Já é dia.

        Mesmo com os olhos fechados e com uma preguiça imensa, ainda deitado na cama sobre algumas cobertas nem um pouco limpas, consigo sentir a luz do sol refletir sobre o meu rosto. Não tinha cortina no quarto que escolhi aleatoriamente ontem à noite. Eu não estou reclamando do sol, é só que… talvez essa seja a última vez que tenha dormido uma casa de repouso. Vamos evitar lembrar que isso na verdade é um motel, ok? A gente não precisa enfatizar isso toda hora. Isso sempre vai soar com um tom de constrangimento.

        — Bom dia, flor do dia! — Era a voz da minha irmã. Ela havia acabado de abrir a porta do meu pequeno quarto “alugado” por algumas horas.

        Sinceramente, mesmo sabendo que possivelmente centenas ou até mesmo milhares de casais dormiram ou fizeram coisas exatamente naquele lugar, ainda assim aquele foi a melhor noite de sono de toda a minha vida. Eu não ligo se os funcionários que trabalhavam aqui lavavam ou limpavam seus quartos e lençóis, isso não é uma prerrogativa tão convincente. Aliás, acho que esse colchão macio e os espelhos que cercavam as paredes do quarto valeram a pena de qualquer jeito. Só de imaginar… como as pessoas aproveitavam de todos esses… artefatos à sua disposição… nossa… é melhor eu me aquietar. Quem pensa nesse tipo de coisa logo de manhã?

        — Ei, parece que não fomos assassinados na nossa primeira noite de sono com aqueles estranhos, né? — A Catarina acabou de fazer uma piada? Eu até abri meus olhos para ver se aquela realmente se tratava da minha irmã. Ela havia se aproximado da beirada da cama, me encarando enquanto eu bocejava e passava as mãos na cara. — Joga uma água nesse rosto e desça pra comer! Não podemos nos atrasar!

        — Han? — Foi a minha reação quando sentei sobre a cama e coloquei os pés no chão, ainda caçando onde eu havia enfiado os meus calçados.

        — Sim! Ainda tem um pouco de água no motel! Mas, não abuse, não dá pra tomar banho! — Ela já quase saía do meu quarto.

        — Não… Não… Eu quero saber… por que não podemos nos atrasar?

        — Hum? — Ela se virou, colocando a mão na maçaneta da porta antes de me abandonar, fazendo uma pose que nunca havia visto antes. — Não se lembra? Você mesmo disse era a nossa melhor opção!

        Catarina sorriu antes de fechar a porta e me deixar sozinho.

        Que droga, eu realmente disse aquilo. Confesso que não estava com a cabeça no lugar naquela hora. Talvez eu só tivesse dito aquilo para confortá-la naquele momento tão ruim… eu não sei! Eu não quero criar desculpas, não sou assim! A minha cabeça está a milhão agora e só faz alguns minutos que estou acordado. Que grande… merda! Ah… Se bem que não temos outra opção no momento a não ser ficar vagando por aí… sobrevivendo… com migalhas e pilhagens. É, agora seja o melhor momento para nos arriscarmos.

        Depois de achar uma blusa branca incrivelmente intacta em uma das gavetas do motel, não hesitei em vesti-la. Qual é? Eu sei que o lugar não passa nem um pouco de credibilidade, mas eu não continuar com uma blusa rasgada e suja até encontrar o tal Porto! Olha só! Os meus calçados ainda combinaram com ela! Eu espero que hoje seja o meu dia! Pode parecer estranho, mas depois que você mata uma daquelas aberrações… é como se sua autoestima alcançasse um nível completamente superior. Espero que isso dure por um tempo. Me sinto… independente? Autossuficiente? Não… Eu só não me sinto mais um completo inútil mesmo.

        Fechei a porta do quarto depois de abandoná-lo. Adeus meu pequeno quartinho! Pode ter certeza de que vai ficar guardado eternamente nas minhas memórias! Ah, me desculpe se o meu afeto está tão desvalorizado nos dias atuais. Sabe… acho que esqueci de regulá-lo desde a última vez que me importei com outra pessoa além da minha irmã. São valores diferentes, você sabe, né? Fale o que quiser, não vou discutir isso com você. Não quero brigar com a última pessoa que ainda me restou para contar sobre os meus últimos meses.

        Ao chegar na recepção do motel, me deparei com Joffrey exibindo os seus músculos ao levar suas mochilas pesadas para um carro avermelhado. Dá pra acreditar que eles tinham dado sorte de achar um Seat Leon com boas condições? Tá, não tinha tanto combustível assim, mas… porra! Quem costuma topar com um carro hoje em dia que ainda esteja “utilizável” depois de tudo o que houve?

        Sobre o Joffrey? Ah… Não… Nem pensar. Ele deve ter em torno de trinta anos e com certeza deve ser um baita hétero. Não me entenda mal, não estou o julgando nem nada do tipo! É só que… só esquece essa fantasia maluca e grotesca. Pensando bem, ele já havia ido dormir quando Catarina decidiu abrir a grande boca dela. Espero que esse assunto não venha à tona novamente. Eu odeio quando ela se sente à vontade para fazer esse tipo de coisa. O pior de tudo é que ainda posso sair como o vilão caso brigue por causa disso. Ah! Você não a conhece o suficiente? Ela é capaz de revirar cada coisa contra você… cara… você nem imagina!

        — E aí, Tom? — Falou o senhor Dawn depois de passar com algumas caixas em sua mão, sorrindo depois de se esforçar para descer as escadas com o máximo de cuidado possível, caminhando em seguida para o carro no estacionamento ao passar pela porta da recepção. Dá pra acreditar que eu viraria um tipo de “parceiro” do cara que havia jurado matar se saísse daquela situação de merda no dia de ontem? Tá, eu tinha jurado na minha mente… isso ainda conta? Palavras em voz alta são necessárias nesse tipo de promessa? Tô pensando demais.

        — Tome aqui! — Catarina surgiu de repente, me oferecendo uma mochila que curiosamente havia um taco de golfe em um dos bolsos laterais. — Você não teve muito tempo depois de ontem… então separei algumas coisas úteis nessa mochila. É sua! Tem alimentos, uma garrafa d’água e algumas outras coisas…

        — Um taco de golfe? — Perguntei, curioso e com um sorriso estampado no rosto.

        — É. Pelo que me contaram você se virou muito bem com essa “arma” ontem.

        Catarina sempre se esforçou para me ensinar a como me proteger daquelas aberrações no passado, mas eu sempre me deixava se superar pela covardia e medo. Desde então, eu só era protegido por ela e pelos amigos que fazíamos ao longo de Madrid. Talvez a vida aqui do lado de fora tenha o poder de mudar as pessoas. Não tô brincando! Tá… a adrenalina com certeza teve uma grande influência naquele tipo de situação…, mas com toda a certeza do mundo… eu poderia jurar que se passasse por aquela mesma cena em Madrid, talvez eu só… desistisse. Eu não sei. Que droga… por que estou insistindo nisso?

        Peguei a mochila e a coloquei nas costas, a segurando somente com a alça direita pendurada em meu ombro, me aproximei do carro ao ar livre e passei a observar o grande estacionamento. Joffrey vistoriava o motor do carro na parte da frente, com o capô aberto, checando algo ao sujar as suas grandes mãos. Eu observei aquilo de relance enquanto apalpava a minha mais nova “arma”. Cara… quem diria que a primeira vez que eu tocasse em um taco de golfe fosse na verdade para tirar a vida de uma aberração num apocalipse. Sinistro.

        O senhor Dawn e Catarina debatiam sobre algo enquanto recolhiam seus últimos pertences na recepção do motel. Eu nunca havia sentido ciúmes da minha irmã até então. Eu não estava acostumado a dividi-la. Não era como se eu fosse o dono dela… é só que… eles ainda não eram tão confiáveis quanto Dan e Olívia.  

        Que surpresa! Uma aberração acaba de adentrar o estacionamento lentamente, mancando, estalando a sua mandíbula incessantemente. Aquele barulho era irritante. Naquele ponto, o senhor Dawn e minha irmã haviam abandonado o motel e já se aproximavam do nosso novo carro. Cara, aquela era a minha chance de demonstrar a minha mais nova habilidade. Sabe, eu precisava daquilo. Eu só… precisava me autoafirmar de alguma forma.

        Há dez metros de distância da criatura, larguei a minha mochila no chão e parti para cima em lentos passos contra o seu corpo medonho, segurando o taco de golfe com a mão direita e até mesmo fazendo alguns gestos e manobras para gerar sorrisos nos outros.

        — Arrebenta ele, Tom! — Berrou Catarina, colocando suas mãos em torno da boca para que eu a escutasse.

        Aquela fala foi como um impulso final para o meu golpe contra a cara apodrecida daquela aberração. Eu a finalizei com um só golpe na parte lateral do seu crânio! Aquilo foi… incrível. Eu me senti forte… me senti a porra de um cara super fodão. Que sensação… única. O mais engraçado de tudo? Como aqueles dois estranhos não me conheciam por completo, eles não sabiam da minha “inutilidade” até então. A partir dali eles lidavam comigo como se estivessem lidando com um “super matador de aberrações”. Espero que Catarina não estrague a minha reputação. De fato, eu havia me tornado outra pessoa em apenas alguns dias.

        — Ótimo… — Falou o senhor Dawn, puxando de uma das suas bagagens um pequeno mapa.

        Depois que limpei o taco do sangue que havia jorrado da cabeça daquela criatura com um pequeno lenço, decidi me aproximar para ver do que aquilo se tratava. Os outros três observavam a rota que o senhor Dawn traçava em seu mapa com uma caneta de tinta azul. A tinta estava fraca, mas não era um grande problema se observássemos o mapa sem o reflexo do sol.

        — Com apenas três horas de viagem, podemos chegar ao Porto, considerando alguns atalhos e desvios. — Concluiu Joffrey, sinalizando uma rota em específico no mapa cheio de detalhes.

        — “Atalhos e desvios”? — Questionou minha irmã, com os braços cruzados.

        — É claro. Você mesma disse que havia sido roubada pelos saqueadores. Acha que eles não são loucos para entrar naquele Porto? Eles cercam quase todos aqueles arredores para aproveitarem daqueles se aproximam do lugar. Aqueles porcos imundos. É por isso que alguns atalhos serão necessários para que não arrisquemos nossas vidas… isso se estiverem a fim de sacrificarem apenas algumas horas por um pouco mais de segurança.

        — Ah! Pode deixar. Eu não vou ter problemas com isso. — Catarina sorriu.

        — Que bom. Então… que tal pegarmos a estrada? — Sugeriu o senhor Dawn, guardando o mapa novamente em uma de suas bolsas e a guardando no porta-malas, o fechando em seguida. Logo, ele e Joffrey caminharam até as portas da frente do carro, enquanto minha irmã ainda encarava a recepção do motel.

        Era parecia estar bastante animada.

        — Ei! Tá esperando o que? — Falou ela ao se virar e andar até uma das portas traseiras, a abrindo depois. — Eu tô louca pra conhecer o mar de Valência! Sabe, nunca visitamos aquela costa… nem mesmo “antes”.

        Apenas sorri e caminhei até a porta traseira da esquerda depois de conferir se o porta-malas estavam muito bem fechado. Lado a lado de Catarina, sorri novamente depois que Joffrey girou a chave da ignição, ligando o motor do carro e partindo para a estrada, rumo à Valência.

        Segundos depois, ela me ofereceu um dos fones de ouvido que estavam conectados à um tipo de reprodutor de música MP3 no seu colo. Ainda consegui ler o nome daquela música na tela do dispositivo antes de afogar todo o meu foco nas minhas melhores memórias, adormecendo em seguida, numa paz inexplicável.

    “After Dark – Mr. Kityy”

        — Não sei… Agora não parece tão arriscado quanto a gente avistou o lugar de longe. — Era a voz de Joffrey. Foi a primeira coisa que ouvi depois de acordar de um sono profundo de mais de uma hora de duração. É, eu chequei o quanto havia dormido depois de me levantar daquela posição tão relaxada no banco do carro e olhar para o meu relógio de pulso. Ainda me espreguicei antes de entender o que estava acontecendo.

        Estávamos parados no que parecia um tipo de estacionamento de Shopping ou algo do tipo. Eu reconhecia aquele lugar: El Peral. Espera, realmente estamos de frente para uma das entradas do Shopping de Valentina! Cara, eu só vim aqui uma vez e foi quando fugi de casa aos oito anos de idade! Essa não é uma história com final feliz, mas, mesmo assim, esse lugar é absurdamente grande!

        — Com certeza deve haver algum gerador em uma das salas internas, você não acha? — Falou o velho. Eu já havia sacado do que aquilo se tratava.

        — Por que vocês estão se importando tanto com esse gerador… quando estamos há apenas algumas horas de viagem do Porto Seguro?

        — “Porto Seguro”? — Replicou o velhote. — Eu não me lembro de tê-lo chamado assim da última vez.

        Ele ainda soltou algumas gargalhadas sem ao menos tirar os olhos daquela entrada, tentando avistar alguma aberração ou qualquer ameaça que contivesse a sua esperança de buscar o que queria. Grande senhor Dawn!

        — Você tá certo, garoto. Mesmo assim, é um risco que pode valer a pena. Nós abandonamos o Porto por causa disso e… seria quase uma desonra se voltássemos sem o gerador… ainda mais depois da morte de quatro pessoas. O Shopping parece estar vazio. Acho que damos conta disso, senhor Dawn.

        — Nada disso! Não vou ficar observando vocês fazerem todo o serviço! — Catarina puxou a pistola da sua cintura e a engatilhou, saindo do carro logo em seguida. Aquilo foi estranho. Eu franzi minha testa enquanto via o dispositivo MP3 cair sobre o banco macio do carro com os seus fones de ouvido ainda conectados.

        — Hum! Parece que a garota está animada! — O senhor Dawn também engatilhou a sua arma, abrindo a porta e abandonado o carro assim como ela em seguida.

        Joffrey não comentou nada e também o abandonou. Bom, eu não podia bancar o covarde depois de querer me provar tanto nos últimos dias, não é? Pois é. Eu também abandonei o carro, fechando a porta em seguida.

        — Tá tudo bem, Tom? — Joffrey me questionou depois que eu tomei o seu lado, caminhando lentamente ao observar o quanto Catarina já se dava bem com o senhor Dawn a alguns metros na nossa frente.

        — Han? — Minha reação foi a mais verdadeira possível. Ele nunca havia demonstrado se preocupar com alguma pessoa do grupo antes… é claro que estávamos juntos há menos de um dia…, mas ainda assim reparei naquele pequeno detalhe. — Hã… É claro… Só vamos terminar isso o mais rápido possível… ok?

        Joffrey sorriu, empunhando a sua espingarda e tomando a minha frente, caminhando com seus fortes pisos no chão cheio de cinzas e poeira. O lugar estava imundo. Havia carros enferrujados e tombados, carrinhos de compras caídos e até itens apodrecidos espalhados por ali. Aquele lugar já foi um pouco mais bonito um dia.

        Depois de subir algumas escadas que levavam à uma das entradas, respirei profundamente antes de reunir com os outros três que já observavam os vidros das lojas de perto, colocando seus rostos sobre as janelas para que enxergassem o seu interior. A porta, também de vidro, estava quebrada e havia cacos de seus vidros sobre o chão ao redor. Aquela região não estava tão suja quanto o estacionamento, mesmo que as flores do jardim que a cercava estivessem destruídas, completamente secas e sem vida.

        — É. Se for pra ter alguma criatura aí dentro… vai ser uma surpresa. — Alertou Joffrey.

        — Relaxa. A gente dá conta disso. — Catarina estava bem convincente.

        Segurando o meu taco de golfe, com a minha nova mochila sobre os ombros, apenas aguardava a próxima ordem do senhor Dawn que, aparentemente, havia assumido o cargo de “líder” do nosso pequeno grupo. Não é como se eu tivesse problemas com isso… É sempre bom ter uma voz final em nossas decisões…, mas, porra, não haviam outros seres humanos menos cuzões para toparmos fora do inferno de Madrid?

        — As salas internas geralmente ficam no primeiro ou no segundo andar nesses lugares. É só acharmos uma porta que nos leve às escadarias e tudo já fica mais fácil. Talvez seja uma boa ideia nos separarmos depois… quem sabe não encontremos alguma coisa de interessante? É a porra de um shopping! Com certeza… deve ter algumas coisas que ainda sobraram nesse lugar… — O senhor Dawn passou a caminhar com cuidado sobre os cacos de vidro que cercavam a entrada, ligando uma lanterna logo depois. Eu nem sabia que ele tinha aquilo!

        Ao adentrarmos o centro de lojas mais cobiçado de El Peral quando tudo ainda era “normal”, topamos com um corredor assombrado. Aquilo era uma distorção completa da minha experiência de quando havia visitado o lugar há tempos atrás. A luz do sol mal penetrava a parte mais interna das lojas, que já eram dominadas pelo verde dos musgos e pelas mais diversas cores de flores e sementes. Eu me impressionei! A velocidade que a natureza pode recuperar o que é seu por direito é algo sinistramente bizarro.

        Caminhando apenas alguns metros em uma trajetória circular, desviando dos obstáculos largados ao chão sujo, chegamos até o centro do Shopping de quatro andares. As escadas rolantes do primeiro andar empossadas por manchas de sangue, travadas completamente devido ao seu desuso, carregava em sua estrutura algumas dezenas de cadáveres já apodrecidos. O cheiro daquele lugar… HURGH! HURGH… Oh, meu Deus!

        — Tom!? — Catarina colocou a mão sobre o meu ombro depois de cessar os seus passos. Meu enjoo piorou quando vi que seu tênis havia parado justamente em cima do cadáver de uma criança. É sério. Aquela cena… Aquilo era tão pesado. Eu havia vivenciado quase dois anos de apocalipse e nunca havia sentido uma náusea tão forte quanto aquela. — Ei! Você quer voltar pro carro?

        Ela havia notado no que pisava depois do meu apontar de dedo, retirando o seu tênis de cima do corpo.

        — Não… Não… — É óbvio que eu queria voltar, sua tonta. Mesmo assim, ainda preciso manter a minha… postura? É. Isso mesmo. Preciso me impor perante aqueles dois de qualquer maneira. Eu só precisava respirar um pouco… talvez sobre as escadas rolantes! — Eu só preciso… de um pouco de ar.

        Me aliviei depois de caminhar rapidamente até os primeiros degraus daquela escada. Mesmo que o fedor inconsumível do lugar podre se assolasse por toda a sua estrutura, o pouco do ar livre que circulava através da abertura do Shopping ao ambiente já era suficiente para que eu me restaurasse, me recuperando logo depois.

        O senhor Dawn aproveitou daquela oportunidade e logo ofereceu uma proposta nada atrativa:

        — Ei! Acho que vou dar uma olhada nas salas internas do primeiro andar. O lugar não está tão conservado quanto o supermercado daquela vila…, mas acho que ainda temos chance de encontrar um gerador. Talvez… vocês encontrem algo do seu interesse nos outros andares! Explorem com cuidado!

        — O que? Nem pensar! — Catarina deu dois passos à frente, interrompendo os passos do senhor Dawn.

        Eu pensei que a sua próxima atitude fosse algo racional. Ha… Haha! Você ainda não a conhece, não é?

        — Eu vou com você! — Eu não pude acreditar no quão natural aquilo soou da boca dela.

        — Han? — Desci um degrau, nitidamente revoltado e agora com um pequeno raio de sol sobre o rosto.

        — Catarina… você não precisa fazer isso… — Insistiu o senhor Dawn, como se estivesse sem graça.

        — Se nos separarmos em três e um… as nossas chances de sobreviver em um território desconhecido abaixa drasticamente. Então… é melhor nos dividirmos em duplas. Além disso, você não vai aguentar transportar um gerador de energia e se defender ao mesmo tempo caso enfrente uma horda daquelas aberrações de repente!

        — Ela tem razão… — Complementou Joffrey. A sua voz agora parecia estar mais “grave” do que o normal.  Tá… eu juro que não vou tentar reparar nesses detalhes nas próximas vezes. Pera aí! Esse não é o foco agora! A minha irmã está prestes a formar uma dupla com um estranho que não conheceu nem há um dia inteiro?

        — Você ficou maluca? — Não me contive ao tentar alertá-la com os meus olhares clássicos de desconfiança e desconforto, que logo foram reconhecidos por tal. Não havia nenhum espelho na minha frente naquele exato momento, mas eu tinha certeza de que as minhas pupilas e sobrancelhas saltadas poderiam fazer com que uma pessoa que as encarasse pensasse duas vezes antes dos seus próximos passos. Ah, deixa de besteira. Eu sou só um garoto baixinho e sem qualquer músculo. Do que estou falando? Mesmo assim, ainda preciso… pelo menos continuar tentando… em manter o meu mais novo “personagem durão”.

        — Tom… — O senhor Dawn passou a se aproximar de mim, arrancando lentamente a arma da sua cintura com a mão direita. No mesmo instante, empunhei meu taco de golfe fortemente com as duas mãos. — Ei, não é nada do que está pensando! Relaxa, garoto!

        Você acha que eu abaixaria a minha guarda? Mesmo sem qualquer reação de Catarina e Joffrey, ainda passei os próximos segundos com os olhares cravados na atitude repentina do velhote. Ele tava literalmente sacando a arma e caminhando na minha direção! Porra! Isso não amedrontaria qualquer mente humana!?

        — Eu sei que você ainda não confia nem um pouco em mim… — O velhote empunhou a arma lentamente e a manobrou, fazendo com que o seu cano se virasse contra o seu corpo, em um gesto amigável. Agora, frente a frente, ele acabava de oferecer o porte daquela arma a mim. — Mas, estou disposto a fazer qualquer coisa para que você reconsidere os seus pensamentos. Você pode pegá-la se isso o fizer se sentir mais seguro!

        Em raras situações de todos os meus quinze anos de idade não pensei duas vezes antes das minhas próximas decisões… e aquela foi mais uma delas. A empunhei rapidamente e a apontei contra a cabeça do velhote, que não tomou qualquer atitude precipitada além de cravar o seu olhar no meu.

        Joffrey reforçou a sua apalpada na espingarda, não a empunhando graças a um comando da mão do senhor Dawn, que sorriu em seguida.

        — Você confia em mim, senhor Dawn? — Questionei. A sensação da adrenalina voltava a atacar meu corpo e eu não queria que aquele sentimento se esvaísse tão cedo. É claro que aquilo fazia parte do meu personagem, mas fazer piadas ou brincadeiras em momentos de ansiedade sempre foi a minha marca principal.

        — E eu tenho outra opção agora? — Ele disse aquilo enquanto esbanjava um sorriso de uma ponta a outra do seu rosto barbudo. É melhor parar com as gracinhas por aqui.

        Ri de nervoso depois de tirar a arma da direção do crânio do velhote, a abaixando e tirando todas as forças do meu braço além da qual a empunhava. Eu me senti leve. Me senti forte. Parando pra pensar, acho que seria um baita irresponsável se tivesse mais poderes em minhas mãos. Essa sensação já é quase incontrolável numa situação como essa, então, imagine em escalas maiores. Como os seres humanos são facilmente corrompíveis.

        Catarina riu, como se debochasse, antes de me provocar perante os estranhos:

        — Han? É sério que você vai confiar a sua arma nas mãos desse garoto? Ele nunca atirou na vida!

        Estava prestes a me defender, mas fui reprimido pelo tocar do antebraço do velhote contra o meu peitoral.

        — Você não precisa fazer isso, Tom. — A sua face agora já era totalmente séria. Como ele tinha o dom de assumir diferentes emoções durante um espaço tão curto de tempo! “Mágico”. — Vamos fazer o seguinte. O Joffrey pode te auxiliar! Isso se você precisar fazer algum disparo. O que acha?

        Aceitei a sugestão do senhor Dawn, embora ainda não me conformasse com o fato de que estávamos prestes a formar duplas totalmente desparelhadas. Não me restou outra opção. Confesso que senti uma leve dor ao ver minha irmã se despedir rancorosamente, passando a caminhar no primeiro andar com o senhor Dawn ao lado.

        — E aí? Você vai na frente? — Joffrey disse com um falso sorriso. Você precisava ver aquilo. Qualquer pessoa com uma mínima “vivência” saberia detectar o quão falso foi aquele sorriso. Que situação de merda.

        Girei o meu corpo e comecei a subir as escadas, desviando o meu pisar das manchas de sangue e dos pedaços de corpos apodrecidos que lá estavam largados. Que nojo. Acho que ao menos a vista valia todo o meu esforço. Da metade dos degraus até o último, era possível enxergar toda parte vegetal que havia consumido o Shopping por completo, recobrindo as suas paredes descascadas e manchadas, mesmo que o sol não favorecesse tanto o meu campo de visão. De qualquer maneira, aquilo tinha sido mais uma experiência única.

        Ao pisar sobre o segundo andar, eu não acreditei ao relembrar que uma das lojas de roupas mais memoráveis estava diante de mim, praticamente intacta ao julgar pela sua estrutura conservada. A loja URBAN era o sonho de qualquer adolescente ou jovem adulto que se importasse com moda há dois anos atrás. As suas roupas eram simplesmente magníficas, embora muito caras. Mas, agora, acho que a minha hora finalmente havia chegado.

        — Tom? Por que está sorrindo? — Joffrey me encarou depois de subir as escadas, passando a observar as vitrines da loja juntamente a mim. — Ah, agora… eu entendi.

        Ignorei seus comentários e caminhei até a porta principal. Lado a lado da PIROTECNIA, uma loja de fogos de artifícios renomada, e da ZOOM, uma das lojas mais caras da cidade quando o assunto se tratava de óculos, armações e relógios, a URBAN estava prestes a receber o seu maior fã… a não ser que… Não! Eu não acredito!

        — Está trancado! — Reclamei, insatisfeito, me afastando um pouco para coçar a cabeça.

        Joffrey não hesitou em derrubar a fechadura somente com a força do impacto da coronha de sua espingarda contra a mesma, a derrubando no chão e provocando um barulho consideravelmente alto, que logo ecoou em todo o segundo andar do Shopping. Nos colocamos em alerta quando escutamos o ecoar do estalar de uma das aberrações que já conhecíamos bem longe dali. Até que foi uma boca troca. Havíamos aberto a melhor loja de roupas de todo o país e ainda passamos a saber da existência de criaturas naquele lugar.

        Me encantei ao passar pela porta e observar todas aquelas roupas em perfeito estado. Dá pra acreditar que não estava tão escuro quanto achei que estaria? A luz do sol finalmente havia servido para algo naquela hora. Entre as estantes e cabides que continham as roupas mais bonitas desse mundo, fiquei enlouquecido ao ter que lidar com todas aquelas peças. Eu só havia trocado a minha blusa por uma camisa social esverdeada, chique e brilhante em três minutos de busca. Eram tantas opções! Oh, Deus, eu realmente mereço tudo isso?

        Porém, toda a sensação mágica se esvaiu ao ouvir o engatilhar da espingarda de Joffrey. Me virei em rápida velocidade para encará-lo. Ele fez um sinal com a cabeça, enquanto apontava a espingarda para outra direção, me indicando silenciosamente o que estava prestes a me deixar extremamente surpreso: uma vela que acabara de se apagar dissipava vestígios de fumaça sobre a atmosfera da loja. Logo, intrigantemente, ouvi um pequeno ruído do que parecia se tratar de gemidos. Aquele som vinha da direção de um dos provadores, e, curiosamente, aumentava à medida que eu me aproximava lentamente.

        — Ei! — Joffrey tentou me alertar antes que eu chegasse perto demais. A cortina de um daqueles provadores se mexia de maneira inconstante. Aquilo não podia se tratar de uma aberração, poderia?

        Não tive medo de chegar um pouco mais perto, mesmo que aquela parte já não fosse tão bem iluminada por qualquer dos raios solares. Logo, quando estava prestes a tocar a cortina, uma figura surgiu de trás da mesma, me empurrando num ato de ataque até o chão. No mesmo instante, Joffrey atirou, afastando aquele ser somente com a ameaça do barulho de sua espingarda.

        — ESPERA, CARALHO! ESPERA! — Berrei para que Joffrey não disparasse contra aquele ser, que agora estava parado e já era iluminado pelo raio solar bem à nossa frente. Incrivelmente, estávamos diante de um… sobrevivente! Ele estava em um péssimo estado de higiene. Os seus cabelos sobravam sobre os seus olhos, a sua barba recobria o seu rosto e as suas roupas estavam sujas e rasgadas, mesmo que, ironicamente, ele ainda se escondesse em uma loja de roupas.

        — Quem é você? — Me surpreendi quando aquele homem puxou uma faca atraente e aparentemente muito afiada da parte traseira de sua cintura, alternando o seu apontar entre o meu corpo e o de Joffrey, mesmo que estivéssemos a mais de… talvez… quatro metros de distância da sua pessoa. Mesmo assim, ainda tentei manter o controle da situação. — Ei! Se acalme! Não queremos te machucar!

        — Vocês… vocês não são reais… — Foram as primeiras palavras vindas da boca seca daquele homem.

        Joffrey me encarou com uma face desentendida. Era claro que ele já havia concluído que o cara se tratava de só um maluco que já havia perdido a cabeça. Eu não podia descordar. Mas ainda insisti em ajudá-lo.

        — Senhor, do que está falando? Nós somos reais!

        — Não… isso é impossível! Vocês são como Alice e… aquelas amigas insuportáveis dela… — O cara maluco enxugou uma pequena lágrima enquanto assumia uma posição de combate ao fixar a direção de sua faca contra Joffrey desta vez. Ele se sentia completamente ameaçado e aquilo já era óbvio.

        — Alice? Quem é Alice? — Perguntei, curioso, afim de ganhar algum tempo enquanto pensava em algo.

        Nossa conversa foi interrompida pelo ecoar do estalar de várias aberrações sobre os andares do Shopping.

        — Oh… Não… — O cara maluco já surtava, recuando o seu corpo para trás e quase abandonando a loja de vez. — Vocês… despertaram! Por que fizeram isso… DROGA! POR QUE ACORDARAM OS DEMÔNIOS?

        Ele se virou e iniciou uma rápida corrida para a direita. Logo, também abandonamos a loja para observarmos o que havia acontecido de fato. Bom, não foi uma das melhores surpresas. O primeiro andar estava dominado por quase uma centena daquelas criaturas, que estalavam as mandíbulas em conjunto. Algumas subiam sobre as escadas rolantes ao notarem a nossa presença, enquanto outras saíam do interior de lojas e mais lojas, como um verdadeiro pesadelo. Empunhei a minha arma com determinação depois de avaliar toda a situação.

        — Joffrey! Precisamos seguir aquele cara! — Falei com confiança ao observar a corrida daquele maluco a apenas alguns metros de distância à nossa frente. Ele fatiava os pescoços das criaturas que lidava no caminho com extrema facilidade.

        — SENHOR DAWN! CATARINA!? — Berrava Joffrey.

        — EI! — Eu não gostei nem um pouco de quase ter berrado aquilo em seu ouvido. — Você não entendeu? Vamos ser cercados por essas criaturas se não seguirmos aquele cara! Ele deve saber cada caminho de merda desse Shopping! Se você continuar gritando por eles só vai chamar a atenção das criaturas do primeiro andar!

        Surpreendentemente, convenci Joffrey em poucos segundos, passando a correr logo depois, seguindo o pisar de sangue do cara maluco que havia sujado a sola de seu tênis com o sangue de um dos corpos das criaturas.

        À medida que rastreávamos a rota de fuga do desconhecido, Joffrey continha o ataque de várias aberrações que saíam das lojas e avançavam sobre o corredor com os disparos de sua espingarda.

        Em um determinado momento, numa visão privilegiada e segura, notamos que o senhor Dawn e Catarina já escapavam no primeiro andar. O velhote puxava um carrinho de quatro rodas com as duas mãos, de costas para a direção que o levava, enquanto minha irmã atirava em qualquer aberração que se aproximasse. Aquilo foi um completo alívio para mim e Joffrey, mas ainda precisávamos encontrar alguma maneira de escapar da merda do novo inferno que havíamos acabado de nos enfiar.

        Pegamos um atalho que nos levava até as escadas de emergência e, antes de atravessarmos a porta pintada de vermelho, decidimos parar para recuperar um pouco de fôlego.

        — Que droga… — Comentei quando percebi que as aberrações que nos perseguiam já se aproximavam do início do atalho afastado. Ainda ganhamos alguns segundos devido à baixa velocidade das criaturas.

        — Garoto… — Falava Joffrey, ofegante, enquanto verificava a câmara de sua espingarda. — Eu… só tenho mais uma única bala! É melhor começar a usar a sua arma!

        Eu só havia realizado dois disparos com a pistola do senhor Dawn e não havia acertado qualquer parte dos corpos das criaturas que tinha alvejado. Eu poderia simplesmente passá-la para Joffrey, mas o meu ego já era grande demais naquele momento. O que foi? Eu prometi que seria sincero sobre tudo.

        Antes que partíssemos para a porta vermelha, Joffrey recolheu o próprio corpo para que aplicasse um golpe contra uma grande parte da horda que nos perseguia: um forte chute contra a barriga de uma das criaturas. Ele derrubou mais de uma dezena dos que formavam a frente da horda, ganhando um pouco de tempo.

        Ao cruzarmos com a porta vermelha das escadas de emergência, os rastros do cara maluco haviam acabado. O filho da puta tinha tirado os sapatos e os atirado para um dos cantos das escadas! É sério que ele pensou em nos despistar caso o perseguíssemos!? Eu não posso acreditar nesse tipo de coisa… MERDA!

        — Cuidado! — Joffrey quase foi atacado por uma aberração que acabara de saltar das escadas que levavam ao terceiro andar. Aquele foi o momento em que matei a minha terceira aberração, mas dessa vez com a porra de uma arma de fogo! O sangue do crânio da criatura espirrou sobre a face de Joffrey, forçando-o a se limpar.

        — Vamos! — Decidi descer as escadas em uma atitude irresponsável ao contar com a sorte.

        No corredor de emergência do primeiro andar, podíamos escutar o cruzar das aberrações que nos perseguia com a porta avermelhada. Aqueles monstros não iam desistir tão cedo de nós.

        Joffrey iluminava o caminho com uma pequena lanterna enquanto corríamos por aquele corredor sombrio, sem qualquer perspectiva de saída… até que topássemos de frente com o cara maluco. A colisão daquele cara com o corpo musculoso de Joffrey foi mais do que suficiente para derrubar o seu corpo fino.

        — O que? Que merda é essa!? — Replicou ele depois de se levantar rapidamente, provavelmente tomado pela sensação da adrenalina, apontando a sua faca contra a nossa direção com uma mão e escondendo sua face da luz emitida pela lanterna de Joffrey com a outra. — Vocês já deveriam ter sumido!

        — Você ainda não entendeu que somos reais… caralho? — Quase berrei. Logo, escutamos o famoso estalar das criaturas, mas dessa vez das únicas duas direções que podíamos escapar. Estávamos cercados.

        — Tá! Tá! Eu acredito em vocês! Eu acabei de ver outros dois do seu grupo miserável quando tentei escapar pela parte de trás do Shopping! — Ele abaixou a faca. — Aquela era a saída mais segura de todas, caralho!

        — O senhor Dawn e Catarina estão bem! — Joffrey se aliviou, mesmo que ainda estivesse atento ao barulho das criaturas. — Tá! Tá! A questão é: existe outra alguma merda de saída?

        — É claro! O estacionamento no subterrâneo! Eu estava fugindo para lá até bater o meu nariz nesse maldito peito de aço! — Reclamou o homem louco. Mas… que belo comentário… diga-se de passagem.

        Abrimos espaço para que ele prosseguisse com a sua rota de fuga, retomando a nossa corrida ao segui-lo.

        Depois de trinta segundos, contivemos algumas das aberrações da direção contrária que já nos alcançavam, tomando um caminho completamente desconhecido e já bem iluminado pelas luzes solares que penetravam o tal estacionamento do subterrâneo. Quase fui arranhado no abdômen por causa de um pequeno deslize.

        Joffrey havia deixado a sua lanterna cair, embora a iluminação não fosse mais um problema.

        Alcançamos duas grandes portas azuis que, para o nosso azar, se encontravam trancafiadas. As aberrações estavam há cerca de quinze segundos de nos alcançarem. A horda que nos perseguia havia se fundido com a outra que perseguia o cara maluco, formando um pouco mais de uma centena de aberrações ao meu ver.

        O cara maluco passou a berrar enquanto Joffrey batia com a coronha de sua espingarda contra a maçaneta das portas, como se tentasse motivá-lo ou algo do tipo. Com o instinto de sobrevivência ligado, as pessoas são capazes de qualquer coisa. Repito: qualquer coisa. Eu me impressionei quando o estranho musculoso chutou as portas após a sua quarta coronhada, as arrombando. Mesmo assim, as primeiras aberrações já estavam perto o suficiente para que tivéssemos que as conter assim logo depois de atravessarmos a nossa saída.

        Fechamos as portas e passamos a nos esforçar para que as aberrações já acumuladas sobre as portas não se intrometessem em invadir o estacionamento do subterrâneo. Eu confesso que a maior parte da força vinha dos braços de Joffrey, mas isso não importava! Tínhamos que tomar uma decisão… e rápido!

        — Não podemos ficar o dia inteiro segurando essas criaturas aqui, caralho! — Reclamei enquanto utilizava de toda a minha energia para empurrar as portas contra as aberrações, assim como Joffrey e o cara maluco.

        — Aguentem firme! Confiem em mim! — Joffrey abandonou as portas e partiu para cima de um armário esverdeado que estava a uns quatro metros de distância, bem na nossa lateral. Mas, advinha? As portas quase se abriram por completo quando perdemos a maior força do grupo, fazendo com que alguns braços daquelas aberrações quase nos alcançassem. O cara maluco berrou para Joffrey, emputecido, enquanto cortava pedaço por pedaço de cada aberração que ousasse tentar atravessar o pequeno espaço aberto entre as portas.

        Haviam duas pequenas janelas de vidro, uma em cada porta, então conseguíamos enxergar toda a horda que já se formava por todo o corredor de emergência. Acho que aquela foi a maior horda que já tinha visto durante toda a minha vida… e ela estava reunida em um lugar completamente minúsculo.

        Joffrey berrava ao se esforçar para movimentar o armário até as portas azuis. As veias de seus braços quase saltavam para fora. Mas, em um pequeno vacilo, ele tropeçou entre os diferentes do chão do estacionamento, fazendo com que o armário caísse sobre o chão. O corpo de Joffrey quase havia sido esmagado pela estrutura de ferro, mas escapou do impacto graças a sua queda em outra direção.

        Com o barulho aterrorizante e mais próximo do que nunca daquela horda, avistando Joffrey caído no chão e quase sem nenhuma força para segurar as portas, estávamos completamente fodidos.

        Joffrey se esforçava para se colocar de joelhos, nos encarando com uma expressão sem nenhuma fé. O cara maluco estava completamente assustado. As suas mãos tremiam assim como as minhas. Nossos corpos eram arrastados para trás e uma daquelas criaturas, com a metade de seu corpo, já quase atravessava o vão.

        — Querem saber de uma coisa? — Joffrey se levantou com os últimos esforços que lhe restavam, totalmente ofegante e com os olhos esbugalhados, nos encarando com um olhar de desistência. — Que se foda!

        O estranho musculoso se virou e passou a caminhar lentamente contra a nossa direção, nos abandonando!

        — O que…? — Eu não tive tempo de me expressar: o cara maluco havia arremessado a sua faca contra uma das panturrilhas de Joffrey, fazendo-o berrar de dor e derrubando o seu corpo contra o chão mais uma vez.

        Aquelas cenas se passavam tão rápido na minha frente e eu precisava tomar alguma atitude.

        — Vai se foder, desgraçado! — O maluco me abandonou, fazendo com que a porta da direita se rompesse por completo, abrindo a metade do caminho para que a horda de aberrações invadisse o estacionamento. Não tive outra escolha a não ser também abandonar a porta da esquerda, deixando que a horda passasse a perseguir os nossos corpos. Inesperadamente, ao me virar para encarar os outros dois, Joffrey já havia se virado contra o cara maluco, que estava prestes a iniciar uma corrida até a saída mais próxima ao ar livre, disparando a sua última bala na direção de uma das suas pernas. O estrago foi tão grande que a perna direita do homem maluco voou até o meu corpo, quando ainda me afastava de maior parte da horda.

        Eu não conseguia me expressar em palavras enquanto me afastava pelo lado dos fundos do estacionamento, enquanto não tirava os meus olhos dos outros dois caídos sobre o chão. As aberrações já haviam cercado meu único caminho até o corpo do homem maluco ou de Joffrey.

        — Ah…! Seu grande… FILHO DA PUTA! — Berrou o homem louco.

        Entre os corpos das aberrações, consegui enxergar o levantar de Joffrey. Aquele homem utilizava das suas últimas forças para se afastar das aberrações, aproveitando dos berros do homem louco, que já começava a ser devorado pela parte de uma dezena da horda. Os gritos de dor daquele cara me provocaram uma leve náusea enquanto eu caminhava de costas. Eu ainda podia ouvir o arrancar de cada pedaço do seu corpo. Aquilo marcou a minha mente. Eu sabia que a partir daquele momento eu não seria mais o mesmo.

        Ainda atirei com precisão contra as cabeças de algumas das criaturas que haviam ignorado o corpo do cara louco para me perseguir, descontando toda a raiva que sentia naquele instante.

        Pela primeira vez eu havia presenciado de fato o que poderia ser chamado de desumanidade.

        É.     Eu não estava nem um pouco bem.

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