Índice de Capítulo

    — Senhores, têm algum assunto comigo?

    11 de setembro de 2031. O segundo dia do leilão de caçadores. Ayeon terminou de acumular fichas em segurança e parou em um beco deserto. Três caçadores estrangeiros, incluindo Verde, estavam diante dela. Ela sabia qual era o propósito deles.

    — Foi você, não foi?

    — Hã? Do que está falando?

    — Você roubou meus itens.

    Verde parou diante de Ayeon como se soubesse de tudo. Ayeon ergueu a cabeça, sem demonstrar nenhum sinal de intimidação, e deu uma gargalhada.

    — Eu sabia. Eu te disse pra cuidar bem dos bolsos.

    — Para de bancar a inocente e devolve.

    — Do que você tá falando? Tem alguma prova de que eu roubei? Não tem. — Os olhos rosa-escuros sob o boné curvaram-se com inocência.

    — Não consigo pensar em mais ninguém além de você.

    — Ei, moço. Isso é só o que você acha, não é prova. Aff. — Ayeon balançou a cabeça e cruzou os braços formando um X. — Enfim. Não fui eu. Jamais.

    Bem na hora em que ela ia passar por eles…

    Grrrrr… Au! Au!

    Um cachorro grande surgiu do nada e mostrou os dentes como se fosse dilacerá-la a qualquer instante. Dois, três, quatro… Os cães enormes que antes não estavam lá começaram a se multiplicar.

    “Eles têm um Domador.”

    Caçadores com traços de invocação. Caçadores que lidavam com animais eram geralmente chamados de Domadores. Seria um incômodo se a luta se arrastasse. Caçadores do tipo invocador podiam invocar de dez, no mínimo, a dezenas, e até milhares, dependendo do seu rank. Ayeon era especialista em combate um contra um, e esse era um inimigo natural pra ela.

    E ainda eram três oponentes. A habilidade única do caçador de rank A, Verde, era controlar plantas, segundo as informações de Ayeon. Ela não sabia o rank nem a habilidade única do outro caçador. Isso significava que ela nem conseguia prever sua natureza. Ou seja, só restava uma opção. Ayeon girou nos calcanhares.

    — Moço, você é um cachorro? Que fofo, mas eu sou do time dos gatos.

    Então…

    — …?!

    A garota sumiu como fumaça. Verde ficou confuso e rapidamente vasculhou os arredores com o olhar. A garota não estava em lugar nenhum. Acima? Não. Ela simplesmente desapareceu. Como se tivesse se teletransportado. Ele não sabia se ela tinha fugido ou só se escondido. Mas isso não importava.

    — Sigam ela.

    Um caçador murmurou como se lançasse um feitiço. Os cães grandes se espalharam como se aquele tivesse sido o gatilho.


    — Aquela Ayeon Kang da turma dois. Ouvi dizer que ela está no Programa de Assistência Social.

    — Os pais dela morreram quando ela era pequena, num acidente com um portão, e ela cresceu num orfanato até o ano passado!

    — Sério? Eu ouvi por uma amiga da turma dois, mas dizem que ela tem um cheiro esquisito também. Ela senta lá no fundo, mas sempre que se mexe dá um cheiro azedo. Ha. E vive usando as mesmas meias.

    — Não deve ter água na casa dela.

    — Aff, que nojo.

    — Você ficou sabendo? A turma dois no primeiro período, na aula de Educação Física. Foram roubados.

    — Roubados?

    — Quando voltaram pra sala depois da primeira aula, todas as carteiras tinham sumido. Até os armários sem cadeado estavam todos abertos.

    — Mentira.

    — Mas sabe o que é mais assustador? Todo mundo estava em choque porque tinham perdido as carteiras, e a Ayeon Kang estava na porta dos fundos da sala… rindo.

    — Puta merda. Que horror.

    — Disseram que ela finge dor de barriga e vai pra enfermaria toda aula de Educação Física. Já dá pra imaginar, né?

    — …Foi a Ayeon Kang, com certeza.

    — Ayeon. Pode ser sincera comigo? Por que você fez isso? Se precisava de alguma coisa…

    Não fui eu.

    — Sim, senhorita Hwang. Por mais que eu perguntasse, ela negou até o fim. É que… a Ayeon não tem pais. Se ela já tá assim agora, imagina como vai acabar sendo… Também estou com dor de cabeça. Tá certo, eu vou tentar convencê-la primeiro. Isso, isso. Tá certo.

    …Não fui eu.

    — Ayeon, é verdade que você foi avaliada como rank S?

    — Você tem tempo depois da aula hoje? Eu vou num café com uns veteranos da escola vizinha, e eles pediram pra eu te levar.

    — Ayeon, vamos fazer pulseirinhas da amizade?

    — Aqui. Os resumos das anotações. Só tô mostrando pra você.

    — Somos melhores amigas.

    — Nossa escola apareceu na TV graças à Ayeon. Estou realmente tão orgulhosa da nossa Ayeon.

    — Então, Ayeon. Eu queria perguntar. Você poderia ajudar um pouco no vídeo promocional da escola? Se não se importar. Acho que seria ótimo se a Ayeon aparecesse no vídeo.

    Você representa a nossa escola. Ayeon. Nossa Ayeon. Ayeon. Ayeon Kang…

    Tap, tap…

    As poucas gotas de chuva começaram a engrossar. Os pingos pesados começaram a bater impiedosamente contra a pele de seu rosto.

    …Cof.

    Ela tossiu. Um gosto amargo se espalhou por toda a sua língua. Ao piscar devagar, a pressão em sua bochecha aumentou.

    — Entrega logo. Os itens.

    Aperta.

    A sola do sapato contra sua bochecha parecia úmida. Não, talvez fosse a textura do asfalto molhado. Ayeon ergueu a cabeça devagar do chão e encarou Verde, que a olhava de cima.

    — …Não quero.

    Smack!

    Verde chutou a cabeça de Ayeon como se fosse uma bola. Com tanta força que seu cérebro inteiro chacoalhou. Sua visão mudou drasticamente. Mas Ayeon não conseguia fazer nada.

    “Fui… complacente demais…”

    Ela nunca imaginou que o último caçador seria um Bloqueador. Já tinha ouvido falar de Bloqueadores, mas nunca vira um pessoalmente. Eles anulavam algumas habilidades do inimigo. Era conhecido como cancelamento, mas na verdade era mais parecido com bloqueio. Ela não sabia o princípio, já que cada bloqueador tinha um método diferente de atingir sua condição. Mas achava que a condição daquele caçador seria…

    “Flechas.”

    Era bem provável que houvesse algum tipo de veneno na ponta da flecha que bloqueava as habilidades. Ela ficou tão focada nos cães invocados que avançaram contra ela, que não conseguiu desviar da flecha. Desde que ela a roçou, as habilidades de Ayeon estavam seladas.

    “Embora seja tarde demais pra perceber isso agora.”

    O que determinava os vencedores numa batalha entre caçadores eram o rank, a natureza e a informação. O mais fundamental era conhecer o inimigo e esconder a si mesmo para vencer. Isso também funcionava em lutas contra monstros. Mas Ayeon tinha sido complacente demais. Confiou demais em seu rank. Não queria admitir, mas esse foi o motivo de sua derrota. Ayeon olhou para frente com os olhos desfocados.

    【Traço ▶ Movimento Ágil ativado.】

    【Falha.】

    【Anomalia de Status: Silêncio. Uso de habilidades ou traços restrito. Tempo restante: 5:49】

    Ainda faltavam cinco minutos, mas se ela atordoasse o Bloqueador, sua Anomalia de Status desapareceria. Isso significava que talvez houvesse uma chance de vencer. Mas o Bloqueador estava com dois colegas. E, se contasse também os cães invocados, Ayeon estava contra dez ou mais inimigos. Enquanto todos estivessem de olhos abertos, não seria fácil se aproximar do Bloqueador e atordoá-lo. Ainda mais com suas habilidades seladas.

    — Lembrei — murmurou o Bloqueador. — Fiquei pensando onde já tinha visto ela, mas é aquela que apareceu no noticiário uns anos atrás.

    — No noticiário?

    — É.

    O Bloqueador pegou o celular e procurou algo. Então, mostrou a tela pros colegas.

    — Olhem. A quarta rank S da Coreia.

    — Eh, acho que o rosto dela tá diferente…?

    — Não. Olhem direito. É ela.

    Eles compararam o rosto da menina na tela com o de Ayeon. Um dos traços de Ayeon, Perturbar, podia confundir os outros não só em batalha, mas também no dia a dia. Assim, ela conseguia impedir que reconhecessem seu rosto com precisão. Mas suas habilidades tinham sido seladas, e o efeito devia ter sumido. Verde estava encarando o rosto enlameado de Ayeon quando avançou até ela.

    — Essa é você?

    — …

    Ayeon não respondeu. Verde continuou fitando seu rosto enlameado, até que deu uma risada como se achasse aquilo engraçado.

    — Haha, ver você se revirando na lama com esse seu hábito imundo de mexer nos bolsos dos outros.

    Swip.

    A voz se fixou nos ouvidos de Ayeon.

    — Os ranks S coreanos são mesmo obras-primas. Agora entendo por que o Maestro largou a Coreia e foi pros Estados Unidos.

    Smack!

    Ele voltou a chutá-la assim que terminou de falar. Ayeon aguentou sem emitir nem um gemido.

    “Aff, que tédio.” Ela conseguiu ouvi-lo estalar a língua mesmo com o som da chuva forte. Devem ter ficado entediados, já que ela nem reagia. Então ele parou de repente, e…

    — …Com o Sol da Meia-Noite um morto-vivo, os jovens ranks S da nova geração são assim? Que pena dos coreanos.

    Click, click.

    Os sons do obturador da câmera continuavam. Ayeon não se mexia; só moveu os olhos para encará-los. Eles estavam tirando fotos. Fotos de uma caçadora coreana rank S coberta de sangue e rolando na lama.

    — Tô curioso pra saber quantos likes essa foto vai render.

    Click, click, click…

    Os cliques da câmera não paravam. Ayeon os observava com o olhar vazio, até notar uma sombra estranha atrás deles. Um transeunte tinha parado e os observava.

    Swish.

    Verde se virou num estalo.

    — O quê?

    A pessoa se encolheu e escondeu o rosto sob o guarda-chuva como se não tivesse visto nada.

    Tap…

    Seus passos foram se afastando. O guarda-chuva vermelho não olhou para trás uma vez sequer, até virar um pontinho e desaparecer.

    — …

    Ayeon riu em silêncio, deitada na lama suja. Não esperava nada. Nada mesmo. A maioria das pessoas nunca toma partido por um estranho, a não ser que tenham algo a ganhar ou um objetivo próprio. Isso era perfeitamente normal. Porque…

    “Eu também era assim.”

    — _____

    Ela já não ouvia mais o que os caçadores estrangeiros idiotas diziam. Barriga, costas, ombros. Continuavam a chutá-la. Ayeon fechou os olhos devagar.

    — …rde, aquela mulher ali…

    — …nhece ela? …finge que vai embora.

    Os pés que chutavam Ayeon sem parar finalmente cessaram. O que está acontecendo? Quando ela ergueu lentamente as pálpebras…

    Click…

    Sapatos pretos se aproximavam. Estavam limpos, sem nenhum traço de lama, apesar do tempo. Ayeon levantou os olhos como se estivesse enfeitiçada.

    Chuva torrencial. Um céu noturno negro como tinta. Debaixo da sombrinha negra como breu…

    — …

    Olhos ainda mais negros que os dois.

    Ayeon tentou mover a boca. — …Unn, ni?

    Talvez fosse só um pressentimento, mas ela achou ter visto um brilho dourado passar levemente pelas íris negras.

    — Ei, você. Eu falei pra não se meter. Não tá ouvindo?

    Splash…

    A chuva aumentou. Pra Ayeon, a vida era assim. Algo frio, egoísta e pragmático.

    — O panfleto. Vim devolver.

    Mas, de algum jeito…

    — Eu também decorei tudo.

    Talvez nem sempre fosse assim.

    Um pequeno gesto, um grande impacto!

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