As coisas não mudaram. Absolutamente… nada.

        Eu me sinto um lixo completo. Já fazem cinco dias desde que perdemos os nossos amigos.

        Será que vale a pena estar vivo? Todas as vidas que eu vi e ainda vejo sendo consumidas por aquelas merdas de aberrações… foram realmente sacrifícios? Por que eu pensaria assim? Ninguém nunca se sacrificaria por mim, droga!

        Me desculpe. Esses pensamentos ruins não param de dominar a minha mente. Eu não sei se vou conseguir. Eu e minha irmã brigamos na última noite e a discussão foi bem intensa. Agora, estamos dormindo em quartos separados e isso nunca foi tão saudável para mim. Me chame de “bebezão” ou do que quiser, mas a companhia dela é muito importante pra mim. Sempre foi. Eu já disse, é graças a ela que estou vivo até agora nesse grande apocalipse de merda.

        Sair de Madrid não era a solução de tudo… como achei que seria. Madrid era apenas o início. Madrid era… somente o primeiro passo para um andar mais profundo de todo esse inferno.

        Depois de dirigir por cerca de uma hora, viemos parar em um tipo de vila. “Villarejo de Salvanés” como dizia a primeira placa que avistamos ainda na estrada. Desde então, estamos pilhando toda a vila, que não é lá algo tão grande em suas proporções, e sobrevivendo com algumas latas em conserva.

        Eu não vou guardar segredos. Sempre amei as comidas das latas em conserva. Eu ficava imaginando: isso com certeza seria muito apetitoso em um apocalipse… ou no fim do mundo! Não! Eu não sabia que seria tão ruim assim! E muito menos torcia para que isso acontecesse! Eu só tinha uma imaginação muito fértil, poxa! Sempre tive. Seria isso um dom no meio de tantas desgraças e inexperiências?

        Até que a casa que resolvemos nos abrigar não é tão ruim assim. A sua estrutura é totalmente composta de madeira, o que me dá uma sensação de insegurança a todo instante. Eu fico imaginando: e se alguém atirasse um isqueiro em combustão contra alguma de nossas paredes? Estaríamos perdidos! Tá, eu sei! Se não há nem aberrações por aqui… por que teriam outros sobreviventes, não é mesmo?

        Mas, não há o que temer! É impossível que soframos qualquer ataque com fogo nesse momento… por que, adivinha? Está chovendo! Sim! Ah! Como é bom ouvir o barulho de cada pingar de gota d’água! Eu não posso observar o lado de fora agora por que estou deitado em uma cama confortável e com os olhos fechados. Não se preocupe, eu não vou dormir. Eu não posso prometer, mas vou me empenhar para que isso não aconteça. É sério!

        Sobre a briga?

        …

        Nós… realmente precisamos falar sobre isso? Que droga.

        Depois de pilharmos quase a vila inteira em apenas três dias, nos reunimos na sala antes de subirmos para dormimos nesse quarto na última noite. A gente até que tava se divertindo, comendo um pouco do que havia restado da última lata aberta de atum e papeando sobre algumas coisas, até ela mencionar a morte dos nossos amigos.

        Dan e Olívia, eu… queria pedir desculpas, mas que droga. Eu não posso me lamentar agora, não é? Catarina?

        Nós brigamos por que eu ousei dizer que… me arrependi do momento em que decidimos sair de Madrid. E ainda não sei se vou me arrepender dessas palavras nas próximas horas. Eu deveria fingir? Melhor… não…

        Catarina disse que não tínhamos escolha e que precisávamos tomar alguma atitude. Disse também que… os perigos estavam claros para todos perante o plano arriscado e montado de última hora, mesmo que tivesse sido perfeitamente esquematizado. Antes se subir furiosa para o quarto ao lado, ela disse que eu deveria prometer e reconhecer que cada vida até agora havia sido na verdade sacrificada de fato, e que… precisaríamos fazer de tudo para que tudo aquilo tivesse valido a pena.

        Uma ótima manhã para se pensar em coisas tão depressivas, não acha? A chuva está parando lentamente e eu não gosto nem um pouco disso. Isso me faz ouvir os passos dela no outro quarto com mais clareza.

        Eu vou ter que me reconciliar. Eu preciso.

        É isso que acontece quando você depende de uma pessoa para sobreviver e prosseguir com a própria vida. Você é obrigado a fazer coisas das quais requisitariam todo o seu ego. Não que eu tenha algum problema com isso! Meu ego nunca foi alto. Eu só não gosto de mentir sobre meus sentimentos ou opiniões!

        Pensar que as vidas de nossos pais, de nossos parentes e de nossos amigos tenham servido de algo para o nosso futuro incerto e completamente desconhecido me causa nojo. Eu começo a pensar… como se estivesse fazendo de seus corpos infectados e sem vida… de escada… uma escada que nunca acabará. Seguindo a lógica, eu ou minha irmã poderíamos facilmente nos tornarmos os degraus da escada de outras pessoas, até que num trágico final essa escada simplesmente seja derrubada e não tenha servido para absolutamente nada.

        Que merda. Olha só o que estou fazendo. O frio me deixa pensativo. Bem pensativo. Eu só deveria levantar e caminhar até o quarto dela, não é? Eu preciso disso. Quer dizer, não vamos nos separar por causa de palavras mal resolvidas depois de ontem… eu espero.

        Estou de pé e com os olhos abertos agora!

        Esse quarto é bem interessante. Os livros das estantes! Cara… você precisava ver isso daqui! Com certeza a criança fissurada em obras de fantasias que costumava viver aqui era feliz! Veja só!

        O Nome do Vento.

        Conjurador: O Aprendiz.

        A Sociedade do Anel.

        A casa até pode ser feita de madeira, mas o seu interior com certeza distorce o que as pessoas que a observam do lado de fora imaginam. Não digo isso por causa dos livros, digo pelos móveis super modernos! Sem contar esses artefatos super tecnológicos e atuais! Você já viu um robô de limpeza numa casa de madeira? Eu nunca havia visto numa casa convencional!

        Ao descer as escadas para o primeiro andar, relanceei meus olhos para a porta do quarto dela. Estava aberta. Seus passos já não eram mais audíveis. Provavelmente ela havia se deitado no colchão super macio da suíte.

        O primeiro andar não era tão iluminado devido às cortinas que usamos para tampar a maioria das janelas. Em uma rápida espiada, consegui visualizar o nosso carro do lado de fora. Molhado e bem limpinho. Como algumas pessoas podem odiar a chuva!? Eu não creio que possam existir pessoas assim. Ou que… pelo menos existiam pessoas assim.

        Uma mochila com mais de dez latas em conserva, cinco garrafas d’água, que enchemos graças à chuva do dia anterior, e alguns doces. Uma escopeta descarregada e uma faca afiada. É tudo o que temos de valor e que se encontra na mesa de jantar. Também tem algumas bandagens, remédios e utensílios como fitas, isqueiros e mais produtos numa outra bolsa, mas não é nada que chame a minha atenção nesse momento.

        Conferi mais uma vez e todas as portas estão devidamente trancadas. Estamos seguros, eu acho…

        Ah! O que estou fazendo de novo? Estou tentando arrumar qualquer afazer para ganhar mais tempo até me arrastar até o quarto de Catarina para pedir desculpas. Acabo de suspirar fortemente.

        Vamos acabar logo com isso.

        A chuva desaparecia à medida dos meus passos ao subir as escadas. O som que aquela madeira emitia era semelhante ao ranger de uma porta velha e apodrecida. Isso não era um problema, mas denunciava a minha aproximação ao seu quarto. Qual é, Tom! Só se concentra!

        Sem qualquer vergonha, simplesmente coloquei apenas a minha cabeça para dentro do quarto avermelhado e muito bem iluminado por uma grande janela, equilibrando o restante do meu corpo com o apoio de minha mão direita ainda atrás da porta.

        — O que você quer? — Disse ela enquanto deitada e de costas para mim, sem qualquer coberta a cobrindo e sem nenhum travesseiro que confortasse a sua face. A raiva de suas palavras não era tão grave como àquela da noite passada, mas ainda assim era facilmente perceptível.

        — Posso conversar com você? — Isso era realmente a melhor frase que eu poderia ter dito?

        — Você já não tá fazendo isso?

        Não vou deixar que a sua má resposta me desencoraje, Catarina. Tenho certeza de que ela também não está mais aguentando essa situação de merda, mas ainda assim quer dificultar as coisas por causa do ego enorme.

        — É isso que você queria, não é? — Falei. Logo, ela se virou e se levantou, numa tentativa de me intimidar com os seus olhos completamente concentrados. Havia algumas marcas de colchão em seu rosto branquinho. Me desculpe, Catarina, mas eu não vou me conter em dizer o que penso. — O que você quer, Catarina? Quer que eu também me ajoelhe e implore pelo seu perdão? Quer que eu concorde com suas ideias malucas e faça promessas completamente fúteis? Tudo bem! Mas saiba que… isso não vai fazer a menor diferença!

        Cruzei os braços e a encarei seriamente depois de ultrapassar a linha da porta do quarto, caminhando até a encarar face a face.

        — O que? — Naquele ponto, a sua voz já não era mais tão meiga como há dias atrás. — Você não entende, não é, Tom?

        — O que eu não entendo? — Quase berrei.

        Catarina balançou sua cabeça negativamente duas vezes antes das suas próximas palavras:

        — Eu não sei. Parece que todas as pessoas que perdemos ao longo de todo o caminho… é como se nenhuma de suas vidas tivessem significado algo pra você.

        — O… O Que? Tá falando isso por que eu não fiz uma promessa?

        — Tom! Eu não me importo com essa droga de promessa! — Ela esbugalhou seus olhos ao levantar o braço direito. Aquilo me pareceu uma fala bem sincera baseado no suficiente que conheço da minha irmã. Nas suas próximas palavras, ficou impossível de acompanhar o movimento de sua boca à medida que eram disparadas contra mim numa mínima tonalidade de raiva. — Não me importa as suas falsas desculpas ou qualquer merda que esteja falando! Acha que eu esqueci quem você é, garoto? Nada do que esteja disposto a falar vai mudar o fato de você ser só um covarde, um inútil, que só está vivo até agora por que passou todos os últimos meses pisando sobre os corpos de pessoas que te valorizaram pelo simples fato de não ter se infectado.

        A minha mente estava há milhões.

        Catarina ainda deu um passo à frente, colocando o dedo indicador da mão ao qual havia erguido sobre meu peito, quase provocando um desequilíbrio em todo o meu corpo, dizendo calmamente desta vez:

        — É isso que você não entende, Tom.

        Ainda com o dedo daquela garota sobre o meu peito, com a mente confusa e sem saber se a encarava perante todos os sentimentos explosivos que sentia naquele momento, me abalei por inteiro e me esqueci de tudo por um breve momento quando ouvi uma tentativa de arrombamento na porta principal da casa, no primeiro andar. Encarei Catarina e a sua expressão não foi tão diferente. Ela girou seu rosto na direção das escadas, também com uma face de dúvida, franzindo suas sobrancelhas e colocando o corpo em total estado de alerta.

        No próximo segundo, ainda não tivemos tempo para qualquer reação quando a porta sofreu outra tentativa de arrombamento, muito mais forte desta vez. Naquele mesmo instante, escutamos o barulho do cair daquela maçaneta, que se colidiu com o chão logo em seguida.

        — Aberrações? — Falei quase sussurrando, mas Catarina me calou ao colocar uma das palmas de sua mão em minha boca sem hesitar. Pelo menos estava hidratada. Não que eu me importe com isso, mas odiaria que uma mão seca e suja encostasse em meus lábios dessa maneira.

        — Não. Aberrações não arrombam portas pela maçaneta. — Catarina sussurrou, fazendo um gesto com a outra mão, me dando a ordem de permanecer calado. Logo, ela retirou a outra da minha boca e caminhou em passos lentos até a janela, passando a abri-la de maneira que emitisse o menor ruído possível.

        “EI! MIKE! VEM AQUI DAR UMA OLHADA NISSO!” Foi um grito extremamente alto do que parecia um homem velho e fumante a julgar pela sua voz. Meu corpo se congelou por completo por um instante, mas logo fui acudido pelo apegar de Catarina sobre o meu braço, que sinalizou para a janela já totalmente aberta. Espera… Ela com certeza ouviu aquilo também! Ela não está surpresa?

        — Vamos! — Disse ela antes de posicionar o corpo para saltar a janela, fazendo uma grande força para que nenhum de seus movimentos chamassem a atenção do que estávamos prestes a chamar de intrusos.

        Assim como todas as vezes, não a questionei e simplesmente repeti os seus passos enquanto ouvia o andar de ao menos dois homens na cozinha abaixo de nós. Com certeza eles usavam algum tipo de bota pesada. O barulho do ranger da madeira a cada pisar era contagioso entre cada cômodo da casa, chegando a provocar a sensação de que o piso estava prestes a ser rachado no meio.

        Do lado de fora, sobre os telhados pretos, eu descia cuidadosamente enquanto Catarina ainda se importava em fechar a janela lentamente, dificuldade os nossos rastros para os homens desconhecidos.

        O sol após a forte chuva era de certa forma refrescante, mas aquele definitivamente não era um dos melhores momentos para pensar sobre isso.

        Depois de alguns segundos, nos reunimos na beirada dos telhados. Pela primeira vez, tomei coragem para a questionar sobre nossas próximas atitudes, ainda sussurrando:

        — Você vai abandonar a nossa única chance de sobreviver aqui no lado de fora? Aquela é a merda da nossa única comida! Não sabemos quando daremos sorte outra vez, Catarina!

        — Cale a boca! — Ela se preparava para saltar até a grama fofa e molhada que se espalhava por todo o chão abaixo de nós, posicionando as mãos sobre a beirada dos telhados.

        Eu estava revoltado.

        — E… E se forem pessoas boas!? Como Dan e Olívia?

        — Nem todos são como Dan e Olívia, Tom. — Ela já pendurava todo o corpo para o andar debaixo, com as mãos sobre os limites dos telhados.

        Depois de ficar boquiaberto por alguns segundos, a respondi:

        — Você vai mesmo abandonar aquele carro?

        — Se não quiser isso, pode tentar a sorte em se tornar um amigo daqueles saqueadores! — Catarina saltou em seguida, caindo de costas contra a grama, provocando um pequeno barulho que por sorte foi abafado pelo bater de asas de alguns pássaros que abandonavam aquela região no mesmo instante.

        É claro, não tive escolha a não ser a seguir mais uma vez dentre todas as outras… duzentas vezes!?

        Na minha queda, tive a sorte de não quebrar o braço esquerdo ao colidir de uma maneira ineficaz. Mesmo assim, consegui me recompor a tempo para alcançar Catarina, que me esperava atrás de uma parte lateral dos cercados esbranquiçados da casa. Aquela tal área nos fornecia uma visão privilegiada da lateral da entrada da casa. Notei que um tipo de jipe estava estacionado bem à frente, ao lado do nosso carro esverdeado. Cerca de três homens vigiavam o perímetro e analisavam o interior do carro esverdeado, fortemente armados. Catarina tinha razão, aquele grupo se tratava do que nomeávamos de saqueadores: grupos de homens que priorizam a própria vida acima de tudo. Eles agem sem qualquer piedade.

        “Nenhum sinal do Robert?” Questionou um dos homens ao observar que outros dois saíam de nossa casa. Um deles segurava a nossa mochila além da escopeta completamente descarregada.

        Estávamos sendo roubados pela primeira vez em todo aquele tempo. E não tinha como reagir.

        “Nada!”

        “Mesmo que os rastros dele tenham acabado na última cidade, ainda existe a chance de ele ter seguido para a região de Perales. Quem sabe ele realmente tenha levado a ideia de investigar aqueles postos de gasolina um pouco a sério, não é!?

        “E quanto a esses mantimentos? Acha que ainda possam existir outros sobreviventes por aqui?”

        O homem que parecia ditar as ordens para aquele esquadrão respondeu com seriedade:

        “Isso não importa agora. Coloquem toda a comida e água no carro. A escopeta ainda parece utilizável.”

        “E quanto ao carro, Mike?”

        Ele refletiu um pouco antes de responder ao saqueador:

        “Pode levá-lo até o porto. Quanto ao resto de vocês, vamos investigar a próxima cidade enquanto temos um pouco de tempo. Nunca se sabe quando vamos trombar com outra onda daquelas criaturas.”

        Depois da ordem do barbudo, a maioria dos saqueadores adentraram o jipe escurecido em rápida velocidade. Ainda consegui ver o rosto do tal Mike ligando o motor antes de zarparem em direção à Madrid.

        Abaixamos as nossas cabeças e nos camuflamos entre a parte da grama alta que recobria o cercado branco, ao mesmo tempo em que ouvíamos a partir do nosso carro esverdeado na direção contrária ao qual os outros saqueadores haviam partido. A sensação de derrota sobre o calor incandescente me dominou brevemente. Eu mal me lembrava do frescor da chuva que sentia há poucos minutos atrás. Havíamos acabado de perder tudo e os meus olhares nem se desgrudaram do chão terroso e molhado.

        Impulsivamente, Catarina abandonou o meu lado e atravessou a grama alta, parando no meio da rua. É claro que eu tentei agarrá-la, mas não tive sucesso. Logo, a confrontei em desespero:

        — Você enlouqueceu? Catarina! Eles podem te ver!

        Trinta segundos se passaram. Foi tempo suficiente para que eu me acalmasse e também atravessasse aquela grama alta. Catarina estava estática. Ela observava a direção ao qual o saqueador que roubou nosso carro havia partido. Sua face inexpressiva me assustou por um pequeno momento, mas mal pude a observar depois de sua próxima atitude: entrar na casa e procurar incansavelmente por nossas pilhagens.

        — Catarina… — Eu não sabia o que dizer enquanto a observava remoendo as cadeiras, a mesa principal, os objetos que se encontravam por cima dos móveis, entre retratos e bugigangas.

        Passei a chorar enquanto a implorava para parar de quebrar tudo aquilo. Ela mal se importou com a minha presença e me ignorou completamente, continuando a remoer tudo o que encontrava pela frente.

        No fim, ela se ajoelhou e berrou fortemente, tendo a maior parte de sua voz abafada pelas paredes da casa. Suas mãos sangravam devido aos vidros e porcelanas que continham a maioria dos objetos.     Só me restou assisti-la naquele momento tão terrível, sem qualquer coragem para abraçá-la.

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