua audição e visão para prever os movimentos do oponente, mas não adiantava muito. A adrenalina era tanta que ela nem conseguia focar no rosto do adversário

    Ela girou para esquivar de uma estocada, deslizando pelo chão para ganhar espaço. O desconhecido era ágil, evitando seus golpes como se pudesse prever cada movimento.

    Hella pressionou, desferindo uma série de ataques rápidos, com estocadas e cortes que exigiam reflexos rápidos. O espadachim não recuava; ao invés disso, ele parecia dançar em meio às sombras, desviando e contra-atacando com uma fluidez impressionante. Hella começou a reconhecer algo nos movimentos dele. Algo perturbadoramente familiar.

    Um giro rápido quase a pegou desprevenida, e a lâmina dele passou a poucos centímetros de seu rosto. Ela saltou para trás, ofegante. Estava cansada, mas ele parecia inflexível, com uma calma perturbadora. Por fim, Hella bloqueou um golpe que teria acertado seu flanco, suas lâminas cruzadas e os rostos próximos por um instante. Foi ali, naquele breve segundo, que ela sentiu a lembrança surgindo.

    Aquelas esquivas. Aquela postura. Aquele cheiro.

    Hella recuou.

    — Claro que é você… — murmurou.

    O espadachim não respondeu. Deu um passo à frente, erguendo a lâmina como se fosse atacar novamente. Hella, no entanto, baixou a guarda por um instante. 

    — Abaixe essa espada, idiota. Sou eu, Hella. 

    O homem permaneceu em silêncio por um momento, até que uma pequena chama surgiu em seu dedo, revelando o rosto de Hélio. 

    — Hella?!— perguntou, arqueando uma sobrancelha. 

    — Você está fedendo… — Hella retrucou, colocando uma mão na cintura enquanto procurava sua balestra no chão. 

    — Ah, bem… — Hélio olhou para suas roupas. — Espero que esteja falando do sangue… — ele voltou os olhos para ela. — Mas, sinceramente, você também está suja. Caiu lá embaixo também? 

    — Caí, sim — ela se aproximou, pegou a balestra caída e notou outra figura ao longe, atrás de Hélio. — Quem é aquela ali? 

    — É a Kalina. 

    — A Strivia está com você também? 

    — Não, achei que estivesse com você. 

    — Droga… — Hella suspirou. — Espero que ela esteja bem. 

    Após um momento de silêncio, Hella sorriu e deu um abraço apertado em Hélio. 

    — É bom ver que você conseguiu se virar. Achei que fosse se afogar. 

    — Qual é! Acha que não sei nadar? — Hélio abriu um sorriso. 

    — O Héli que eu conhecia não entrava nem em lago, nem em rio, nem pagando. 

    — Pois é… Mudei muito. E por favor, é Hélio. Não me chame mais de Héli. 

    — É verdade, eu me esqueci. Agora é “Hélio Salvatore”. Sabe, até que estou gostando desse “novo você”. 

    — Acho que você nem viu a melhor parte… — ele provocou com um sorriso. 

    Hella soltou uma risada baixa, e antes que pudesse dizer mais alguma coisa, Kalina se aproximou. Seus olhos estavam como se fosse de um felino, para ver melhor no escuro. 

    — Capitã? 

    — Kalina! Que bom ver- 

    — Você sobreviveu — Kalina a interrompeu, a voz seca. — Ótimo. Acho que devemos procurar Strivia agora. 

    Ela virou-se e começou a caminhar na frente, deixando Hella sem chance de responder. 

    Hélio e Hella trocaram olhares e decidiram acompanhá-la, caminhando lado a lado. 

    — Acho que ela tá brava com você — Hélio comentou. 

    — Eu peguei pesado com ela. Não deveria ter feito aquilo. — Hella disse. 

    — O que foi, afinal? O que te deixou tão estressada? Foi aquele capitão? 

    — Não, não foi ele exatamente. Foi o que ele disse. Descobri que meu pai declarou guerra contra Solitude… por minha causa. 

    — Por sua causa? Droga, isso é péssimo. 

    — E o pior… Acho que estamos no Castelo do Sangue agora. Quando usei o teletransporte, alguém deva ter nos interceptado. Acho que foi o Cadell, aquele cretino. 

    — Eu suspeitei disso, mas… Será que seu pai também está aqui? 

    — Espero que não. 

    O que seria o Castelo do Sangue? É um nome intrigante para se dar a um castelo — Enki entrou na conversa.

    Hélio olhou para Hella com um sorriso torto. 

    — Ei, por que você não explica para ele? 

    — Para quem? 

    — Minha espada. O Enki quer saber o que é o Castelo do Sangue. 

    Hella soltou uma risada incrédula. 

    — Você tá falando sério? 

    — É sério! 

    — Então prove. 

    — Como assim? 

    — Mostre que ela realmente tem consciência.

    — Só me diga o que fazer que eu te mostro. 

    — Certo, vamos lá. Vou mostrar os dedos e quero que você me diga quantos são sem olhar para eles. 

    Hélio concordou. Hella riu, mas ergueu três dedos enquanto ele olhava para frente. 

    Três — Enki respondeu. 

    — Três — repetiu Hélio. 

    — Sorte! — Hella riu de novo. — Pura sorte. 

    — Ah, tá… Então vamos fazer uma sequência. Assim, não tem como ser sorte. 

    Hella aceitou o desafio, mostrando combinações rápidas de dedos. 

    Quatro, cinco, dois e quatro — Enki disse. 

    Hélio repetiu com precisão e Hella ficou boquiaberta. 

    — Não acredito… Ela tem mesmo consciência? — perguntou ela.

    — Eu te disse. Alguma vez já menti para você? — Hélio respondeu com um sorriso de vitória.

    Hella desviou o olhar. 

    — Tá bem… Sobre o Castelo do Sangue, aqui era o antigo castelo da minha família, localizado a vinte quilômetros da capital. Nunca morei aqui, só ouvi as histórias. 

    E é feito de sangue mesmo? — Enki perguntou e Hélio repetiu. 

    — Por mais bizarro que pareça, sim. Ele foi construído usando o sangue dos inimigos de Imera durante as guerras. É um lugar macabro, cheio de história… e morte. Meu tio, quando era rei, achava o lugar insuportável e abandonou-o. Honestamente, concordo com ele. 

    Enquanto continuavam a conversa, Kalina acenou para eles, apontando uma porta ao fim do corredor. 

    — Eu sinto o cheiro de Strivia naquela direção — murmurou, caminhando até a porta e deslizando os dedos sobre a superfície fria. Seu olhar afiado analisou a fechadura. — Está trancada… mas eu consigo arrombar. 

    Ela se ajoelhou, retirando uma gazua do cinto e começando a trabalhar. 

    — Obrigada, Kalina — agradeceu Hella, cruzando os braços enquanto observava. Sua voz vacilou levemente antes de continuar: — E sobre o que aconteceu momentos atrás… me desculpe, de verdade. Eu passei dos limites. É que essa noite está sendo… 

    Kalina ergueu a mão, interrompendo-a sem desviar os olhos da fechadura. 

    — Não precisa explicar — disse ela, abrindo um leve sorriso enquanto inclinava a cabeça de relance para Hella. — Sei como deve estar sendo difícil para você. Está desculpada, capitã. Vamos esquecer isso. 

    Hella retribuiu o sorriso, soltando um suspiro discreto. Enquanto Kalina continuava trabalhando na fechadura, Hella e Hélio sentaram no chão, encostando-se na parede. 

    — Eu gosto dela. Ela não parece do tipo que guarda rancor — Hélio disse. 

    — É uma boa garota — respondeu Hella, ajeitando uma mecha solta de cabelo. — Está sob muita pressão esta noite. Eu entendo aquele medo. 

    — Bem, na idade dela, você não era assim tão medrosa. 

    Hella arqueou uma sobrancelha, fitando-o de lado. 

    — Mas você era. 

    — …É — Hélio inclinou a cabeça para trás, batendo-a suavemente contra a parede antes de suspirar. — Eu era uma decepção. O patético Héli Helmer… 

    Hella sorriu, balançando a cabeça. 

    — Sempre dramático. Sempre… — ela hesitou por um momento antes de perguntar: — Hélio, posso te fazer uma pergunta? 

    — Hm? — ele nem se deu ao trabalho de levantar a cabeça. — Fala. 

    — Você tem um sonho? 

    Dessa vez, ele levantou o rosto. 

    — Que tipo de pergunta idiota é essa? 

    — Me diz, vai.

    — É claro que eu tenho. 

    — Então qual é? 

    O olhar de Hélio ficou vago. Ele abriu a boca, mas nada saiu. Hella ficou encarando-o.

    — Você não sabe? — ela perguntou. 

    — É claro que sei! 

    — Então diga. 

    — Meu sonho é…— ele passou a mão pelo rosto, soltando um grunhido de frustração. — Está bem! Eu não me lembro.  

    — Como assim não se lembra? Ah, é… você bateu a cabeça, não foi? 

    Hélio esfregou a têmpora, olhando para o próprio pulso, onde uma marca pálida se destacava contra a pele. 

    — Sim. Pode ter sido isso. O engraçado é que me lembro de tudo. Quer dizer, quase tudo. Eu acordo todo dia para viver o sonho de minha irmã. Mas o meu? Não sei… Você me pegou fazendo essa pergunta.

    — Tem algo específico que você esqueceu? 

    — Tem algo me incomodando há algum tempo. Quando minha irmã morreu, ela me disse alguma coisa. Mas não faço ideia do que foi. 

    — A pobrezinha… Já faz muito tempo, não é? Não acha que você simplesmente… esqueceu? Talvez não tenha sido a pancada. 

    Hélio desviou os olhos. 

    — Você acha? 

    — Às vezes, a gente escolhe esquecer certas coisas. 

    Ele observou a marca em seu pulso, apertando-o levemente. 

    — Que eu saiba, essa marca mantém as memórias do momento da morte, então talvez você esteja certa. Mas por que eu esqueceria algo que Éos me disse? Ainda mais antes de sua morte?

    — Éos era uma boa garota, Hélio. Uma garota que não merecia aquilo. Eu gostava muito dela. Aposto que, se o que ela disse foi tão importante, você vai se lembrar. Mais cedo ou mais tarde. 

    Hélio assentiu vagamente, antes de erguer o olhar para ela. 

    — Mas e você? Por que essa conversa sobre sonhos? 

    Hella desviou os olhos, encarando as costas de Kalina enquanto a garota mexia na fechadura. 

    — Eu estava pensando… Talvez eu não tenha um sonho. 

    — Não seja idiota. Todo mundo tem um sonho. 

    — Ou já teve — corrigiu ela, suspirando. — Eu já tive um. Mas agora… não sei. — ela abraçou os próprios joelhos. — Hélio… os últimos anos têm sido difíceis. Você sabe do que me acusam. E acredito que você seja a única pessoa que me entende. Nós dois somos exilados de nossas famílias. Nós dois sujamos a honra dos nossos sobrenomes. 

    — Então você realmente matou ela? Sua mãe? 

    O silêncio entre eles se estendeu por longos segundos. Hélio não esperava uma resposta. Mas então, Hella murmurou: 

    — Sim. 

    Hélio arregalou os olhos.

    — Eu fui responsável pela morte da minha mãe — ela continuou. — E não espero que você me julgue, Hélio. Afinal, você também mataria a sua se tivesse a chance. 

    Hélio cerrou o maxilar. 

    — É verdade, mas eu tenho motivos. Por causa da minha mãe, Éos morreu. Por causa dela, estou nessa miséria, vivendo como um vagabundo. Mas você… por quê? Por que matou sua mãe, Hella? Eu simplesmente não entendo. Vocês pareciam tão… próximas. 

    Hella virou a cabeça lentamente para ele, os olhos sombrios. 

    — Me diga, Hélio… sonhos são apenas coisas que podem acontecer? Ou também podemos sonhar com algo que nunca poderia existir, nem no maior dos milagres?  

    — Eu… acho que todo sonho é um sonho. 

    Hella baixou o olhar, um pequeno sorriso se formando em seus lábios. 

    — Se é assim… então talvez eu tenha um sonho. 

    Hélio a observou em silêncio enquanto ela voltava os olhos para frente. 

    — Eu queria que a noite se tornasse eterna. 

    Ele piscou. 

    — Que se tornasse eterna? Por quê? 

    — …Não posso dizer o que aconteceu naquela noite, Hélio. Não posso explicar como ou por que matei minha mãe. Mas… se a noite se tornasse eterna, talvez assim todos finalmente me entenderiam. Todos saberiam como é a minha vida desde aquele dia. Saberiam como é viver sem luz, sem sol… apenas no escuro.

    Hélio sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Nunca havia ouvido tais palavras frias de Hella. Por um momento, não conhecia aquela mulher. 

    — Eu penso nisso há algum tempo… — continuou Hella, sua voz baixa, quase um sussurro. — Eu invejo a criança que corre para os braços dos pais. Invejo a adolescente que ri com o namorado. Invejo a mulher que segura seu bebê no colo. Eu invejo cada um deles porque sei que nunca mais terei nada disso. E, no fundo, como um monstro adormecido dentro de mim, eu queria que o mundo inteiro sentisse, pelo menos por um dia, a desgraça que minha vida se tornou. Só um dia.

    O silêncio caiu pesado entre eles.

    Hélio não respondeu. Ele simplesmente não sabia como.

    — Sonhar isso não é cruel, né? — Hella inclinou a cabeça para o lado, seu sorriso agora mais melancólico do que antes

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