Capítulo 3 — Espada
『 Adormecida Aurora, bem-vinda à sua primeira provação. 』
Quando percebi, o ambiente ao meu redor já não era mais a sala de aula. O som de canetas rabiscando o papel, dos ataques de tosse involuntários provocados pelo frio.
Nada. Tudo se foi.
“Merda, eu dormi logo na hora da prova? Que situação fodida.” Não consegui sequer terminar a prova que tanto estudei por ter dificuldade na matéria.
Mas… Uh?
‘Eu escutei uma voz antes, o que ela falava mesmo? Era alguma coisa… adormecida?’
Me peguei indagando mais dúvidas que não gostaria de ter. Olhei ao redor, tentando absorver o que meus olhos enxergavam.
Não era a sala nem algum lugar da escola. O chão sob meus pés era frio e úmido. Parecia que estava pisando em uma água escura que nunca havia visto. À minha frente, tinha uma parede negra que se estendia para cima até se perder numa escuridão impenetrável.
Um arrepio percorreu minha espinha, não era de frio. Conseguia enxergar tudo normalmente, entretanto, não havia nenhuma fonte de luz.
‘Onde eu estou? Como vim parar aqui? Isso é definitivamente um sonho…’
Tentei me beliscar, esperando acordar de volta a carteira da sala, talvez com um pouco de baba no caderno, mas a dor era real. A água continuava fria e ondulante sob meus pés.
‘Por que isso?’
“Adormecida Aurora…”, repeti em voz baixa, ecoando levemente no silêncio opressor. Definitivamente era o meu nome. Mas por que ‘adormecida’? E que brincadeira de mal gosto era essa de provação?
Ainda me lembrava da voz que soava distante, quase mecânica, mas com um tom de solenidade que me deixava ainda mais inquieta.
『 Gerando primeira provação… 』
“O que está acontecendo?” Minha voz já soava mais desesperada.
Notei que aos poucos, a água começou a ondular ainda mais, como se sofresse uma espécie de interrupção, algo estava sendo jogado na água… Ou melhor, algo estava emergindo dela.
Primeiro, vi apenas bolhas subindo à superfície, estourando com um som sibilante. Em seguida, formas estranhas começaram a se erguer lentamente da água escura. Pareciam figuras humanoides, mas distorcidas, feitas de uma matéria que parecia ser a própria escuridão líquida. Não tinham rostos, apenas contornos vagos onde deveriam estar os olhos e a boca.
Recuei instintivamente, a água gelada subindo um pouco mais pelos meus tornozelos. O medo apertou meu peito com força. Eram quantas? Cinco? Dez? Mais delas surgiam a cada segundo.
De repente, o mundo se dissolveu em um único ponto de tinta, fechei meus olhos pela luz que estourava o ambiente…
E a voz estranha retornou.
『Primeira provação: Vale das Lâminas Esquecidas.』
“Ah uhhh.” Tentei desesperadamente respirar, parecia que algo estava me sufocando, uma forte falta de ar.
Abri desesperadamente os olhos e vi o céu. Um céu cinza diferentes tons da aquarela. Não tinha sol, era apenas…
‘Um inferno…’
Forcei meu corpo para se sentar. O ar que entrava em meus pulmões era pesado, carregado com um forte cheiro metálico, como ferrugem e sangue seco. Olhei para baixo. Eu não estava mais na água, mas sim sobre um chão de terra batida e rachada.
Uma terra de onde repousavam diversas espadas, facas, lanças e todos os tipos de armas com lâminas que eu podia imaginar. Estavam fincadas no chão em ângulos estranhos, algumas inteiras, outras quebradas, mas todas cobertas por uma grande camada de poeira e ferrugem. Isso parecia mais um…
Cemitério de armas.
Horrorizada, observei melhor o campo. O lugar se estendia até os limites da minha visão, era um campo de batalha abandonado há eras.
‘Esse maldito céu, parece tão melancólico…’
Não havia árvores, nem rios, apenas terra seca e metal morto. O silêncio era quase opressor, senão fosse pelo som ocasional do vento assobiando entre as lâminas presas no chão.
Me levantei com cuidado, sentindo uma dor surda em todo corpo.
“Aaah!” Senti espasmos de dor nas panturrilhas.
Minhas roupas eram as mesmas da escola, agora sujas e um pouco rasgada, totalmente contraditórias para aquele cenário desolador. Eu estou sozinha? Olhei em todas as direções.
Ba…Thump! Ba…Thump!
Meu coração batia descompassado. O tal vale parecia ser um enorme deserto, mas a sensação de estar sendo observada era inescapável. A tal provação havia iniciado.
“Mas qual é o objetivo? Sobreviver? Encontrar algo? Lutar?”
Aquela maldita voz… não havia dado nenhuma instrução, além do nome do lugar. Dei um passo hesitante, o som do meu pé na terra seca soava como um trovão naquele silêncio sepulcral. Cada lâmina ao meu redor parecia um monumento silencioso a uma batalha perdida.
// a uma batalhada?
Dar um passo para trás, foi um erro terrível…
Meu pé direito não encontrou terra firme. Em vez disso, um som nauseante de carne sendo perfurada ecoou no silêncio, seguido por um estalo seco. Uma dor inimaginável, aguda e lancinante, explodiu na sola do meu pé, subindo pela perna como fogo líquido.
“Aaaaaaah!” Gritei, mas o som saiu estrangulado pelo choque de dor e agonia, que fez meu corpo desabar no chão de poeira.
‘Dói… dói muito merda!’
Com os olhos turvos de lágrimas e pânico, virei a cabeça. Ali havia uma adaga curta e enferrujada, quase totalmente enterrada na terra seca, havia atravessado a sola do meu tênis e perfurado meu pé de lado a lado.
A ponta metálica e suja de terra e ferrugem apontava para o céu cinzento, gotejando o meu sangue, vermelho e vivo, contra a paisagem morta.
A visão era tão surreal quanto a dor. O mundo parecia girar. Senti náusea subindo pela garganta. O choque inicial deu lugar a um pânico avassalador. Ferida. Eu definitivamente estava ferida e não acordei. Isso era ainda mais avassalador.
‘Não é um sonho…’
Nada disso era um sonho. Eu estava ferida, no meio do nada, num lugar que fui transportada contra a minha vontade. Era uma situação irônica e cruel, com um tenso desespero, absoluto. Como eu poderia fazer qualquer coisa agora?
Como eu poderia sequer me mover?
Meu sangue já começava a formar uma poça escura ao redor da lâmina, a dor pulsava a cada batida do meu coração.
Ba… Thump! Ba… Thump! Ba… Thump!
‘Hoje… já faz 4 dias que estou aqui?’
Me levantei para mais um dia. Mesmo não sabendo quantos já haviam passados. Me espreguicei e segui em frente. Bom, durante esse tempo, descobri algumas coisas.
A primeira, sem sombra de dúvidas, era a mais travessa. Olhei para o meu pé, o mesmo que a alguns dias havia sido perfurado por uma adaga. Os ferimentos, todos os tipos de ferimentos.
Se curavam.
Claro que definitivamente não era um processo indolor… O primeiro dia, ou o que eu pensava ser o primeiro, foi um inferno de agonia e medo. Tive que reunir toda a coragem que eu tinha para agarrar a adaga enferrujada e puxá-la do meu pé.
“Esse momento foi definitivamente medonho…” falei comigo mesma.
O grito que dei, então, foi muito mais alto, ecoando por todo o vale silencioso. Quase desmaiei duas vezes no processo, mas a visão do buraco ensanguentado no meu pé me manteve terrivelmente consciente. Esperei por uma infecção… uma febre ou até mesmo meu fim.
Mas nada veio. Ao invés disso, no segundo dia, a dor desapareceu. O sangramento sumiu. A pele, antes rasgada, estava imóvel, como se o tecido tivesse se unido numa velocidade impossível. Pequenos cortes que fiz nos braços com outras lâminas, enquanto andava, também se fechavam quando o dia se passava.
Minha segunda descoberta, foi ainda mais impressionante. Eu já não tinha necessidades básicas. Não sentia fome ou sede. O ar pesado era tudo que eu consumia, e pelo visto, parecia ser o suficiente.
‘Isso até me distancia de tudo… Mas… Isso é definitivamente estranho, por que me colocaram aqui?’
A terceira era a mais assustadora. Uma grande monotonia opressora. Caminhei por dias, sempre com cuidado, embora acabasse me ferindo com as lâminas. O cenário não mudava. Apenas continuava aquela terra seca, o metal enferrujado, corpos espalhados pelo chão e o céu cinza que aos poucos parecia cair em uma… Noite.
A sensação de ser observava persistia, mas nada se revelava. Era algum tipo de prova de resistência? Prova de paciência?
Vez ou outra, olhava para o meu pé e uma nova determinação surgia. Se eu podia me curar, talvez eu não fosse tão indefesa. Talvez houvesse uma saída. Ou talvez, apenas talvez, eu devesse parar de andar sem motivo e começar a procurar o que quer que estivesse me testando.
Com essa fagulha de esperança, comecei a procurar uma lâmina, em meio ao ferro morto e desgastado que tomava conta do vale.
‘É hora de entender o significado desse Vale das Lâminas Esquecidas…’
Inicialmente, a busca por uma arma decente era frustrante. A maioria das espadas estava corroída demais, se partindo ao menor dos toques ou pesadas como chumbo. Punhais e adagas eram mais comuns em bom estado, mas pareciam insuficientes para enfrentar… o que quer que fosse.
Em algum momento, comecei a passar por inúmeros corpos esqueléticos, alguns ainda agarrados a seus escudos ou armas quebradas, testemunhas silenciosas de um antigo conflito brutal.
“O céu está escurecendo cada vez mais…”
Esse mesmo céu, que nos últimos só era tingido de um cinza constante, começou a escurecer de verdade, como se um manto pesado estivesse sendo lentamente puxado sobre o vale.
Não era uma noite estrelada, mas uma escuridão opaca, que engolia as cores e tornava as sombras mais profundas e enganosas. O vento também mudou, agora carregando consigo diversos sussurros indistintos que pareciam se arrastar entre as lâminas, fazendo-as vibrar com um zumbido baixo e ameaçador.
“Eu definitivamente estou sendo observada…”
Comecei a sentir uma pressão física nas costas, como se carregasse um grande fardo ou mochila. Perto dos retos de uma barricada improvisada feita de escudos quebrados e lanças partidas…
“Encontrei.” Um sorriso se formou no meu lábio.
Era uma espada grande, de lâmina reta e relativamente leve. A guarda era simples, o cabo era azul, o pomo dourado, com um guarda-mão também dourado. Mas havia algo nela que me chamava a atenção.
“O que seria isso?” Me peguei encarando ela só com uma mão.
Ela tinha entalhes estranhos na lâmina azuis, quase apagados pela ferrugem, mas ainda discerníveis.
‘Ela é leve… E também grande, acho que cairia bem, embora ela seja quase maior que eu…’
Senti um leve formigamento que subia pelo meu braço, diferente da dor dos ferimentos anteriores. Essa não era a melhor arma provavelmente, mas eu sentia que era a certa.
Vi meu reflexo na lâmina empoeirada. Um reflexo bem lamentável. Meu lábio estava ressecado e rachado. Meu cabelo havia crescido um pouco mais, mas o tom loiro em meio a terra só aparentava mais sujo. E meus olhos… Cinzas claros estavam como sempre.
Quando tudo havia se apaziguado, naquele breve instante, eu escutei a voz mecânica novamente.
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