Era um dia de meio do inverno com vento cortante. Si-u não aguentou o treinamento rigoroso e saiu correndo da mansão descalço.

    — Jovem mestre. Está aqui?

    Uma longa sombra pairou sobre Si-u, que estava agachado perto de um poste e fungava. O idoso de uniforme impecável, expressão benigna e algumas rugas no rosto era Ilseok Na. Ele era sempre o primeiro a encontrar Si-u e estender a mão, não importava onde ele estivesse escondido; não era membro da Guilda Lobo, mas trabalhava na mansão há muito tempo.

    — Ilseok… — Si-u reconheceu Ilseok e ergueu a cabeça que havia enterrado nos joelhos. Ilseok viu o rosto molhado de lágrimas de Si-u e tirou um lenço do bolso para limpar o rosto sujo do garoto.

    — Seu rostinho bonito está uma bagunça. Certo, vamos voltar agora.

    — Não vou. — Si-u afastou as mãos de Ilseok e enterrou novamente o rosto nos joelhos.

    Ilseok olhou para Si-u com uma expressão preocupada, depois se agachou para ficar na altura dos olhos de seu jovem mestre. — É mesmo? Então que tal irmos comer alguma coisa?

    — Não quero comer…

    — Mesmo sem apetite, você ainda precisa comer.

    Humph.

    Ilseok pegou Si-u no colo com leveza e começou a andar.

    — V-Vovô…!

    Com o menino se debatendo nos braços, ele foi até uma barraca de comida simples nas redondezas. Ilseok pediu sopa de mexilhão, pajeon1 e ovos cozidos no vapor, enquanto Si-u se sentou do outro lado da mesa com uma expressão carrancuda, olhando para ele.

    — Aposto que nunca veio a um lugar como este, não é? Ah, tem pimentas no pajeon, então… — Ilseok tirou as pimentas do pajeon, rasgou em pedaços pequenos e segurou um perto da boca de Si-u. — Pronto, experimente.

    — …

    — Ah, está com medo de estar quente? Espera só um segundo…

    — Me dá logo isso. — Si-u fingiu ter cedido e pegou o pedaço. A massa crocante, a cebolinha estalando e o sabor salgado estavam até que bons.

    Ao ver Si-u comendo o pajeon em silêncio, Ilseok sorriu aliviado.

    — Só estou comendo porque foi você que me deu. Nem estou com fome.

    — Claro, claro.

    — … — Si-u fez um leve biquinho e encarou Ilseok. Ele não pareceu se importar e reduziu o fogo do fogareiro com uma expressão satisfeita.

    — Puxa, também tem muita pimenta na sopa de mexilhão. Hmm, se eu soubesse, teria pedido outra coisa. O jovem mestre ainda é novo, algo tão apimentado…

    — Não tem nada que eu não consiga comer.

    — Perdão?

    — Eu consigo comer qualquer coisa.

    Si-u ergueu a colher, mergulhou na sopa de mexilhão como se quisesse provar o que dissera e levou à boca. Então…

    — Cof…!

    — J-Jovem mestre?! Está bem?!

    — E-Estou. Isso não é nada.

    — Vou pedir outra coisa agora mesmo. Me desculpe. Não pensei direito.

    — Não, de verdade, está tudo bem. — Si-u tentou impedir com firmeza, mas Ilseok pediu praticamente todo o cardápio de novo. Só quando Si-u não conseguia comer mais foi que Ilseok o levou de volta para a mansão.

    — Onde estava para voltar tão tarde? — O vice-mestre da guilda, Hagyun, notou o retorno de Si-u como por mágica e apareceu de repente na entrada. Usava a máscara preta simples de sempre naquele dia também.

    — Parecia que ele não havia jantado, então o levei para comer.

    — Comer?

    — Sim. Vice-mestre, o jovem mestre ainda está em fase de crescimento. Treinar é ótimo, mas não seria mais importante comer e descansar bem?

    — …

    Hagyun encarou Ilseok por trás da máscara preta e lançou um olhar a Si-u. Si-u estava meio escondido atrás de Ilseok, encarando Hagyun com raiva.

    — Está ficando tarde. Que tal deixarmos ele descansar hoje?

    Hagyun voltou a olhar para Ilseok diante da sugestão. Ficou em silêncio por um momento e se virou.

    — …Vou marcar o treinamento para as seis e meia da manhã, jovem mestre.

    Hagyun sumiu e Ilseok levou Si-u até o quarto. Sentou Si-u numa cama limpa e macia, depois trouxe um kit de primeiros socorros e passou pomada em suas bochechas.

    — Daqui a algumas horas eu já vou estar bem mesmo que você não passe essas coisas. Eu sou um Desperto — disse Si-u de mau humor, mas permaneceu quieto no lugar. Ele não desgostava das mãos suaves e gentis que roçavam sua bochecha.

    — Claro. — Tap. Ilseok fechou o kit de primeiros socorros e sorriu. — Mas só porque você se cura rápido, não quer dizer que não dói!

    — …

    Si-u não disse nada.

    Ilseok o deitou na cama e apagou a luz. Talvez tenha sentido medo quando o quarto ficou escuro, pois a mãozinha de Si-u segurou suavemente a manga de Ilseok.

    — Eu não vou a lugar nenhum, mesmo que você não faça isso.

    — …Sério?

    — Claro.

    Ilseok afagou o peito de Si-u por cima da coberta com carinho. Si-u moveu os olhos azuis e abriu a boca timidamente. — Vovô.

    — Sim, jovem mestre?

    — Por que você nunca briga comigo?

    — Por que eu brigaria?

    — Eu sempre fujo do treinamento e fico vagando por aí.

    — Acho que isso é um alívio.

    — …O quê? — Si-u o encarou com olhos arregalados debaixo das cobertas, como se perguntasse o que aquilo significava.

    Ilseok sorriu gentilmente e acariciou sua cabeça. — Acho um grande alívio que você consiga dizer que não gosta de algo.

    — …

    — Pronto, hora de dormir. Crianças devem dormir cedo e acordar cedo.

    Ilseok puxou a coberta até o pescoço de Si-u. Embora estivesse escondida sob a coberta, a boca de Si-u formou uma curva suave. — Vovô.

    — Sim, jovem mestre?

    — …n-não é nada.

    Shuf!

    Si-u se cobriu até o topo da cabeça. Ele queria, na verdade, agradecer. Agradecer por não brigar com ele. Por ter comprado o jantar. Por soprar a comida quente. Por ficar ao seu lado até ele dormir.

    Mas sua boca não se mexia como queria.

    “Vou falar amanhã quando acordar. Isso, quando eu acordar amanhã…”


    — …

    Si-u abriu os olhos. A luz do sol atravessando as cortinas era ofuscante. Já devia ser de manhã.

    A mão que tentou, involuntariamente, afastar o cabelo parou no ar. Era uma mão grande e robusta. Já não pertencia mais a um garoto. Ao se sentar devagar, viu seu reflexo no espelho.

    O pequeno garoto havia crescido e se tornado um adulto. Tanto tempo havia passado. Desde que Ilseok deixou Si-u, também.

    Naquele dia, Ilseok, que disse que ficaria com Si-u, desapareceu. Si-u achou que ele havia saído para cuidar de outro trabalho. Mas mesmo agora, mais de dez anos depois, Ilseok nunca mais apareceu diante dele. Quando perguntou aos empregados da mansão ou aos membros da guilda, diziam que ele havia feito uma longa viagem de negócios. Si-u era jovem naquela época e acreditou.

    “Porém…”

    Mesmo um ou dois anos depois, Ilseok não voltou. Si-u ficou desconfiado e procurou sem parar pelo paradeiro dele. E como resultado, descobriu que Ilseok havia morrido em um acidente de carro. Diziam que o acidente foi tão grave que nem restaram partes intactas do corpo.

    Era até difícil de acreditar.

    — …Phew.

    Si-u levantou-se da cama e saiu do quarto. Queria um pouco de ar fresco.

    “Por que sonhei com isso do nada?”

    Si-u franziu levemente o cenho enquanto andava pelo corredor. Seria porque ouvira Eunha anunciar que queria romper o contrato na noite anterior? Se fosse isso, então a declaração de Eunha deve ter sido bastante chocante, se o fez sonhar com algo que nunca sonhara antes.

    — Recebi muita ajuda de você, com o apartamento e com o Sr. Park. Não quero causar mais danos.

    — Não se preocupe, eu vou te retribuir de todas as formas possíveis.

    Si-u congelou no lugar e ficou ali por um tempo como uma estátua.

    “É melhor eu revisar o contrato primeiro.” Seria sensato entender bem os termos do contrato e conversar seriamente com Eunha. O contrato estava guardado no quarto de Si-u. O mais rápido seria pedir para Jehwi trazê-lo. Si-u tateou e pegou o celular.

    <Jehwi Park>

    Rrrr…

    — O número chamado não pôde atender, por favor, deixe um recado…

    Ele não atendeu. Si-u tentou mais algumas vezes, mas continuou sem resposta. Aquilo era estranho. Jehwi sempre atendia suas ligações, por mais ocupado que estivesse. Especialmente depois do recente incidente em Busan, Jehwi vinha sendo ainda mais atento com os contatos.

    Não havia o que fazer. Decidiu deixar de lado a disciplina e mandar uma mensagem primeiro. Mas, inacreditavelmente, o número ‘1’ ao lado da mensagem não desapareceu nem após uma hora, nem após duas.

    — Tsc.

    Si-u decidiu ir pessoalmente até a mansão. Pisou fundo no acelerador, e o trajeto do hospital até a mansão foi mais rápido do que imaginava.

    — Jovem mestre? — Ao chegar na mansão, um empregado que limpava os portões arregalou os olhos. Ele parecia extremamente surpreso.

    — P-Por que está aqui…?

    — É estranho eu vir à minha própria casa? — Si-u perguntou enquanto tirava os sapatos.

    O empregado suava frio e não parava de olhá-lo de relance. — N-Não. É-É que disseram que o senhor ficaria no hospital por mais um tempo…

    — Preciso pegar uma coisa. Já volto…

    Foi então que Si-u parou de falar e franziu o cenho.

    “O cheiro de sangue.”

    Um cheiro forte de sangue atingiu seu nariz. Não vinha de longe. Aquilo vinha… do porão.

    — Tem alguém no porão?

    — Ah. — O empregado pareceu nervoso e hesitou.

    Havia apenas uma ocasião em que um cheiro tão forte de sangue exalava da mansão: quando Si-u treinava no porão. Mas, obviamente, ele não estava treinando agora. Si-u passou direto pelo empregado e desceu em direção ao porão.

    — J-Jovem mestre!

    O empregado tentou detê-lo às pressas, mas em vão. Si-u precisava saber a causa daquele cheiro de sangue. Assim que desceu a longa escada e chegou ao corredor…

    — …a boca!

    Ouviu alguém gritar. Si-u parou e levantou lentamente o olhar.

    — O que vocês sabem sobre o diretor para falarem dele desse jeito?! — Era a voz de Jehwi.

    — Não parece que inventamos nada. — Os dois de frente para Jehwi eram inconfundíveis. Eram os caçadores de Rank A criados pela Lobo: Presa Venenosa Minguk Lee e Ilusionista Cheolyong Jin.

    — Pois é. Ele não tem noção nenhuma do cargo de futuro mestre da Guilda Lobo, e só é um jovem mestre que vive inventando desculpa por ter medo de sangue.

    — E você só bajula esse jovem mestre em vez de guiá-lo pelo caminho certo. Por isso está nessa situação.

    Os dois caçadores pisavam em Jehwi, que estava no chão. Jehwi os encarava com os olhos injetados de sangue e mordia os lábios rachados. O caçador de cabelos longos o observou em silêncio, depois se agachou e o fitou de perto.

    — Até me sinto mal por você. Mas isso também é uma ordem.

    Jehwi ficou em silêncio por um momento. Uma ordem. Ele podia imaginar de quem era. Também podia imaginar, até certo ponto, por que dera essa ordem. Ao lado de Si-u, Jehwi era o responsável pela Princesa da Chama Negra, a parceira contratual de Si-u. Era algo sério e perigoso. Mas ele aceitou tudo isso para seguir seu próprio caminho, e agora isso acontecia. Contudo…

    — …Tanto faz. Ordem é ordem. — Jehwi não se arrependia. Eunha o havia salvado, a ele e sua irmã, com a própria vida. Agora, pensava que era um alívio tê-la conhecido, e queria ajudá-la no que pudesse no futuro. Estava disposto a assumir a responsabilidade pelo incidente em Busan de todas as formas. Sua irmã estava segura, e Eunha também. Ele não desejava mais nada.

    — Retirem… — Jehwi murmurou e ergueu a cabeça. Os olhos antes sempre redondos e dóceis agora estavam afiados. — Retirem o que disseram sobre o jovem mestre ser incompetente.

    — …O quê? — Os dois caçadores piscaram lentamente. Acharam extremamente curioso que ele dissesse algo assim nessa situação, sendo um não-despertado. — Uau.

    O homem que riu alto marchou até Jehwi. Então agarrou seu cabelo. — Só porque anda com o jovem mestre, acha que é alguma coisa.

    — …Ugh. — Jehwi não conseguiu resistir à força e teve o pescoço torcido contra a vontade.

    — Infelizmente, mesmo que defenda o jovem mestre aqui, vai morrer aqui. E a matéria de amanhã vai ser: ‘Sr. Park, homem de trinta e poucos anos, morre na hora em acidente de carro numa avenida qualquer.’ Isso significa que ninguém vai saber que você morreu no porão desta mansão.

    Bam!

    O homem esmagou o rosto de Jehwi contra o chão, segurando-o pelo cabelo.

    — Igual aquele velho de algumas décadas atrás.

    Slip…

    Sangue vermelho escorreu do nariz amassado. Incapaz até de gemer, Jehwi tremia sob o aperto firme no cabelo.

    Whoosh!

    No instante em que o homem ia esmagar a cabeça de Jehwi no chão novamente…

    — Aaaaagh!

    Stab!

    Um estilhaço de gelo afiado se cravou no topo da mão que segurava o cabelo de Jehwi. Não houve nem tempo para ver o que acontecia.

    Stab, stab, stab, stab…!

    Estilhaços de gelo voaram nos ombros, na nuca, nas costas, em todas as direções. O homem, parecendo uma colmeia, caiu e começou a tremer. Ainda assim, conseguiu erguer a cabeça.

    Tap, tap…

    Alguém se aproximava diante de seus olhos.

    — …

    — Um jovem Lobo de cabelos brancos como a neve.

    Era o Lobo Branco, Si-u Shin.

    1. Pajeon é uma comida típica coreana, a melhor forma que consigo pensar em descrever, é uma panqueca com cebolinha.[]

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