『 Assimilando com a lâmina… 』 
     

    “Espera o quê?” Tentei desesperadamente soltar a lâmina com um susto. 

    Cambaleei para trás, depois novamente, enquanto uma dor que parecia rasgar o meu corpo diversas vezes crescia. Cada nervo parecia estar sendo rasgado, minha pele esquentou. 

    “AAAAAAH!” Os espasmos de dor começaram, o mundo parecia uma cacofonia de sons tingidos pelos meus gritos.

    Meus dedos pareciam grudados ao cabo azul. A sensação de formigamento que sentia antes se transformou em uma espécie de corrente elétrica violenta, subindo pelo meu braço, se espalhando pelo ombro e mergulhando em meu peito como garras incandescentes.

    A dor era diferente de quando perfurei meu pé, esta era mais profunda, mais invasiva, como se cada fibra do meu corpo estivesse sendo rasgada e refeita à força.

    O metal da lâmina começou a brilhar com uma luz fraca e azulada, os entalhes estranhos pulsar em sincronia com a agonia que me consumia. O calor na pele se intensificou ainda mais.

    Se transformando numa queimação que parecia vir de dentro dos meus ossos. Eu podia sentir meu sangue fervendo, meus músculos se contraindo involuntariamente em ondas de puro sofrimento. 

    ‘Assimilando? Que porra que eu estou assimilando?!’ A pergunta ecoava em minha mente em meio aos gritos que eu já não conseguia conter. A espada? Ela estava se fundindo a mim? Ou estava me devorando? A ideia era aterrorizante.

    O ar ficou ainda mais pesado, e o cheiro de ferrugem e sangue seco foi sobrepujado por um odor acre de metal queimado — minha própria carne. Enquanto o céu parecia cair numa eventual noite cada vez mais rápido. 

    Minha visão começou a falhar. Pontos negros dançavam diante meus olhos, e a escuridão crescente do vale parecia se precipitar sobre mim. Os sons ao redor, o vento, os sussurros, até meus próprios gritos.

    Tudo começou a se distorcer, se transformando em um zumbido ensurdecedor. Meu corpo convulsionou uma última vez, e então, a escuridão me engoliu por completo, mas a dor lancinante persistia. 

    A escuridão era absoluta. Pulsava com a dor residual, junto do eco mudo da agonia que me derrubou. Não sei quanto tempo se passou, se foram minutos ou horas. O tempo aqui parecia distorcido, medido apenas pela intensidade do sofrimento ou pela monotonia esmagadora. 

    “Vai… pro… inferno…” Nem forças tinha para falar direito, no mar de dores que residia no meu corpo. 

    Lentamente, a dor diminuia, como uma maré subindo. A primeira coisa que notei quando meus gritos cessaram, foi o silêncio. O zumbido ensurdecedor sumiu, substituído por uma quietude profunda. 

    A dor que me consumia, se extinguiu, deixando para trás um calor estranho e vibrante em meu braço direito, onde a espada ainda repousava.

    A ‘noite’ havia caído sobre o vale. Não era uma escuridão completa como pensei, mas o céu cinza agora era um veludo negro e profundo, que as incontáveis lâminas fincadas sob a terra pareciam absorver qualquer resquício de luz. 

    Ainda sim, eu conseguia ver. Não perfeitamente, entretanto, conseguia distinguir os contornos do terreno, as silhuetas das armas enferrujadas, embora tudo fosse delineado por um brilho azulado fantasmagórico. 

    ‘É lindo…’

    Olhei para o meu braço, esperando ver queimaduras horríveis. No entanto, não havia nada. Minha pele estava intacta, embora um pouco pálida. O cheiro de carne queimada também desapareceu, substituído pelo odor metálico constante do vale.

    ‘O que… aconteceu comigo?’

    Uma nova sensação começou a se infiltrar em minha consciência. Era… conhecimento. Não eram palavras ou imagens claras, mais como uma intuição, uma familiaridade com a espada em minha mão. Eu sabia seu peso, seu equilíbrio, como se tivesse treinado com ela por anos. E mais estranho ainda…

    Eu entendi que… Algo estava vindo dela. Uma presença fria, antiga e faminta por algo.

    A espada não era mais a mesma. O metal agora emitia uma luz azul suave, os entalhes, antes apagados, brilhavam intensamente, formando padrões complexos que pareciam se mover sob a superfície. 

    O cabo não estava mais grudado, agora, ele parecia ser se moldado à minha mão. Se tornou como uma extensão natural para o meu braço. Levantá-la não exigia esforço algum — era como mover o meu próprio braço.

    E, junto da espada, veio algo mais. Um zumbido baixo na minha mente, não de dor, mas com novas informações. Imagens fugazes, sentimentos, ecos de batalhas passadas, a sede de sangue da própria lâmina, agora temperada por uma nova conexão comigo.

    Eu sentia… o vale. Entendi que as outras lâminas, também tinham histórias silenciosas, e podia sentir algo mais. O rangido metálico que antes havia desaparecido na calmaria, cresceu.

    O mesmo som que ouvi antes de desmaiar. Estava mais perto agora. E na penumbra azulada, vi. Emergindo das sombras entre as armas caídas, se movendo com uma lentidão deliberada, diversas figuras. Não eram sombras vazias como da minha visão anterior.

    Eram feitas de metal enferrujado e ossos antigos, armaduras vazias animadas por uma vontade estranha, o local que deveria ser seus olhos, estava vazio, brilhando com a mesma luz azulada que agora emanava da minha espada.

    E aquelas coisas… Elas me viram. O rangido aumentou, e elas começaram a avançar, suas armas improvisadas — espadas quebradas, machados corroídos — arrastavam pelo chão. 

    “Isso só piora…” Disse para mim mesma em descrença. 

    Um certo tremor percorreu meu corpo, mas não era medo. Havia algo ali, uma corrente gelada de adrenalina misturada à estranha fome que emanava da lâmina em minhas mãos.

    A espada pulsou com mais intensidade, a luz azul dos entalhes se tornou mais viva, quase ávida. Era como se ela também os tivesse visto e estivesse ansiosa.

    Eram uns cinco ou seis, difíceis de contar na escuridão bruxuleante. Avançavam desajeitadamente, o metal rangia a cada passo, mas havia uma persistência assustadora em seu movimento. O mais próximo, um amontoado de peças de armadura que mal se mantinham juntas, ergueu um fragmento de alabarda enferrujado.

    A ponta irregular brilhava sob a luz azul fantasmagórica. Com um tipo de som gutural, de metal sendo moído, escapando de dentro do elmo vazio. Recuar definitivamente já não era uma opção viável.

    O vale se estendia em todas as direções, como um labirinto de perigos pontiagudos.

    ‘Para onde eu vou? Essas coisas parecem ter surgido do próprio chão…’

    Minhas mãos estavam geladas e apertei desesperada o cabo da espada. A familiaridade que a tal assimilação me deu era estranhamente reconfortante. Me lembrei vagamente de aulas de educação física, de movimentos básicos de ginástica bobos que nunca levei a sério.

    Agora, porém, instintos mais profundos, não totalmente meus, guiavam meus músculos. A figura mais próxima investiu, com um movimento mais rápido do que sua aparência decrépita sugeria.

    O fragmento de alabarda desceu em minha direção. Sem pensar, apenas reagi, movi meu corpo para o lado. A lâmina da espada em minha mão subiu, interceptando o golpe com um choque metálico que ressoou entre meus ossos.

    Faíscas voaram na escuridão. A força do impacto foi brutal, mas a espada absorveu parte dele, e a postura que adotei, quase que por instinto, me manteve firme.

    Por um instante, ficamos parados, metal contra metal. O brilho azul nos olhos da criatura parecia se intensificar, e eu senti uma onda de pura malícia emanando dela.

    “Huuuh…” Expeli ar violentamente dos meus pulmões. 

    O breve impasse se quebrou. A criatura de armadura, com um rangido agudo que parecia mais como um grito de fúria metálica, empurrou com mais força, tentando me desequilibrar.

    Mas a espada em minha mão parecia viva, e meus pés se moveram antes que eu pudesse pensar, girando levemente para dissipar a pressão. Aproveitando o movimento, a lâmina azulada deslizou pela haste da alabarda e, com um movimento rápido e preciso que surpreendeu até a mim mesma, cravei a ponta na abertura do elmo da criatura.

    Não houve sangue, apenas um som horrível de metal retorcendo e ossos secos se partindo. A luz azul nos olhos da armadura piscou erraticamente e depois se apagou. A armadura desabou com um estrondo. As peças se espalhando pelo chão poeirento, voltando a ser apenas um monte de ferro velho e ossos quebrados.

    Antes que eu pudesse processar o que acabei de fazer, ou como fiz, os outros soldados reagiram. Seus rangidos se tornaram mais agudos, mais agressivos. Dois deles avançaram simultaneamente, um brandindo um machado de batalha corroído e o outro uma espada longa e denteada.

    A fome da lâmina em minha mão pareceu se intensificar, enquanto eu transpirava cada vez mais, um pulsar frio e constante subia pelo meu braço. Não havia tempo para o medo, apenas para a ação ditada por instintos recém-descobertos.

    Me inclinei para frente, a espada azulada criou um arco defensivo que fez o machado do primeiro soldado ricochetear com um clank. Ao mesmo tempo, usei o impulso para me aproximar do segundo, sua lâmina longa buscava o meu flanco.

    Girei sobre os calcanhares, minha lâmina encontrou a dele num bloqueio que enviou vibrações dolorosas pelo meu braço, mas a conexão com a espada parecia mitigar parte do choque.

    O combate era caótico, um turbilhão de metal contra metal na penumbra azulada do vale. Cada movimento meu era uma surpresa, uma dança macabra que eu não sabia que conhecia.

    Eu não era uma guerreira. Isso eu sei. Sou apenas a Aurora, uma garota que mal passava nas matérias de educação física. Mas aqui, com esta espada em mãos, eu era algo. 

    Algo perigoso. E pela primeira vez desde que cheguei a este inferno forçado, uma forte vontade de sobreviver irradiou e superou o meu desespero.

    A criatura, com o machado, se recuperou rapidamente e tentou um golpe lateral visando minhas pernas. A espada em minha mão pareceu prever o movimento, me guiando a saltar para trás e, em seguida, avançar por baixo do arco da arma inimiga.

    A ponta da minha lâmina azul encontrou uma fresta na armadura peitoral do soldado, e eu a empurrei com toda a força que consegui reunir. Outro rangido, um estalo metálico, e mais uma pilha de metal e ossos caiu inerte. 

    Enquanto isso, o portador da espada denteada pressionou ainda mais, seus golpes eram desajeitados mas pesados. Bloqueei e desviei, mas a fadiga começava a pesar ainda mais, mas a estranha energia da espada me mantinha de pé, cada vez que eu bloqueava ou esquivava um pouco mais parecia melhor do que a anterior.

    Os soldados restantes, vendo seus companheiros caírem um por um, hesitaram por um momento quase imperceptível, seus brilhos azuis vacilaram. Essa breve pausa foi tudo o que precisei. Impulsionada por uma urgência fria, avancei contra o próximo.

    O vale se tornou um borrão de movimentos instintivos, o brilho azul da minha lâmina traçando arcos mortais na escuridão. Trouxe mais sons de metal se partindo, de ossos se quebrando.

    Um golpe de raspão abriu um corte em meu antebraço, a dor aguda, mas quase que imediatamente senti o familiar formigamento da cura começando, uma lembrança bizarra da minha ‘resiliência’ neste vale amaldiçoado.

    Finalmente, o último soldado tombou, sua luz azul se extinguiu como as outras. O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor, quebrado apenas pela minha respiração ofegante e pelo gotejar lento de alguma substância escura das armaduras destruídas.

    Fiquei parada, a espada ainda firme em minha mão, o brilho azulado refletindo em meu rosto sujo e suado. Meu corpo era um amontoado de dores, enquanto a adrenalina começava a diminuir, deixando para trás uma exaustão ainda mais profunda.

    Mas, em meio ao cansaço, cheguei a conclusão inconsciente.

    ‘Eu… matei algo…’

    Eu havia matado. Ou, ao menos, destruído algo. Senti ânsia, mas uma parte de mim, sentia uma satisfação sombria.

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