A experiência de retornar ao mundo, sempre era estranha, mas dessa vez, parecia mais fácil, não precisando ficar por minutos me adaptando ao mundo visto por duas óticas diferentes novamente. 

    A percepção de Aigle sobreposta à minha, fazia parecer que o mundo fosse um amontoado de imagens translúcidas em uma única folha. Senti o ar frio do quarto fluir pela minha pele. Por algum motivo, já estava de noite e a lua lá fora parecia cada vez mais cheia e linda.

    ‘Enfim, retornamos…’

    ‘O que… o que é isso?’ A voz atravessou os meus pensamentos. ‘Essas partículas flutuando… brilhante…’

    Notei um feixe de luz pálida que entrava pela janela suja, iluminando as partículas de poeira que dançavam no ar. Para mim, era apenas um sinal da má limpeza do lugar. Mas para Aigle, que só conhecia a escuridão absoluta e os reflexos prateados do mundo da mente, era um espetáculo de estrelas em miniatura.

    “Ah, isso é basicamente poeira, sujeira”, respondi em voz baixa, o som da minha própria voz vibrando no meu peito, o que gerou outra onda de curiosidade confusa vinda dele. “Partículas minúsculas de sujeira, pele, tecido. Todo tipo de sujeira ou restos minúsculos.”

    ‘É… caótico’, Aigle concluiu, sua percepção se expandindo para abranger os sons distantes do parque e da rua, o rangido do assoalho abaixo da cama, o cheiro de mofo emanado pelas paredes. ‘Tudo acontece ao mesmo tempo. Como você consegue focar?’

    Parando por alguns instantes. Pensei na melhor resposta, tudo ainda era novo, não tinha muitas coisas que eu pudesse fazer para deixar a explicação mais fácil, então apenas soltei palavras vagas.

    “Você se acostuma. O cérebro aprende a filtrar o que não é importante.”

    ‘Nada parece não ser importante’, rebateu, pude sentir sua admiração genuína. Aquilo me fez perceber o quão dessensibilizado eu havia me tornado. Para sobreviver, eu havia me fechado para o mundo. Aigle, por outro lado, estava se abrindo para ele pela primeira vez.

    Olhei para o vazio do chão por alguns instantes, alterando suavemente minha feição, mas no fim, não consegui sorrir. Então apenas trouxe um tom melancólico.

    “É. Pode ser que sim.”

    Meu corpo doía, sentindo contrações involuntárias nas coxas e panturrilhas, tentei me levantar apoiado com a mão esquerda na parede. Durante esses últimos dias, ficar deitado por tanto tempo também tinha os seus males. 

    ‘Preciso saber mais sobre os adormecidos…’

    Caminhei com cuidado até próximo à janela, lá, a penumbra da noite tomava forma, dia após dia a lua ficava mais cheia. No entanto, esse não foi o único evento para se notar. 

    No fundo da minha consciência, abaixo até mesmo da influência de Aigle, murmúrios começaram a surgir. Como um chamado para algo extraordinário, mas também mortal.

    ‘Damian… a fenda está crescendo…’

    ‘Então a resposta para os meus mistérios está na lua? Mas por quê? Qual é o sentido disso?’

    Fechei as cortinas e rapidamente os murmúrios cessaram, parecia até proposital. Soltei um longo suspiro enquanto reunia forças, para ir até a porta, tinha uma hipótese infundada, mas só talvez, poderia haver outra pessoa que recebeu essas habilidades estranhas, nesse hospital.

    Olhei de um lado para o outro antes de sair, me certificando que não havia nenhum indivíduo nos corredores dessa ala médica no momento, para minha surpresa, parecia ser a troca de turno, pois estava até que silencioso, se não fosse os beeps constantes. 

    Mas como eu descobriria? Simples, tinha o item perfeito para essa situação. Invoquei a máscara dos erros e a coloquei suavemente sob o rosto com a mão direita. Minha visão não mudou, embora parecesse que eu estava vendo tudo mais limpo.

    ‘Eu só preciso agir como um espectador.’

    Passei esperando encontrar algo de diferente, mas não havia nenhuma, pelo contrário, tudo estava tocado pela monotonia do comum. Nada de especial, nem uma única pista.

    ‘Ainda há alguns quartos que possamos passar. A fenda está crescendo cada vez mais, mesmo em seu ritmo lento, se eu fosse chutar para um acontecimento futuro, seria em torno de um ou dois dias, talvez menos…’

    ‘Quando a lua se tornar cheia, algo acontecerá…’

    ‘Por que não usa essa habilidade na lua?’

    Engoli em seco tendo calafrios, já havia descoberto algo que faria eu repensar em utilizar essa habilidade antes, por isso fiquei tanto tempo sem tocar nela. Afinal, eu só estaria cortejando a morte.

    ‘Há certas coisas que não podemos espiar… os efeitos disso podem ser fatais…’

    ‘Certo.’

    Avançado pelo corredor, meus passos mal produziam som sobre o linóleo frio e desgastado. A máscara em meu rosto parecia filtrar a realidade de uma maneira peculiar. Não era só um tipo de visão aprimorada em clareza. 

    Mas sim com um novo propósito. As texturas, as cores, todos os tipos de objetos, tudo parecia recuar para um segundo plano, permitindo que qualquer anomalia ou algo fora do padrão brilhasse com sua luz própria.

    ‘Hospitais, esses malditos lugares sempre conseguem ser mais triste do que o resto do mundo junto aos cemitérios…’

    Vi pessoas dormindo, ligadas a máquinas que apitavam em uma sinfonia mecânica da vida mantida por fios e tubos. Em um quarto, um homem idoso rosnava, seu peito subindo e descendo de forma regular. Em outro, uma mulher se virava desconfortavelmente em seu sono, com o mesmo rosto marcado pela dor que vi em outros.

    ‘Eles sonham?’ Sua curiosidade era uma correnteza constante sob a superfície dos meus próprios pensamentos. ‘O que acontece em suas mentes enquanto seus corpos repousam?’

    ‘Provavelmente, sim. Sonhos são como o seu mundo, Aigle, mas mais caóticos e sem sentido na maioria das vezes. Uma mistura de mistérios, medos e desejos inconscientes.’

    Mais à frente, percebi o quão desanimador seria essa procura. Talvez minha hipótese estivesse errada. Talvez eu fosse o único. Uma anomalia solitária neste lugar de sofrimento mútuo. 

    Estava prestes a desistir e voltar para o meu quarto quando algo me chamou a atenção. Era uma porta no final de um corredor secundário, ligeiramente entreaberta. Diferente das outras, esta não tinha uma janela de observação. Por algum motivo, ela estava quieta, com a ausência de som de máquinas que a distinguia das demais.

    Uma sensação sutil, como a calmaria antes de um relâmpago, eriçou os pelos da minha nuca. Com a máscara, essa sensação se intensificou, tornando-se um leve zumbido visual na periferia da minha visão, concentrado naquela porta.

    ‘Ali, há algo diferente.’

    Me aproximando com cautela. Empurrei a porta milímetro por milímetro, enquanto o rangido das dobradiças parecia um trovão no silêncio. Dentro, o quarto era permeado pela penumbra pouco iluminada pela luz lunar que também banhava o meu. 

    ‘Estranho…’

    Olhei de um lado para o outro, discernindo o que estava acontecendo, não havia monitores cardíacos ou ventiladores. Apenas uma cama simples e, nela, estava aquela mesma garota me observando.

    ‘Ah merda…’

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