05: ALVO
Caminhando sobre o entorno do estacionamento ao ar livre do Shopping, eu refletia sobre todos os últimos minutos que havia acabado de vivenciar. Eu merecia passar por tudo isso? A minha mente tá tão fodida.
É. Eu consegui escapar daquele inferno através de uma escada que dava acesso à uma cabine do outro lado da rua, como se tivesse sido construída para uma situação de emergência ou algo do tipo. Não foi tão fácil de arrombá-la, então decidi quebrar o vidro da pequena janela de sua parede e atravessá-la.
Eu não havia avistado nenhuma aberração até então, mas ainda assim empunhava a arma do senhor Dawn em minha mão esquerda. Ah! Eu não consigo esquecer… Os berros do cara louco… os barulhos do arrancar de seus órgãos para fora… A minha mente está a todo vapor. Joffrey… ele matou o cara louco e o sacrificou.
Se você tinha esperanças em alguma fantasia maluca entre mim e o tal estranho musculoso com o dobro da minha idade… é melhor cortá-las pela raiz agora. Aquele… Aquele… desgraçado…
Ao cruzar uma parte lateral do estacionamento, pude avistar de longe o nosso carro avermelhado. Me alegrei ao ver que Catarina estava viva e aparentemente sem qualquer ferimento. Ela ajudava o velhote a colocar um gerador de luz de cor negra no porta-malas do carro. Portanto, a minha expressão foi alterada por completo ao ver Joffrey sair do outro lado do carro, se aproximando do motor para checá-lo.
Passei a caminhar rapidamente. Minhas mãos tremiam. Uma raiva inexplicável havia tomado o meu corpo, me deixando irracional pelos próximos segundos.
— Tom!? — Catarina se surpreendeu, se aliviando ao abrir os braços para me receber. — Você está…
Recusei o abraço de Catarina e parti para cima de Joffrey quando ele menos esperava, acertando o seu rosto com um soco. É claro que não foi o suficiente para provocar algum dano grave, mas sim para saciar um pouco da extrema raiva que sentia naquele momento.
— EI! EI! QUE PORRA É ESSA!? — O senhor Dawn interviu, me afastando de Joffrey, que simplesmente decidiu ficar parado em frente ao motor, bancando o inocente ou algo do tipo.
— Que porra é essa? — Repliquei depois de encarar o rosto desentendido da minha irmã. — Esse babaca é um grande filho da puta! Agora eu entendi como deixaram os outros homens do seu grupo morrerem naquela merda de missão! Vocês também pretendem nos sacrificar se for necessário para que saiam com vida? SEUS… SEUS ARROMBADOS DO CARALHO!
Os meus gritos atraíram três aberrações que atravessavam a porta principal do Shopping.
— Do que você tá falando, Tom!? — Perguntou Catarina.
Respirei profundamente, antes de explicar a ela:
— Encontramos um sobrevivente no Shopping!
— O que? — O senhor Dawn se surpreendeu.
— É. — O respondi antes de atirar contra as cabeças das criaturas quando se aproximaram o suficiente. — Ele era um cara que não se dava muito bem com a própria mente. Então, logo depois que tivemos um certo… “desentendimento”, o seguimos até pararmos na porta de emergência do estacionamento do subterrâneo.
Joffrey fechava a sua cara à medida que cada palavra saía da minha boca.
— Poderíamos ter escapado os três com vida, mas esse filho da puta aí… insistiu em impedir a passagem da horda que nos perseguia com a porra de um armário. Depois que o plano dele foi por água abaixo, ele decidiu nos abandonar… e recebeu o que mereceu… — Catarina e o senhor Dawn encararam a perna de Joffrey, agora enfaixada e suja com um pouco da mancha do próprio sangue. — Para não ser largado para trás, ele atirou… ele atirou na perna daquele homem… o sacrificando para salvar a própria pele… mesmo depois de tomar uma atitude tão covarde como aquela. Eu deveria te matar aqui mesmo, SEU FILHO DA PUTA!
Apontei a arma contra o crânio daquele estranho, que não moveu qualquer músculo.
— EI! VOCÊ FICOU MALUCO!? — O senhor Dawn entrou na minha frente, com as mãos para cima, na tentativa de me acalmar com as suas próximas palavras. — Tom! O que deveria ter acontecido… já aconteceu! Nós podemos resolver isso de outra maneira! Só… por favor… abaixa a arma!
— “O que deveria ter acontecido”? — Ri ainda encarando o rosto do filho da puta. — Acha que eu deveria simplesmente aceitar que aquele homem precisava morrer por causa da atitude covarde do seu amigo!?
— Tom! — Catarina implorava. — Por favor… abaixa a arma…
Que droga… É óbvio que eu não mataria Joffrey ali. Estávamos próximos do porto e eu foderia com todo o plano do senhor Dawn. A minha sanidade se manteria a mesma se não puxasse aquele gatilho?
Abaixei a arma calmamente.
Que clima horrível. Era como se eu nem fosse mais bem-vindo ali.
— Tá… agora você pode devolver… sabe… a minha arma? — O senhor Dawn ainda agia com cautela.
Ofereci a sua arma de volta da mesma maneira que havia recebido. Não exatamente da mesma maneira. É, agora eu talvez devesse algumas balas. Droga… o que estou falando… Esse não é o momento…
— Ótimo… — O senhor Dawn foi fechar o porta-malas sem desafixar seu olhar entre mim e Joffrey. Minha irmã ainda estava estática durante toda a situação. — Agora… vamos entrar no carro antes que todas aquelas criaturas nos alcançassem, o que acham? Não falta muito para que a gente escape de toda essa merda.
Nos encaramos antes de seguir as recomendações do velhote. Catarina não se desgrudou de mim enquanto eu não entrasse por uma das portas traseiras. Eu precisava ocupar a minha mente com qualquer outra coisa no carro, então logo roubei o dispositivo MP3 da minha irmã, me afogando em qualquer uma daquelas músicas em seguida, enquanto o senhor Dawn ligava o motor do carro e nos direcionava para a estrada novamente.
Virei não só o meu rosto, como também o meu corpo, para o canto da minha janela. Eu só queria esquecer tudo aquilo. Esquecer absolutamente tudo enquanto observava o passar da natureza que cercava a avenida em minha vista. Catarina ainda tentou me consolar de alguma maneira ao acariciar alguns fios do meu cabelo.
Eu só queria… queria que tudo aquilo acabasse de uma vez.
“Wish You Were Here – Pink Floyd”
Meia hora se passou e o carro perdia a velocidade novamente, estacionando próximo de um grande campo verde, uma verdadeira área ao ar livre. Desanimei instantaneamente ao ver que o senhor Dawn descia do carro e já se preparava para se aproximar da janela ao qual eu me encostava. Mesmo com a raiva por Joffrey já um pouco controlada, os meus pensamentos de ódio ainda sobreviviam com as mínimas forças.
— Ei, Tom! — O velhote bateu na janela algumas vezes antes de abrir a porta com cuidado. — Venha aqui! Eu preciso te mostrar uma coisa. Tenho certeza que você vai gostar! Anda!
Encarei Catarina antes de descer do carro completamente desmotivado. Ela me devolveu um sorriso torto, como se recomendasse que eu o seguisse. Ah… Eu mereço…
Depois de pisar numa calçada que antecedia um beco para o campo verde, ainda observei as casas próximas àquele lugar no outro lado da rua. Era uma área pobre. Algumas eram formadas por tijolos e outras passavam por processos de reformas inacabadas. O sol já não estava tão forte quanto antes. Eram quase três da tarde e o meu relógio de pulso começava a falhar justo naquela hora. Odiaria ter que passar os próximos dias sem noção das horas exatas. Ah, espera! Agora eu tenho que me concentrar no que o velhote quer me mostrar!
Que diversão.
Ao atravessar o beco e observar o grande morro e a extensa vegetação que cercava a tal região, conclui na mesma hora que estávamos em uma das proximidades do centro de Valência, na Villagordo del Cabriel. Nunca tive interesse ou qualquer motivo para visitar aquela parte do país, mas a reconheci por causa das fotos que vi no álbum da nossa família há alguns anos atrás. Você se lembra, não é? Da minha forte memória. Haha!
Havia uma estante personalizada de madeira que cercava os limites do beco sujo e cinzento, separando-nos de móveis como fogões, geladeiras e outros eletrodomésticos jogados às traças sobre as terras secas do início do campo aberto. Havia garrafas de vidro sobre cada um daqueles móveis. Naquele instante, reconheci do que a tal surpresa se tratava: a porra de um tiro ao alvo.
— Vai me ensinar a atirar, é? — Debochei ao cruzar os braços, fazendo uma cara de superioridade. É óbvio que eu não sabia atirar, mas quem disse que eu tava afim de fazer aquilo depois de tudo o que havia acontecido?
— Aposto que pareceu muito fácil matar as aberrações à curta distância naquele lugar… — Ele debochou. — Eu não vou só te ensinar a atirar… garoto… Eu vou te ensinar a atirar de verdade.
Ao passar minha mão direita na estante, percebi que a sua madeira era áspera e nada confortável. Havia uns projéteis sem pólvora largados ao longo de sua estrutura, além de caixas de munição vazias. Bem ali, o velho colocou duas caixas verdes e aparentemente lacradas depois de tomar o meu lado, sinalizando com sua própria mão para a arma que havia me emprestado há horas atrás, chamando a minha atenção:
— Quando eu te entreguei essa arma no Shopping, mais cedo, a entreguei completamente destravada e com o cartucho cheio, pronto para o disparo. Mas… você ainda precisar entender o conceito da coisa… — O senhor Dawn sorria enquanto explicava. — Veja só…
Eu tenho preguiça só de lembrar todas as coisas que ele me explicou naquele dia. É sério! Se o que eu sei o que sei sobre armas, pistolas e espingardas é graças aos primeiros ensinamentos do senhor Dawn naquele dia, mas com a prática tudo realmente fica mais fácil.
Nos próximos minutos, ele me ensinou passo a passo sobre cada item necessário para o manuseio completo daquela arma de fogo, desde a inserção de cartuchos em seu interior, a manipulação de sua trava de segurança até o manejo do ferrolho. Com os primeiros disparos contra as garrafas de vidro a cerca de cinco a dez metros de distâncias do meu corpo, eu me animava gradativamente de acordo com cada acerto e com o controle certo de seu recuo. Confesso que aproveitei da raiva que sentia por Joffrey ainda estar vivo naquele momento para me concentrar mais ainda em meus disparos. Com certeza aquilo foi um fator determinante. O nível de ódio que se passava pela minha cabeça e pela minha concentração ao manusear aquela arma era inexplicável.
— EI! EI! — O senhor Dawn me alertou quando passei a dar mais atenção à velocidade do que a precisão dos projéteis que disparava contra as garrafas de vidro.
Quando a última bala do segundo cartucho acertou um dos meus alvos, escutei os passos de Catarina atrás de mim, logo em seguida, pelo beco sombrio. O ritmo de seu caminhar sempre foi muito fácil de adivinhar.
Girei o meu corpo enquanto recarregava aquela arma com as últimas balas de uma das caixas esverdeadas, observando o aproximar de minha irmã, que sorria ao reconhecer o meu progresso.
— Uau! Parece que encontramos um prodígio, senhor Dawn! — Ela brincou.
O senhor Dawn sorriu ao notar que eu já manuseava todos os processos da sua pistola de maneira correta.
Antes de tornar a atirar, sem nem mesmo girar o meu corpo, fui confrontado pelo velhote:
— Você precisa perdoá-lo, Tom…
Fechei os olhos por longos segundos, ainda empunhando a arma, e os abri depois de respirar profundamente. Encarei Catarina, que me observava com os braços cruzados, e logo respondi à altura:
— Você quer mesmo que eu perdoe um assassino?
Eu não queria que chegássemos a tocar naquele assunto. Não pelo menos tão cedo. Eu estava curtindo tanto aquele momento de… de… sabe… o senhor Dawn estava lidando comigo de um jeito paterno que nunca havia experimentado antes. A gente precisava estragar tudo? Maldito Joffrey do caralho.
— Olha… O Joffrey teve os motivos dele. Você mesmo já me disse que qualquer pessoa pode fazer qualquer coisa para sobreviver em situações de vida ou morte.
— Isso não inclui matar uma pessoa da maneira mais covarde possível só pra sobreviver, porra!
— Mas… Joffrey foi atacado primeiro… — Catarina disse aquilo com a maior calma do mundo. Não… Eu não podia acreditar que ela estava defendendo aquele cara. — Você mesmo não disse, Tom? Que o tal… “cara maluco” atirou uma faca na canela do Joffrey antes que ele atirasse?
— Han? — Eu ainda não acreditava que minha irmã tentava defender aquele assassino. — Você não ouviu mesmo o que eu disse quando contei sobre o que aconteceu naquele estacionamento, né?
Respirei profundamente depois que um forte vento passou pelas nossas roupas.
— Depois que o plano do Joffrey deu errado e ele viu que era perda de tempo tentar conter todas as criaturas no lado de trás daquelas portas, ele simplesmente decidiu nos abandonar. Eu ou… o cara maluco morreríamos, caralho! Vocês têm noção de quantas aberrações estavam nos perseguindo naquela hora? É claro que não, não é, porra!? Vocês nem sequer estavam naquela situação de… MERDA!
— Calma, Tom! — Pediu minha irmã, descruzando os braços e sinalizando com a mão aberta até meu peito.
Eu ri descaradamente das suas atitudes, sinalizando com a cabeça ao deixar claro toda a minha revolta.
— Eu não posso acreditar que estão fazendo isso! — Eu não conseguia parar de rir de nervoso. — É sério!? É sério que vocês estão tentando colocar na minha cabeça que… simplesmente está tudo bem defender aquele assassino à sangue frio!? Qual foi, porra?
O senhor Dawn já não me encarava com uma das caras mais esperançosas do mundo.
Sem nenhuma hesitação, tomei coragem para avançar lentamente até ficar frente a frente com Catarina. As minhas próximas palavras em voz alta repreenderam um pouco da postura do senhor Dawn:
— Quer mesmo continuar confiando nesses caras… e terminar como aquele cara maluco?
Catarina começava a bolar algum tipo de rebote logo depois de abrir a boca sem emitir qualquer som, mas se assustou assim como eu e o senhor Dawn ao ouvir o som de disparos vindos da direção do nosso carro. Ao mesmo tempo, escutamos alguns gritos desesperadores de Joffrey.
Corremos imediatamente pelo beco sombrio. Não demorou muito para que atravessássemos o caminho tão curto para concluir do que aquilo se tratava: centenas de aberrações haviam nos cercado de repente.
— O QUE? — Foi a reação do senhor Dawn depois de ver Joffrey no chão, deitado sobre o asfalto com um daqueles corpos sobre o seu peitoral, continuando a se defender com sua espingarda.
As portas dianteiras do carro estavam abertas e já haviam criaturas em seu interior. Talvez um pouco mais de duas centenas de aberrações haviam acabado de cruzar a rua daquele pequeno lugar. É claro que não tinha sido uma das melhores ideias do mundo chegar à um lugar desconhecido, não o vistoriar e simplesmente atirar em alguns alvos ao campo aberto, talvez chamando a atenção de toda a porra das aberrações da cidade!?
Catarina e o senhor Dawn corriam na direção de Joffrey enquanto atiravam nas cabeças das aberrações que se aproximavam. Mesmo que gastássemos apenas uma bala para acabar com cada uma daquelas criaturas, não tínhamos munição suficiente para lidar com toda a horda surpresa.
— PORRA! — Joffrey gritou depois de tirarem aquele corpo de cima do seu peitoral. O seu ferimento havia aberto outra vez e a sua canela sangrava. Ele berrou ainda mais depois que o senhor Dawn e Catarina tentaram erguer o seu corpo.
Eu já havia acabado com quatro criaturas em cinco disparos, mesmo que estivesse dando proteção à pessoa que mais odiava no mundo naquela hora. O estalar variado de cada uma daquelas aberrações que cruzavam as três ruas que cercavam o carro quase me enlouquecia.
— TEMOS QUE SAIR DAQUI… CARALHO! — Berrei depois que aqueles dois conseguiram reerguer o corpo de Joffrey. Ele havia entregue a sua espingarda para Catarina e só se concentrava em fugir das criaturas que quase alcançavam as suas costas, mancando como cada uma delas.
Haviam tantas aberrações em nosso torno que o carro já não era mais uma possibilidade.
Enquanto corríamos entre as brechas do exército de criaturas que tomavam a rua à nossa frente, em direção ao centro da pequena cidade, o senhor Dawn e Catarina protegiam Joffrey de qualquer aberração que superasse a sua baixa velocidade. Eu os guiava enquanto abria o caminho, chutando ou atirando contra qualquer corpo morto-vivo que impedisse a nossa travessia. Que ironia. Há meses atrás, pensava que aquilo se tratava apenas de pessoas infectadas e agora já agia de maneira completamente desumana, tirando a vida de qualquer um sem pensar duas vezes. Aquelas vidas já não se importavam tanto para mim. Aquele foi o momento em que concluí e provei que a minha desumanidade apenas se moldava.
Ao adentrar uma rua tomada por folhas de árvores que a cercava, a avançamos e logo tivemos uma surpresa nada agradável: uma nova horda acabava de cruzar a próxima esquina. Não! Aquilo deveria ser armação! Dá pra entender o nível do nosso azar?
— TOM! — Gritou Catarina, atirando em uma das aberrações da horda que já nos perseguia, que acabara de adentrar a rua. Girei o meu corpo e visualizei mais uma das imagens que os meus olhos marcaram pra todo o sempre. Joffrey estava com um de seus braços sobre o ombro do senhor Dawn, mancando enquanto colocava todas as suas forças sobre a perna debilitada, criando rastros de sangue pelo chão. As expressões daquele rosto são simplesmente inesquecíveis.
O cartucho da arma de Catarina já havia zerado. Eu precisava arranjar um caminho… de qualquer jeito.
Ao notar que uma das casas daquela rua era protegida por um cerco sensível e apodrecido, de madeira, que estava prestes a cair com qualquer mínimo esforço, sorri antes de tomar uma atitude memoravelmente lendária.
Com um chute bem forte, derrubei o cerco daquela casa e ralei uma das minhas mãos ao me desequilibrar pela grama fofa do quintal. Por sorte, eu não havia dado de cara com uma piscina vazia e completamente suja com algumas poças d’água de chuva. Me reergui e passei a caminhar até a porta da garagem da propriedade, já arrombada. Havia um corpo queimado e apodrecido próximo a um dos anões de jardim, mas nem tive tempo de prestar atenção em qualquer outro detalhe da casa com o aproximar de Catarina e os outros. Eles já haviam atravessado o buraco aberto no cerco de madeira e traziam consigo as duas hordas que já se juntavam.
— Caralho… — Eu estava ofegante. Mesmo assim, abri o que havia restado da porta daquela garagem para que os outros a adentrassem. Catarina foi a primeira e, tomada por adrenalina, passou a concentrar todas suas forças na tentativa de empurrar o que havia restado de um carro enferrujado na direção da entrada.
Sem demora, depois de acompanhar Joffrey até o interior da garagem, o senhor Dawn auxiliou Catarina ao abrir uma das portas dianteiras do carro para abaixar o seu freio de mão.
— VAMOS, TOM! NÃO FICA AÍ PARADO, CARALHO! — Gritou o velho.
Empurramos o carro há tempo, impedindo a travessia da horda. Eles enfiavam os seus braços e bocas entre as ferrugens de sua estrutura, nos encarando com seus olhos aterrorizantes.
Ao me virar, antes mesmo de começar a pensar em como poderíamos sair dali, Joffrey já havia levantado a metade do portão da garagem de uma vez, que nos levava ao outro lado do mesmo bairro. Sem perder tempo, todos atravessamos com o inclinar de nossos corpos, enquanto Joffrey o segurava com os dois braços.
Eu e o senhor Dawn seguramos o portão enquanto Catarina ajudava o manco desgraçado. Com toda certeza, o portão não era tão leve quanto parecia.
Reunidos após o encontrar do portão com o chão, causando um pequeno barulho, recuperávamos o fôlego de toda a corrida até ali. O senhor Dawn chegou a se ajoelhar enquanto vistoriava uma das mochilas que havia pego dos bancos do carro antes da nossa fuga. Ele distribuiu duas garrafas d’água antes de ser o primeiro a… como eu posso dizer… “estrear” uma delas!?
— Tom! Veja aquilo! — Catarina riu aos poucos depois de apontar com o dedo indicador de sua mão direita para uma Catedral, exatamente do centro daquela cidade. Ainda ouvíamos o estalar das mandíbulas da horda que havíamos acabado de despistar, há poucos metros de distância de nós.
Ainda na parte da frente daquela casa, conseguíamos enxergar todos os detalhes que acercavam o tal centro. A Catedral era o monumento mais chamativo de todo aquele local, entre árvores e uma vegetação diversificada e aflorada que formavam uma linda praça sobre tijolos alaranjados.
O local parecia estar intacto, pelo menos do lado de fora. A sua pintura branca e os vidros de suas janelas encantadores, não tão bonitos quanto aos detalhes da Catedral que havíamos ficado em Madrid…, mas isso já não importava. O sorriso da minha irmã naquele momento era… era… simplesmente impagável.
Depois de descansar por mais dois minutos, não suportava mais o barulho daquelas aberrações, então logo me levantei para conhecer os entornos da Catedral. Catarina me acompanhou imediatamente.
O senhor Dawn caminhava lentamente enquanto acompanhava Joffrey, que já havia amarrado um pedaço de sua camisa para estancar o ferimento da canela. Sim, agora o estranho musculoso estava sem camisa.
A grama era tão macia que os meus pés literalmente se afundavam lentamente. Impressionantemente, não havia sinal de qualquer aberração no centro da cidade. Eu não conseguia acreditar naquele paraíso.
Eu subia nos bancos altos e acimentados da praça, me sentindo como um deus ao tentar me equilibrar com os braços abertos. O espírito infantil de Catarina também se aflorou ao imitar as minhas atitudes. Notei que o senhor Dawn sorria da uma maneira estranhamente sincera. Aquilo se parecia com um passeio em família.
Alcançamos o que deveria ser antigamente uma fonte d’água, naquele momento completamente vazia. Ah! Você deveria ver aquilo. Catarina revirava as moedas da fonte na tentativa de encontrar alguma de alto valor ou outra muito diferente do padrão. Pela primeira vez agíamos como seres humanos que não se importavam somente com a porra da sobrevivência, entre alimentos e bebidas.
Catarina devolveu a espingarda vazia para Joffrey depois que saiu de dentro da fonte vazia. Ela encontrou um hobby que mais tarde me irritaria bastante: jogar, jogar e jogar uma moeda para cima… infinitas… vezes…
Alcançamos a parte da frente da enorme Catedral depois de subir algumas escadas. O lugar ocupava quase metade de toda a praça. Era uma verdadeira fortaleza, mas ainda desconhecida.
— Nós podemos passar a noite aqui! — Disse minha irmã, encantada dessa vez.
— É… Acho que não temos muita opção depois do que houve… — Comentei.
— Tá tentando colocar a culpa em mim… outra vez, garoto? — Joffrey disse aquilo depois de apoiar as suas costas em uma das barreiras acimentadas que cercavam os limites das escadas.
— Han? — Me virei, o encarando, lado a lado do senhor Dawn. — Agora, acha que tudo o que eu disser é sobre você? Você não é a porra do centro do mundo, filho da puta!
— Acho melhor começar a me respeitar um pouco. — Ele se desencostou das barreiras, se aproximando. O senhor Dawn logo o interrompeu, nos separando com os braços.
— QUEREM PARAR COM ISSO, PORRA? — Berrou o velhote, assustando Catarina. — Nós… estamos tão perto do Porto… e vocês vão continuar insistindo nessa briga de merda!?
— Assim como estávamos perto antes de você inventar de atirar à céu aberto em uma cidade desconhecida, não é? — Me afastei do tocar da mão do senhor Dawn. — Sem falar desse merda do seu lado. Ele já começou a se defender antes mesmo de qualquer um aqui falar alguma coisa. Qual foi, Joffrey!? Além de manco, agora você também é surdo? Como não percebeu que todas aquelas aberrações estavam se aproximando do carro?
— Como eu poderia escutar com o barulho dos seus tiros naquela hora? — Ele replicou.
— Han? — Eu estava prestes a rir, mas me assustei assim como os outros depois que Catarina berrou.
— CALEM A MERDA DA BOCA! — Ela ainda gritou durante dois segundos depois de chamar a nossa atenção, abaixando a cabeça e caminhando até os portões da Catedral, os abrindo sem qualquer cuidado.
— Catarina! — O senhor Dawn nos ignorou, seguindo minha irmã para que a assegurasse. Ela estava certa. Nem eu aguentaria toda aquela situação de merda se não entendesse de fato o que havia acontecido.
Joffrey e eu ainda nos encaramos antes de adentrar a Catedral, bem distantes um do outro.
O clima só começava a piorar a partir dali.
Acho que eu não suportaria mais uma noite sequer ao lado daquele desgraçado.
Eu não vou aguentar esse sentimento por muito tempo.

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