Índice de Capítulo

    Já fazia um mês e meio desde que Eunha entrara no Centro de Treinamento. Sob as nuvens baixas, ela não parou de treinar naquele dia até que o espantalho fosse destruído.

    — Bom trabalho.

    Woncheol Gyeon, o general do acampamento, já estava ali há um tempo e falou com ela pelas costas, como se soubesse que Eunha continuaria ali até aquela hora para treinar. Ele lançou um olhar ao pobre espantalho reduzido a um monte de cinzas.

    — O intendente do Exército vai reclamar de novo.

    Apesar do tom de repreensão, ele jogou uma maçã brilhante na direção de Eunha. Ela a pegou por reflexo e a encarou, e ele sorriu enquanto dizia:

    — Você pulou o jantar de novo.

    Só então Eunha percebeu que o sol já havia se posto. Quando ergueu o queixo para olhar o céu, ele estava repleto de estrelas que não se podiam ver em Seul.

    — …Obrigada. — Eunha fez uma breve reverência e deu uma mordida na maçã. A doçura moderada e a textura crocante preencheram sua boca ressecada.

    — E aí?

    — Doce e deliciosa.

    — Né? — Woncheol riu. Eunha deu outra mordida na maçã madura e também sorriu sem perceber.

    Os dois se sentaram lado a lado, sem saber quem se sentou primeiro, e ficaram encarando o céu noturno por um bom tempo.

    Woncheol desviou o olhar de repente. A mão de Eunha, segurando a maçã já só com o cabinho, estava coberta de cicatrizes à primeira vista. Com o treinamento constante, a quantidade de feridas só aumentava, a ponto de sua regeneração não conseguir acompanhar. Ele olhou para aquela mão maltratada e comentou com um suspiro:

    — Parece que você nem consegue segurar os hashis com essas mãos.

    — …

    Eunha olhou para sua mão com indiferença e a escondeu nas costas, junto com o cabo da maçã.

    — Tem algum motivo pra treinar tão intensamente assim? Mesmo que não queira, vai acabar tendo que arriscar a vida quando esse treinamento acabar.

    — Não é só a minha vida que vou arriscar quando sair daqui.

    Ela queria terminar ali todos os preparativos que pudesse. Porque não queria mais ver ninguém morrendo diante de seus olhos.

    — Mas você precisa saber cuidar de si mesma. Esse também é o nosso dever. Setembro de 1997, o dia em que o mundo mudou. Nós sobrevivemos.

    — …

    Eunha abaixou os cílios em silêncio. Insetos cujo nome ela não conhecia escavavam o solo seco e sem água.

    Setembro de 1997. Como esquecer o pesadelo daquele mês? Eunha reviveu as memórias que jamais poderia apagar e se ergueu lentamente.

    — Não tenho tempo pra ficar assim.

    Agora ela tinha o poder de matá-los. Então precisava aprimorar esse poder e, no fim, eliminar aqueles…

    — Eu disse que também perdi minha filha naquele dia.

    Ela ouviu a voz de Woncheol atrás de si.

    — …

    Eunha parou no lugar.

    Um vento seco soprou entre eles. Seus cabelos esvoaçaram na mesma direção. Ele tirou um maço de cigarros do bolso da frente e colocou um grosso entre os lábios.

    Pssss.

    Com o som do isqueiro, ele voltou a falar.

    — Houve um redemoinho sinistro depois que a casa desabou, e minha filha, que estava lendo deitada na sala, foi sugada por ele. Diante dos meus olhos. Como água indo pelo ralo — murmurou Woncheol.

    Ao ver a filha pequena sendo engolida por um portão bem diante de si, ele arriscou a vida e jogou o corpo dentro do vórtice. Lá, encontrou um monstro do tipo demônio empunhando uma foice, e despertou de repente diante da janela do sistema que surgiu um instante antes de sua morte.

    — Graças a isso, eu sobrevivi… Mas no fim, não consegui salvar minha filha — acrescentou com um sorriso triste. Sua esposa entrou em choque com a morte da filha, adoeceu e se suicidou, e ele passou a ignorar o filho — o único membro da família que restava —, afundando-se no álcool.

    — Achei que minha vida tinha acabado ali. Achei que não podia piorar.

    Eunha também. A morte repentina da mãe. Ninguém estendeu a mão para ela, que perdeu a casa, a família e o sonho de uma só vez.

    — Pensei que era melhor morrer lutando contra um monstro, com um buraco no estômago, do que viver daquele jeito — disse Woncheol, depois ergueu a cabeça.

    — Mas um dia, meu filho chegou em casa com um formulário de inscrição todo amassado.

    A escola onde ele estudava havia sido fechada por tempo indeterminado, e ele nem podia estudar em casa. Havia recebido o formulário da escola pouco antes de todo o pesadelo começar.

    — Disse que queria ser bombeiro. Um herói que ajuda pessoas em perigo. Esse era o sonho da irmã, então ele queria realizar por ela.

    Diferente de Woncheol, que havia despertado antes de qualquer um no dia do desastre, o filho dele não havia despertado. E como alguém não desperto não podia ser caçador, ele queria se tornar bombeiro para salvar pessoas quando a paz voltasse.

    — Aquele garoto é melhor do que eu. — Ele sorriu e soltou uma baforada. A coisa pungente e áspera que saiu de sua boca remexeu seu peito e se dispersou no ar.

    Eunha não sabia o que dizer. Apenas escutou, em silêncio.

    — Ver você é como me ver naquela época. Mas sabe…

    Ele apagou o cigarro pressionando-o contra o solo depois de um momento de silêncio, então abriu a boca com um tom mais leve.

    — Mas as pessoas… A vida das pessoas é como árvores. Elas perdem suas folhas, uma a uma, cada vez que o vento sopra forte. Então talvez só reste os galhos secos quando o inverno vier frio e cruel demais. Mas Eunha, espero que se lembre disso — ele acrescentou, baixinho.

    — …

    Eunha fechou os olhos… e depois os abriu de novo, devagar. O que ele tinha dito, afinal? Ela não conseguia se lembrar com clareza. Mas ele havia sorrido. Mesmo sob o céu em preto e branco, ele apenas sorriu.


    Um corredor cheio de coroas brancas.

    Eunha estava absorta em pensamentos quando levantou a cabeça lentamente.

    — Funeral…

    Falecido: Woncheol Gyeon / Enlutado principal: Ducheol Gyeon

    Eunha encarou o nome ‘Woncheol Gyeon’ por um tempo e tirou os sapatos devagar.

    Ela entrou, mas não havia nenhum enlutado à vista. Talvez porque já fosse tarde e a maioria já tivesse feito sua visita, ou talvez ele simplesmente não tivesse muitas pessoas para visitá-lo desde o início, como a mãe de Eunha.

    Uma mesa desatendida. Um livro de visitas estava aberto sobre ela. Quando Eunha lançou um olhar, só duas pessoas haviam assinado antes dela.

    “Por quê?”

    O general era altruísta e atencioso. Mesmo na época do centro de treinamento, muitos de seus colegas realmente o respeitavam. Eunha era uma dessas pessoas. Então por que havia tão poucos enlutados em seu funeral? Eunha achou estranho, mas pegou a caneta para assinar o livro. Porém…

    — …

    Ela congelou.

    Eunha Cha. Ela não conseguia escrever essas duas palavras. Sua mão não se movia. Só então Eunha se lembrou das restrições que havia esquecido. De como teve seu nome roubado quando assinou o contrato com o gato.

    — Você é…

    De repente, ela ouviu uma voz baixa atrás de si. Eunha estava paralisada como uma estátua com a caneta na mão quando se virou rapidamente para o som. Era um homem de meia-idade que ela nunca tinha visto antes. Para alguém que devia estar de luto, sua roupa era…

    “Roupa de bombeiro?”

    Roupas laranja brilhantes. Era definitivamente um uniforme de bombeiro. Mas a braçadeira com listras pretas no braço esquerdo era um sinal claro de enlutado principal. Então ele devia ser…

    — Meu pai gostava mais dessa aqui.

    Lendo o olhar nos olhos de Eunha, ele sorriu sem jeito e tocou as próprias roupas. Seus olhos eram iguais aos do general. O homem à sua frente era definitivamente seu filho. Aquele que perdera a irmã no incidente do portão, e depois também perdera a mãe, que não suportou a dor. O jovem filho que levara a ficha de inscrição para se tornar bombeiro em vez de caçador agora era um homem de meia-idade vestindo um uniforme de bombeiro empoeirado.

    — …

    Eunha hesitava sobre o que dizer diante dele. ‘Que ele descanse em paz’, nem mesmo conseguiu dizer essas palavras formais. Porque…

    — Certo. Eu estava a caminho de me encontrar com o Instrutor Jang. Você deve se lembrar. Que tal? Venha comigo, se não estiver ocupada.

    Se ela não tivesse fingido não conhecer o general naquele momento, se não tivesse recusado seu convite…

    …Ele talvez ainda estivesse vivo.

    Ele sorriu suavemente para Eunha, que piscava em silêncio com a caneta na mão.

    — Se eu soubesse que alguém viria, teria vestido uma roupa de luto decente — Falou como se não esperasse que ninguém viesse. — Meu pai dizia para mim e para quem estava por perto, como um hábito, que queria que ninguém viesse ao seu funeral quando morresse.

    — Por que… — Quando Eunha murmurou em voz baixa, os olhos do homem, que pensava no pai, afundaram profundamente.

    — Quando era mais jovem, meu pai sofreu por muito tempo com a culpa de empurrar pessoas inocentes que nada sabiam para o perigo.

    — …

    — Seus antigos alunos que morreram miseravelmente nos portões, e seus colegas que fecharam os olhos sozinhos em terrenos frios e nunca voltaram para suas famílias. Ele dizia que não tinha o direito de deixar este mundo com todas as despedidas deles…

    Eunha ficou em silêncio, ouvindo calmamente as palavras do homem. O general que Eunha conhecia certamente teria dito algo assim. Quando pensou nisso, o funeral vazio pareceu ainda mais solitário.

    O homem sorriu como se quisesse aliviar a atmosfera pesada e se virou.

    — Gostaria de vir por aqui? Não precisa escrever no livro. Está tudo bem. Como pode ver, não tem ninguém aqui. — Ao se virar, acrescentou: — E eu também estou vestido assim. — Ele também sinalizou com os olhos como se dissesse para ela o acompanhar. Seu tom e atitude eram como se soubesse quem era Eunha.

    Eunha largou a caneta e decidiu segui-lo por ora.

    O som do atrito das roupas cortava o silêncio. Ao entrarem, também não havia ninguém. Só os poucos incensos no incensário provavam que alguém havia feito uma visita.

    Um único retrato descansava no centro das ricamente decoradas flores brancas de crisântemo.

    “Senhor.”

    Eunha encarou o general do acampamento como ela se lembrava, mais jovem. Aproximou-se do incensário devagar, pegou um incenso e o acendeu com a vela acesa. Foi então que percebeu que sua mão tremia levemente. Quando segurou o incenso com as duas mãos e cuidadosamente o colocou no incensário, a fumaça branca subiu suavemente. Eunha olhou novamente para o retrato acima dela.

    — Obrigado.

    Ela ouviu uma voz baixa ao lado. Era o filho de Woncheol. Eunha percebeu um pouco tarde que não havia cumprimentado adequadamente o enlutado principal. E também não havia assinado o livro.

    — Ah, eu sou…

    No momento em que molhou os lábios para se apresentar com um pouco de atraso, ele a interrompeu como se não fosse necessário. — No dia em que meu pai faleceu, ouvi por telefone que ele encontrou você.

    …Ah. Eunha soltou um leve gemido e fechou a boca. Ao que parecia, ele realmente sabia quem ela era.

    Enquanto pensava no que dizer, o homem manteve o sorriso e falou suavemente. — Ele parecia muito animado, coisa que não acontecia havia tempos. Era compreensível. Encontrou por acaso a aluna que mais amava depois de décadas.

    — Entendo.

    — Sim. Vi um programa com você na TV alguns meses atrás. Estava com meu pai. Lembro que era um especial sobre caçadores de conceito.

    Um especial sobre caçadores de conceito. Eunha com certeza tinha aparecido num programa assim. Não como Eunha Cha, mas como a Princesa da Chama Negra.

    — Meu pai fez o maior estardalhaço depois de ver aquele programa. Pulou do sofá e ligou para a emissora. Embora não tenha conseguido seu contato… descobriu que seu nome era Yura Lee. Não era o nome que ele lembrava. Mas ele disse que nomes não importam.

    Ele sorriu com brilho nos olhos.

    — ‘A menina não mudou nada. Isso basta…’ ele disse.

    Ele sorria com tanta ternura que era difícil acreditar que havia perdido a única família. Era como ver o general de sua memória. Talvez por isso…

    — Me desculpe. — Eunha se desculpou de repente com ele. Pelo quê? Talvez por tudo. Por algum motivo, era difícil encará-lo nos olhos, e Eunha baixou o olhar. Sentia o olhar dele sobre si por um longo tempo.

    — …Só três pessoas vieram aqui hoje.

    Uma era a estudante do ensino médio que seu pai havia corrido para salvar, outra era a mãe daquela estudante, e a última era Eunha. Os poucos enlutados disseram a mesma coisa.

    — Todas as três se desculparam comigo.

    — …

    — Mas é meu pai quem deveria se desculpar comigo. Por ter me deixado sozinho sem nem dizer adeus. Você não acha? — ele sorriu levemente. — Mas acho que você não precisa se desculpar. Nem vocês, nem meu pai.

    Seus olhos se voltaram para o retrato sobre a fumaça branca.

    — Eu não sou caçador nem Desperto, mas vou viver como meu pai viveu daqui em diante. Porque ele foi o melhor caçador para mim — acrescentou.

    Foi quando uma voz semelhante passou pelos ouvidos de Eunha.

    — As pessoas são como árvores. Perdem suas folhas uma a uma sempre que sopra um vento forte. E talvez fiquem só com galhos secos quando chegar um inverno insuportavelmente frio e rigoroso.

    …Ah.

    Parecia que sua mente nublada começava a clarear aos poucos. Eunha piscou devagar. As memórias que havia esquecido finalmente inundaram sua mente como a maré.

    — Mas Eunha. Ainda assim, se as raízes estiverem fincadas ali, se estiverem firmes…

    Ela encontrou o olhar do homem. A fumaça branca do incenso envolvia os dois.

    — …Elas florescerão novamente na primavera seguinte.

    — Para mim… — Eunha abriu os lábios lentamente. — Ele também foi o mesmo para mim.

    Um pequeno gesto, um grande impacto!

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