Alguns dias se passaram. Hoje era a segunda missão da Princesa da Chama Negra.

    — O Sr. Shin está muito ocupado. Ele queria se despedir pessoalmente hoje, mas parece que não teve tempo.

    — É mesmo? — respondeu Eunha com indiferença a Jehwi.

    — Ele ficou bem sentido com isso.

    — Entendi. — Pelo breve aceno de cabeça, parecia que ela não estava tão chateada. Ou talvez simplesmente não se interessasse por esse tipo de coisa.

    Jehwi pigarreou discretamente e decidiu mudar de assunto:

    Ahem. Você está gostando da casa?

    — Estou. Muito.

    A casa que a Guilda Lobo preparou para ela era literalmente um palácio. Mesmo quando sua mãe estava viva, ela nunca tinha vivido num lugar tão luxuoso. Depois disso, morou em um barraco prestes a desabar.

    Enquanto isso, Jehwi pensava com as mãos no volante: “Bem, seria estranho ela não gostar.”

    Era um apartamento tão luxuoso que até Jehwi, que servia Si-u há bastante tempo, ficou surpreso.

    — Como assim, um apartamento?

    — Isso mesmo. Em algum lugar não muito longe da minha casa. Ah, seria bom se desse pra ver a Floresta das Estrelas dali.

    A Floresta das Estrelas era um condomínio de apartamentos extremamente caro, recém-construído. Um apartamento com vista para esse complexo seria absurdamente caro só por causa da localização.

    — Claro, tem que ter uma câmera de segurança no corredor, assim como no saguão do primeiro andar. Quanto mais alto, melhor, pra ninguém conseguir olhar de fora.

    Jehwi sabia que Si-u a tratava de forma especial, mas parecia ser mais do que ele pensava. Ela realmente era uma boa pessoa. Tinha uns lados absurdos e estranhos, mas às vezes era mais gentil do que ele esperava ou demonstrava resultados melhores do que se imaginava, apesar de ser Rank F. Ainda assim, ele não entendia por que o diretor se importava tanto. Talvez houvesse algo mais especial nela.

    — Então, um Portão Rank B hoje?

    Ao ouvir a voz de Eunha do banco de trás, Jehwi a olhou pelo retrovisor.

    — Isso mesmo.

    Uma caçadora Rank F em um Portão Rank B normalmente não fazia sentido. Jehwi vinha frisando isso desde que ela entrou no portão. O fato de Eunha ter derrotado um monstro de Nv. 30 não tinha muito peso, já que pouca gente acreditava que ela realmente tivesse feito isso. A teoria mais forte entre os internautas era que ela apenas deu o golpe final numa luta já ganha.

    Mas então, como ela poderia participar de um portão Rank B? A resposta era simples e definitiva.

    — Esse é o poder da Guilda Lobo e da Lua Prateada — disse Jehwi, sorrindo triunfante como se fosse o diretor-executivo. Daquele momento até o destino final, Jehwi explicou continuamente as informações que podia revelar a Eunha como seu assessor. Uma caçadora Rank F sendo enviada a um portão Rank B era algo grande, e perigoso. Afinal, se alguém entrasse em um portão fora de seu nível, situações problemáticas surgiriam durante o combate.

    — Ei, não é ela? Aquela da chama negra ou sei lá?

    Eunha se deparou com esse tipo de situação antes mesmo da batalha começar.

    — Não é chama negra nem nada disso, é dragão negro, seu idiota.

    — Uau. Ela é uma cosplayer, não uma caçadora!

    — Quer tentar falar com ela?

    — Melhor não. O olhar dela é meio estranho.

    Eunha tinha uma audição muito melhor que a maioria, além de visão noturna graças ao contrato com o gato. Ela ouviu tudo, mesmo sem querer. Fingindo que não ouviu nada, limpou indiferente a lama que respingara sobre seu corpo.

    Esse portão havia se aberto em um aquário. Frequentemente, um portão herdava as características do local onde aparecia, por isso o chão estava completamente encharcado. Lama úmida espirrava em todas as direções quando ela se movia. Eunha vasculhou a mochila que Jehwi lhe entregara e puxou uma toalha. Então, começou a limpar meticulosamente a lama dos sapatos e da roupa.

    Um caçador apontou para ela e advertiu:

    — Fique alerta e acompanhe, se está com tempo pra limpar isso aí. A Lobo não está aqui. Se você se perder, ninguém vai vir te procurar.

    Um pedaço de lama voou em sua direção com um baque. Eunha se esquivou e ouviu vaias e risadas ao redor. Olhando para a lama, perguntou:

    — E se eu não limpar? — Eunha o encarou diretamente. — Se a lama endurecer no meu corpo desse jeito, vai atrapalhar na hora de lutar.

    As sobrancelhas do homem se contraíram com força diante da atitude indiferente de Eunha. Ele soltou uma risada seca em meio ao silêncio constrangedor e caminhou até ela.

    — Parece que você acha que é alguma coisa porque matou um monstrozinho de Nv. 30. Mas os caçadores aqui conseguem fazer isso também. Com muito mais experiência, inclusive. Entendeu?

    Eunha não respondeu.

    — Isso quer dizer: vai pra retaguarda. Para de bancar a sabichona. Que vadia. — ele deu um chute forte no chão ao virar as costas. Lama suja espirrou para todo lado. Se Eunha não tivesse virado o tronco, teria levado uma máscara de lama na cara.

    【A Criatura Mítica Viajante Felino das Trevas está indignada, perguntando se todas as espécies de caçadores são tão rudes assim. — Por que você não faz nada? Por que não mostra quem é de verdade? — Os suspiros furiosos do gato se tornam pesados.】

    “Nah.” Eunha desviou o olhar da janela de mensagens que vibrava de frustração. O que ela ganharia virando tudo de cabeça pra baixo? Prazer? Ela nunca desejou esse tipo de coisa.

    Durante o período do contrato, Eunha não agia sozinha. Ela carregava o nome da Guilda Lobo nas costas. Sabia que cada uma de suas ações acabaria voltando como uma flecha direcionada a Lobo e Si-u. Causar confusão por um acesso de raiva era coisa de criança.

    “É até melhor assim, já que não preciso fazer nada complicado.”

    Disseram que dariam uma parte a Eunha se ela observasse de trás e finalizasse a limpeza. Então, não tinha nada a perder. Ela decidiu assistir à batalha com calma.

    【Nv. 32 Grande Tubarão Branco Devorador se aproxima com força total.】

    【Nv. 26 Medusa Gigante Feroz estica seus tentáculos venenosos.】

    A dificuldade do portão tinha aumentado em relação ao anterior, e o mesmo valeu para o nível dos monstros. Mas os caçadores mostravam habilidades incomparáveis às do último grupo, como se nada daquilo fosse problema.

    Enquanto observava calmamente a luta, alguém se aproximou de Eunha.

    — Olá, nos encontramos de novo.

    Com um corpo esguio e uma expressão amigável, era o caçador Rank D, o popular Rei das Lives.

    “O que você está fazendo aqui?”

    Ele pertencia à Guilda Rugido. Eunha ouvira dizer que quem havia conseguido esse portão era a Guilda Hwarang. Talvez ele tivesse lido as perguntas nos olhos dela, pois coçou a bochecha e disse:

    — Na verdade, consegui uma vaga aqui depois que soube que você viria pra esse portão hoje.

    — Por quê?

    — Por que você acha? Porque eu queria falar com você mais uma vez.

    Os olhos negros de Eunha o examinaram como se o estudassem. Ela não sentia malícia alguma. O gato também permanecia em silêncio.

    Rei das Lives começou a acompanhar o passo de Eunha com facilidade. Atuava como BJ e sabia que ela estava sob um microscópio, para o bem e para o mal, na internet. No entanto, ele tinha visto com seus próprios olhos os momentos que a câmera não capturava.

    “Ela não parecia intimidada.”

    Ela havia encarado o monstro como uma fera diante de uma presa. E fazia o mesmo agora. Era também alguém que Si-u, o próximo indicado para Mestre da Guilda Lobo, estava apoiando. Rei das Lives havia sobrevivido com tenacidade no mundo dos BJs, conhecido por ser um oceano vermelho. Seu faro reagia com sensibilidade a oportunidades vantajosas.

    — Alguns suspeitam que você só deu o toque final, mas eu não penso assim. — De repente, ele baixou a voz ao lado de Eunha. — Você… você é uma encarnação, não é? — Havia uma interrogação no fim da frase, mas os olhos dele estavam cheios de convicção.

    Uma Criatura Mítica podia ter dezenas, centenas de contratantes, ou até mais, e distribuir seu poder entre eles. No entanto, uma encarnação era indiscutivelmente diferente: alguém que herdava completamente o poder da Criatura Mítica, não apenas uma parte. Cada Criatura Mítica podia ter apenas uma encarnação. Seus métodos de seleção variavam, e havia muito mais Criaturas Míticas sem encarnações do que aquelas que tinham.

    Após passar por seus testes exigentes, essas encarnações ganhavam um poder tremendo. O caso mais representativo era o do caçador Rank S na China, Wei Wang. Ele era a encarnação do Boi e dizia-se que tinha força suficiente para erguer um ônibus com uma só mão.

    Havia até piadas entre os caçadores de que, se ele se tornasse vassalo do Boi, seria capaz de mover aviões com as próprias mãos.

    — Essa é a única forma de uma caçadora Rank F matar um monstro de Nv. 30 com um único golpe. E um contrato com uma Criatura Mítica não aparece na máquina de avaliação. De qual das doze você é encarnação? Do dragão? Do tigre? Pelo grau de destruição, acho que não é nem do coelho nem da ovelha. — Ele a observava com olhos cheios de expectativa, como se esperasse que ela avaliasse sua dedução.

    — Eu…

    No momento em que Eunha abriu os lábios, uma voz urgente ecoou de algum lugar próximo: — Ei, tem gente normal aqui?!

    Gente normal? Todos, inclusive Rei das Lives e Eunha, se viraram na direção da voz ao mesmo tempo.

    — Parece que foram pegos pelo portão — murmurou Eunha em voz baixa, voltando-se na direção do grito. A resposta à pergunta de Rei das Lives nunca veio. — Você não vai?

    — Hã, ahm… Tô indo — respondeu ele, coçando a nuca com ar atordoado. “Será que foi só um pressentimento?”

    Seus olhos se contraíram por um instante. Rei das Lives sentiu um arrepio inexplicável e correu atrás de Eunha, esfregando os braços, pensando que perguntaria sobre as Criaturas Míticas em outra hora.


    — Sete, oito, nove… São exatamente dez.

    Moebius, o líder responsável pelo portão, era um caçador Rank C, mas havia muitos rumores de que em breve subiria para o Rank B. Era talentoso o bastante e contava com muitos seguidores.

    — São turistas do aquário. Vou solicitar reforços pelo terminal agora. Vamos interromper o avanço até que eles cheguem.

    Quando um portão se abria em um local com muitas pessoas, era bem comum que pessoas comuns acabassem sendo levadas para dentro dele. Aquele era um aquário em pleno fim de semana. Ninguém achava estranho que houvesse turistas presos ali. Normalmente, a Associação de Jurisdição dos Caçadores usava um radar para verificar se havia civis antes de enviar caçadores ao local, mas às vezes falhavam em detectá-los. De todo modo, os trinta e poucos caçadores presentes podiam proteger facilmente dez turistas. Moebius pediu reforços pelo terminal e tranquilizou os civis, depois instruiu os caçadores a formarem uma linha de defesa.

    — Só precisamos abater os monstros que nos atacarem e sentar pra assistir o espetáculo.

    “Esse portão é um banquete!” Rei das Lives sacudia os ombros, empolgado.

    — Você disse que se chama Yura, né? Quer isso aqui? Tá bombando entre os BJs de mukbang ultimamente. — Rei das Lives começou a vasculhar os bolsos.

    — …Um choro.

    Rei das Lives deixou cair a gelatina que estava segurando ao ouvir a voz baixa de Eunha.

    — O q-quê…?

    Seus olhos negros estavam tingidos de dourado. Como uma fera agachada na escuridão, suas pupilas estavam verticalmente fendadas.

    — Estou ouvindo uma criança chorando.

    Ela estava possuída? Ou era mais uma encenação? Mas ela parecia séria demais para isso. — Seus… seus olhos…

    Fwip.

    Eunha se virou e começou a caminhar apressadamente. Os olhos dos caçadores, incluindo o líder, se voltaram para ela.

    — Espere. Onde você vai? — Moebius segurou o pulso de Eunha.

    — Ali, eu ouço uma criança chorando.

    Ele semicerrava os olhos diante das palavras dela. Era natural que os sentidos físicos se aguçassem com o aumento de rank. Ele era o caçador de rank mais alto ali, com mais pontos de experiência, e não tinha ouvido nem passos, muito menos um choro.

    — É perigoso agir sozinha. Por favor, sente-se e cumpra seu papel de defesa.

    — Não. Eu preciso ir. — Eunha afastou de um só golpe a mão que a segurava. Ele não era fraco o suficiente para ser repelido com tanta facilidade. Moebius olhou para sua mão. Eunha já havia virado o corredor.

    Pff. Dizem que quanto mais ignorante, menos medo tem — comentou um caçador. — O que você vai fazer?

    — Tenho que ir atrás dela. Se algo acontecer, vou ficar mal com a Lobo. Podem vir dois comigo, por favor?

    Moebius correu atrás de Eunha com mais dois caçadores. Ela avançava com passos decididos, como se ainda ouvisse os choros.

    “O que diabos ela tá ouvindo?”

    Era por isso que ele odiava trazer caçadores novatos. Nunca mais faria isso de novo.

    — U-uaaahh!

    Moebius parou de correr. Seus olhos antes frios se arregalaram em descrença. Uma criança chorava. Ela abraçava uma boneca com força, soluçando com medo de ser descoberta por um monstro.

    — Ei. — Eunha estendeu a mão.

    — A-aah! Um fantasma! — A criança explodiu em lágrimas de repente. Parece que o rosto pálido e a roupa preta eram intensos demais para uma criança. Eunha recolheu a mão com um gesto desconcertado diante da garotinha de nariz escorrendo.

    Moebius, que observava tudo em silêncio, voltou a si e se aproximou da criança. — Ei, tá tudo bem agora. Vem comigo. Tá seguro ali do outro lado.

    Diferente da reação com Eunha, a menina não chorou ao ver Moebius. Ela estaria mentindo se dissesse que não ficou desapontada, mas o importante era que a criança estava segura.

    — O que foi? Vamos. — Moebius coçou a cabeça, como se não soubesse o que fazer. Do lugar onde estava, Eunha viu que a menina parecia estar resistindo e não queria sair dali. Ela conferiu que os arredores estavam seguros e se virou para sair. Não havia mais nada a ser feito ali.

    — Wahh, mamãe… — Eunha de repente parou. Ela encontrou os olhos marejados da menina caída no chão. — Minha mãe… não consigo… encontrar… hic.

    Um fragmento empoeirado de sua memória emergiu de repente.

    O concreto estraçalhado. Um braço esquerdo torcido de forma bizarra sob um piano destruído.

    “Mãe…”

    Uma garotinha caída diante daquilo. Ela encontrou o olhar de si mesma, mais de trinta anos no passado.

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