Capítulo 21
Eunha pensava nisso o tempo todo, desde 1997: e se caçadores existissem naquela época? Se ela tivesse despertado então, sua mãe teria morrido? Eunha teria conseguido mostrar a carta de aceitação da universidade para ela? Será que ela teria sido feliz?
Sentia-se como se estivesse presa em um pântano sem fundo. Quando voltou a si, Eunha estava tocando o pulso, como por hábito.
— Você deve ter ficado com medo, sozinha.
Ela parou. A mão que acariciava a pulseira dos desejos cessou o movimento. Ao levantar a cabeça lentamente, viu as costas de Moebius enquanto ele consolava a criança.
— Gosta de doce? — Ele tirou uma bala de morango do bolso e o entregou à menina. Ela a pegou, mesmo fungando. — Vamos encontrar sua mãe de qualquer jeito, então não se preocupe.
— S-sério…?
— Claro. — Moebius sorriu gentilmente e enxugou os olhos molhados dela. Tirou a terra da bochecha da menina e amarrou novamente o cabelo bagunçado. — Qual é o seu nome?
— Yeri… Yeri An.
— É um nome fofo. O que sua mãe estava vestindo?
— Um vestido vermelho.
— Sério? Então vocês estavam com roupas combinando.
— Sim.
Ele lidava com a criança de forma leve e natural, como se já tivesse vivido situações assim muitas vezes.
O rosto de Yeri passou da ansiedade ao alívio, e Moebius a entregou a um caçador próximo. — Leve essa criança e volte ao acampamento. E envie uma equipe de busca para cá, por favor. Duas… Acho que três é o ideal.
— Sim, chefe.
Yeri acenou com as mãos, aconchegada nos braços do caçador. — Obrigada, moço! — Moebius retribuiu o aceno até que a criança saísse do caminho e desaparecesse.
Eunha encostou-se à parede interna e os observou em silêncio. O sorriso aliviado da criança ficou gravado em sua mente e não desapareceu por muito tempo.
Fevereiro de 1998.
Já fazia um mês desde que Eunha fora recrutada e entrara no Centro de Treinamento. Naquela época, o sistema dos caçadores ainda não estava totalmente estabelecido. Era comum que monstros escapassem de um portão, e também era comum que os caçadores capturassem os mais fracos para usá-los nos treinamentos.
— Uau… Incrível — alguém exclamou, atônito. — Quantos será que ela matou sozinha?
Eunha saiu caminhando em meio às chamas intensas segurando, na mão, a cabeça decepada de um monstro. Os treinadores mais sensíveis vomitaram tudo o que tinham comido assim que a viram. O sangue do monstro fedia com seu cheiro repugnante característico. Com aquele sangue nojento cobrindo todo o corpo, Eunha apareceu sozinha no meio do Centro de Treinamento.
— Ela é louca.
— Deve estar fora de si.
As exclamações viraram críticas mais rápido do que as estações mudavam. Eunha chutou a cabeça do monstro como se fosse uma bola. Observou-a rolar e então levantou lentamente o pé.
Wham! Wham! Wham!
Pisoteou sem piedade a cabeça decepada. Os olhos saltaram para fora e um líquido não identificado jorrou como uma fonte.
Wham! Wham! Wham!
Mas Eunha não parou. Os recrutas que observavam aquela ação estranha não aguentaram e foram se afastando, um por um, até que só restaram Eunha e o general do acampamento no Centro de Treinamento.
— Pare. — Ele segurou com as próprias mãos a cabeça do monstro que Eunha pisoteava.
A voz de Eunha estava tão vazia quanto o olhar. — Por favor.
O general a jogou longe. — Já basta.
— Não, ainda não. — Eunha deu um passo em direção à cabeça como se estivesse enfeitiçada.
— O Código de Conduta dos Caçadores. — O general suspirou pesadamente. Eunha parou e se virou devagar. — Primeiro: reconheça que sua habilidade única é uma espada de dois gumes e obedeça às regras. Segundo: defenda o povo com honra e lealdade. — Sua voz seca recitou o Código de Conduta dos Caçadores. O general observou as feridas com cascas grudadas nos lábios de Eunha. — Você sabe por acaso por que não há nada sobre aniquilar monstros no Código?
Eunha balançou a cabeça em silêncio. Seus olhos negros continuavam fixos na cabeça do monstro.
— Porque esses dois artigos são muito mais importantes do que matar monstros.
Eunha não respondeu.
— Eunha, todos aqui perderam alguém da família. Eu também perdi minha filha.
Os olhos de Eunha se moveram lentamente do monstro até ele. O rosto que preenchia seu olhar vazio tinha a mesma expressão que o dela.
— Isso não vai trazer sua mãe de volta. — Ela desejou que ele não dissesse isso. Já ouvira tantas vezes que aquilo a fazia sangrar pelos ouvidos, sentia essa frase até os ossos.
Ele segurou os ombros de Eunha com ambas as mãos. Seus olhares semelhantes se encontraram no ar. — Haverá muito mais pessoas que você salvará do que aquelas que não poderá. — Ele deu dois tapinhas nos ombros dela. A areia soprava forte ao redor, a ponto de ressecar os olhos. — Espero que isso te console.
Eunha piscou lentamente.
— Me chamou, chefe?
Três caçadores corpulentos apareceram. Pareciam ser parte da equipe de apoio, pois carregavam equipamentos essenciais como tochas, armas e cordas.
— Oh, vocês chegaram antes do que eu esperava. Ouviram?
— Sim, a mãe da criança está desaparecida.
— Certo. Vamos voltar, então.
— Sim, chefe… O quê? — Os três caçadores se entreolharam, desconcertados.
Moebius se virou para eles. — Qual o problema?
— Uhm… E quanto à busca?
— Ah, a operação de busca. — Moebius bateu de leve na bochecha, pensativo, e logo sorriu suavemente. — Entramos até a metade do portão, mas um grupo maior de monstros apareceu e fomos forçados a recuar. Não havia nenhum sobrevivente nem roupas que correspondessem à descrição da desaparecida. — Moebius ergueu levemente a cabeça. Seus lábios desenharam um sorriso tênue. — Certo?
Os caçadores que viram o sorriso se entreolharam com expressão azeda. O som de gotas d’água caindo do teto ecoava no interior silencioso.
— O pagamento é o mesmo salvando uma ou dez pessoas. Por que arriscar e fazer algo tão perigoso?
Essa era a visão mais realista. Quando encontravam civis em portões, o chefe solicitava apoio pelo terminal. Em outras palavras, se apenas ficassem parados acalmando os civis, poderiam pegar sua parte e sair quando a varredura do portão terminasse. Mesmo que a história viesse à tona depois, não importava, afinal, estavam apenas cumprindo ordens superiores.
Logo, o maior dos caçadores ficou diante de Moebius.
— Entendido. — Seguir submissamente suas palavras os faria se sentir em paz, agora e no futuro.
— Muito bem, vamos voltar.
— Sim, chefe.
Quando Moebius se virou para o caminho e os três caçadores o seguiram, o último deles praguejou e saltou para trás.
— Caralho, que merda foi essa?! — O homem levou a mão ao peito, assustado, e arregalou os olhos.
A mulher de preto, escondida nas sombras, emitia faíscas ferozes com o olhar. Desde quando ela estava ali? Ele sequer a havia notado. Seu cabelo era negro como a escuridão que envolvia o portão. Usava um vestido preto e segurava uma sombrinha pontuda como uma faca de cozinha. Era tão imponente que era difícil não reconhecê-la. Era a caçadora de conceito de Rank F, a Princesa da Chama Negra.
— O-o quê? Quase tive um infarto!
Os olhos profundos a ponto de dar arrepios estavam fixos neles.
— O que está fazendo aqui? Não vai? — Ele apontou com o queixo em direção ao caminho, mas Eunha não se moveu um centímetro. Olhou para ele, desviou o olhar num instante e começou a caminhar na direção oposta.
Tap, tap.
— Não é por aí. Onde você pensa que vai? — Um dos caçadores tentou segurá-la pelo pulso. Tentou.
Eunha desviou levemente das mãos dele e olhou por cima do ombro. — Temos que fazer a busca.
— O quê? Você não ouviu o que o chefe acabou de dizer?
— Ouvi. Que a busca foi feita até a metade do portão. Eu vou olhar mais fundo.
Os quatro caçadores, incluindo Moebius, perceberam que Eunha pretendia ir sozinha.
“Totalmente fora de si.”
Não era apenas uma novata ou inexperiente. Era insana.
— A alta taxa de mortalidade entre caçadores é coisa do passado… — Moebius soltou um suspiro carregado e bagunçou os cabelos. — Vou te contar, já que parece não saber, mas há duas situações em que caçadores morrem ou ficam gravemente feridos em um portão. A primeira: quando ocorre um acidente inesperado. A segunda: quando entram sem medo em um portão que não condiz com seu rank.
Outros caçadores também haviam tentado bancar o herói antes dela. Moebius vira como eles terminaram.
— E daí? — Eunha virou o rosto para eles e respondeu. Seu corpo ainda seguia na direção oposta.
Estava tão calma que chegava a ser cômico. Moebius decidiu apontar um a um os problemas da caçadora novata que não conhecia o medo. — Você parece estar certa de que a mãe da criança ainda está no portão, mas terá que se responsabilizar se não estiver.
Eunha permaneceu em silêncio.
— O crime de insubordinação a ordens de um comandante é bem sério. Também não poderá ignorar os danos causados à sua guilda. Consegue lidar com isso?
Eunha sequer olhou para trás enquanto avançava, passo a passo.
Nesse momento, um dos caçadores, que até então observava a situação, não aguentou e bloqueou o caminho de Eunha. — Vai ignorar o chefe agora? Além de não ter experiência em portões, ainda é ignorante sobre a hierarquia dos caçadores. — Ele ficou em uma postura arrogante, olhando para ela de cima como se ela o incomodasse profundamente.
Esse era o problema. No mundo moderno, com um número visivelmente maior de despertos, os civis acreditavam no que viam na mídia, e todo tipo de pessoa queria virar caçador. Isso o enojava. Caçadores de conceito que entravam nos portões usando vestidos esvoaçantes o deixavam especialmente incomodado.
— E você, qual é sua classe? — Ele perguntou com agressividade. Era da Classe 123, formado em outubro de 2028, já fazia três anos.
Os olhos negros de Eunha se moveram lentamente de Moebius até fixarem-se no caçador à sua frente. Sabia bem que a política de recrutamento havia sido abolida, e que os despertos não eram mais forçados a virar caçadores neste mundo. O atual Centro de Treinamento dos caçadores não passava de uma carcaça vazia. Para os caçadores modernos, era como fazer faculdade por quatro anos para conseguir um emprego melhor, algo que se podia fazer, mas que não fazia diferença se não o fizesse. Ela apenas achou curioso ainda existirem caçadores que comentavam sobre suas classes.
— Não me ouviu? Qual é sua classe?
Os cantos dos lábios de Eunha se ergueram levemente diante da pergunta. Ele sentiu um calafrio percorrer sua espinha quando encarou os olhos negros dela. Os lábios escarlates, quase como manchados de sangue, se entreabriram de forma quase imperceptível. — Eu? — A voz que derretia na escuridão não foi longe. Só tocou de leve o ouvido dele, bem ao lado. — A primeira classe.
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