Capítulo 5 — Quadro
Tudo ocorreu tão rápido que eu não consegui processar direito o que estava vendo. Três segundos, foi o tempo para ela… Obliterar todos os inimigos com a sua lâmina impiedosa.
‘Quem é ela?’
Me vi encarando a figura por trás do espelho por mais tempo, aquela figura. A garota de cabelo loiro claro cheio de terra, por algum motivo ela parecia…
‘Triste.’
Seus olhos cinzas claros, apenas demonstravam uma enorme tristeza, como um fardo. Um fardo que ninguém nunca conseguia superar.
Ah, certo, eu já ia me esquecendo. Enquanto levantava novamente, observei os outros espelhos, cada um refletia ainda mais o absurdo. Nada parecia fazer sentido, o local que estava, por si só, parecia ser estranho o suficiente.
‘Que tipo de novel é essa? Eu simplesmente não me lembro…’
“Huh.” Com um suspiro, olhei para trás, o extenso corredor da ‘catedral’ dos espelhos, parecia ao mesmo tempo que abandonado, cheio de histórias.
Histórias de outras pessoas.
Dei alguns tapas na camisa que estava vestindo, a poeira acumulada por algum motivo, embora pouca, ainda era insuportável. Parecia até que eu era…
Atchim!
“Alergia.”
Essa era mais uma das coisas que aprendi sobre a pessoa de que me apossei do corpo. Isso tornava toda essa situação estranha, afinal, eu não seria considerado um morto vivo agora? Já que o meu próprio corpo que transmigrei tinha acabado de morrer.
‘Não.’
Damian não tinha acabado de morrer, eu definitivamente morri no lugar dele, mesmo que não soubesse como foi todo esse processo, isso era uma verdade incontestável que eu carregaria.
O ar parecia esfriar cada vez mais, e o eco do meu espirro ainda ressoava fracamente entre os espelhos. Olhei para minhas mãos e cerrei os punhos. A sensação sem sombra de dúvidas era real. Eram capazes de influenciar o mundo ao redor, mas não eram as minhas mãos.
De repente, notei que a poeira que havia tentado limpar da camisa parecia ter se assentado novamente — ou talvez fosse apenas o fato da poeira parecer onipresente nesse local esquecido.
Algumas vezes, enquanto olhava de novo para o espelho daquela garota, percebia que ela continuava imóvel. Talvez ela também carregasse a história de outra pessoa. Ou talvez fosse outra prisioneira deste labirinto de reflexos, como eu parecia ser agora.
‘Bem, isso é possível, não é?’
Finalmente, cheguei na bifurcação entre dois corredores opostos, na parede à minha frente, estava resguardada pelo tempo. Abandonada por sua cor. Mas persistia um quadro antigo.
‘O que eu faço? Para qual lado continuo?’
Minhas perguntas pareciam pairar no ar de tão densas que estavam se comparado àquela poeira. Cada espelho oferecia uma visão fantasiosa, mas nenhuma delas me dava uma resposta clara.
“Mas…”
O quadro, ele era simplesmente… Belo, mas também assustador. Fixei meu olhar nele. Aquela tinta escura e pastosa parecia ter sido aplicada com urgência, quase com um desespero palpável.
‘Quanto expressionismo.’
Senti um desconforto na nuca, como se algo pesasse e batesse constantemente. O rosto retratado no quadro estava quase que completamente obscurecido por grossas camadas de pigmento marrom e bege.
Como se tivessem tentado apagar a identidade ali representada, ou talvez proteger o que restava dela. Apenas um fragmento do lábio inferior e a curva de uma bochecha escapavam daquela massa caótica de tinta.
“É como seu eu estivesse olhando para alguém se afogar na lama…”
A expressão parecia perdida para sempre sob a superfície. Uma sensação de sufocamento emanava da tela, um aperto no peito que espelhava minha própria confusão.
Os borrões espessos, alguns escorriam como lágrimas de cera derretida, criando uma textura que simplesmente… Fazia cada poro do meu corpo se enrijecer. Definitivamente, o quadro tinha uma beleza perturbadora, com a sensação de algo quebrado, irremediavelmente perdido.
‘É muita coincidência? Esse quadro, por algum motivo, parece um reflexo distorcido da minha situação atual… Uma identidade apagada, um rosto que já não era nosso, um passado desconhecido…’
Desviei o olhar do quadro, sentindo uma pitada de frio percorrer a minha espinha. A imagem desse quadro, inevitavelmente, ficaria gravada em minha mente, pois era como um presságio das eventuais revelações que eu poderia obter.
‘Se é que existem revelações…’
A imagem nítida do quadro era como um presságio ou talvez apenas mais uma peça do enorme quebra cabeça sem sentido que se formou na minha mente.
Os dois corredores aos meus lados pareciam idênticos na penumbra, ambos submersos na escuridão a poucos metros de distância. Nenhum deles parecia seguro…
‘Para que lado eu vou?’
Eu precisava decidir logo, mas não tinha ideia alguma de como escolher. Observei o corredor da direita, depois o da esquerda. Ambos exalavam o mesmo silêncio frio, o mesmo juramento de incerteza.
Tentei escutar algum som, qualquer coisa que pudesse me dar uma pista, um indício. Nada. Apenas o eco distante da minha própria respiração e o palpitar surdo do corpo do Damian.
‘No fim… Eu só sou alguém que imita os outros, para tentar parecer quem não é…’
Recai meu olhar para o chão e recordei da visão daquela garota. Ela agia com alta precisão em suas decisões, numa rapidez avassaladora. Eu, por outro lado, parecia paralisado pela análise, pelo medo do desconhecido que cada opção representava.
Não havia como saber qual era o caminho ‘certo’. Talvez sequer existisse um caminho correto. Minha mão roçou a parede fria ao lado do corredor da esquerda. Uma leve corrente de ar, quase imperceptível, parecia dançar nos meus dedos.
‘Seria esse o sinal que tanto procurei? Ou é apenas minha imaginação tentando desesperadamente encontrar um motivo para agir?’
Fechei os olhos por um instante. E inspirei fundo. Quando os abri novamente. Soltei o ar e me virei para a esquerda. Se era para caminhar rumo ao desconhecido, deveria pelo menos ter o mínimo pretexto.
Dei meu primeiro passo, depois o segundo e o terceiro… O som do meu sapato batendo contra o chão parecia ecoar levemente no corredor escuro. Cada passo seguinte era um mergulho mais profundo na escuridão e no mistério daquele lugar.
‘O escuro daqui é bem mais denso do que eu achava…’
A pouca luz da bifurcação pouco a pouco se tornou uma lembrança distante atrás de mim. Tateei a parede de pedra ao meu lado, ela era fria e irregular sob meus dedos, enquanto a usava como guia.
A corrente de ar que senti antes persistia, como um sopro sutil, mas constante, vindo das profundezas à frente. O silêncio era quase absoluto, se não fosse quebrado pelos meus passos, o roçar da minha roupa contra a parede e a minha respiração.
Cada estalo, cada pequeno ruído parecia amplificar dez vezes mais. Meus sentidos estavam em alerta máximo, esperando por qualquer coisa.
‘Não encontrei nenhum obstáculo, som perigoso ou algum sinal de que eu estou aqui sozinho…’
A imagem do quadro ainda perpetuava vividamente na minha mente, quase como um pesadelo vivo. E, junto a esse pesadelo constante, o corredor parecia se estender indefinidamente no escuro.
‘Até quando essa escuridão vai durar?’
‘Será que a corrente de ar era realmente um guia? Ou seria só mais uma esquisitice desse lado apenas para me levar a lugar nenhum?’
A cada passo, a escuridão parecia ainda mais palpável, como se o próprio ar tivesse se tornado espesso e pesado. Meus olhos, embora já devessem estar acostumados à ausência de luz, não conseguiam discernir nada além da escuridão impenetrável à frente.
A parede que eu seguia era minha única certeza, uma linha áspera e fria no vazio. Ocasionalmente, meus dedos encontravam sulcos mais profundos, provavelmente marcas do tempo ou da própria construção rudimentar do local.
A temperatura também parecia cair sutilmente quanto mais eu avançava. A corrente de ar, antes quase imperceptível, agora era um fluxo constante e gelado que arrepiava a pele exposta dos meus braços e pescoço.
‘Isso não tem fim…’
Tentei me encolher dentro da minha camisa, mas o tecido fino oferecia pouca proteção.
‘Escolher esse caminho foi realmente sábio? Será que o outro corredor não teria sido diferente? Mais quente, talvez? Ou apenas me levaria a um tipo diferente de escuridão?’
O som dos meus passos, antes apenas um eco leve, agora pareciam ressoar com mais profundidade, sugerindo que o corredor poderia estar se alargando ou que o teto havia se elevado. Tentei esticar a mão direita para o lado, mas não encontrei nenhuma parede.
Isso me deixou inquieto. Estaria eu agora em um espaço mais amplo, mas ainda totalmente escuro? A ideia de estar exposto em um grande salão invisível era ainda mais perturbadora do que a segurança claustrofóbica de um corredor estreito.
‘Merda!’
Parei por um instante, focando na audição. O silêncio era diferente agora. Antes era um silêncio vazio, mas agora parecia haver uma qualidade… expectante. Como se algo estivesse prendendo a respiração junto comigo.
Claro que podia ser apenas a minha imaginação, me pregando uma peça na escuridão e no isolamento, mas ainda sim a sensação era real.
‘O que estou fazendo?’ O desespero começou a se infiltrar. ‘Eu morri, e agora estou vagando por um labirinto escuro no corpo de outra pessoa. Isso não faz sentido algum.’
Tentei me lembrar do meu nome, da minha vida anterior. Fragmentos iam e vinham, rostos, lugares, sensações, entretanto, nada ficava. Era como se eu estivesse desesperadamente tentando agarrar fumaça.
E Damian? Quem era ele, além de alguém com alergia a poeira? Sua vida era um livro em branco para mim, exceto por sua estranha herança de um corpo e um nome. Embora soubesse que ele têm uma irmã mais velha, um pai e uma mãe — morta. Nada eu sabia de quem ele era.
‘Aquela garota… Será que a tristeza em seus olhos seria o peso do conhecimento neste mundo sombrio?’
Continuei a andar, mais por falta de alternativas do que por convicção. O chão sob meus pés mudou sutilmente. Antes era pedra irregular, agora parecia mais liso, quase polido em alguns trechos, como se muitos pés o tivessem percorrido ao longo de eras.
‘Espera!’
Um novo som tocou os pés dos meus ouvidos. Tão baixo no início que pensei ser apenas o sangue pulsando nas minhas têmporas. Mas ele se tornou mais claro, mais distinto. Era um gotejar. Rítmico, constante… Água.
‘Aquela coisa! Merda, eu preciso sair daqui rápido, aquilo… Aquilo não pode me pegar!’
A presença de água poderia significar muitas coisas. Uma fonte, uma saída, ou simplesmente mais umidade neste lugar já frio e opressivo. No entanto, em seus cinco primeiros minutos nesse lugar, ele descobriu um novo medo que jamais esqueceria…
Aquele reflexo, estranho e assustador que parecia querer o consumir. Um forte senso de emergência me tomou por completo, eu queria gritar, mas também fazer silêncio.
‘Sim… Definitivamente ele não vai me encontrar, não é? Ele estava num espelho, não tem como ele refletir no escuro, não é mesmo? Claro, claro…’
De repente, senti um hálito gelado atrás do meu pescoço. Não era a corrente de ar do corredor. Era algo mais… Íntimo. Próximo. Um arrepio violento sacudiu meu corpo da cabeça aos pés, e os pelos dos meus braços enrijeceram dolorosamente.
‘O reflexo… O reflexo…’
Prendi a respiração, o som do meu próprio sangue rugia no meu ouvido. Imediatamente depois, um som arrastado, como unhas longas e secas sendo puxadas lentamente pela superfície da pedra, ecoou da parede à minha esquerda, terrivelmente perto.
Um chiado agudo, que fez meus dentes rangerem e um pânico cego tomar conta de mim. Minha mente gritava para correr, mas minhas pernas pareciam chumbo derretido, fincadas no chão polido.
‘Só passe logo, sim, vá embora, rápi-’
Meus pensamentos foram interrompidos bruscamente quando algo agarrou o tecido da minha camisa, nas costas. Um puxão forte, rasgando algo com um som agudo e definitivo.
As pontas de algo incrivelmente frio e afiado arranharam minha pele por baixo do tecido da camisa rasgada, como garras de gelo, deixando um rastro ardente. Um gemido estrangulado escapou dos meus lábios.
Não havia dúvida. Não era a parede. Não era minha imaginação.
O cheiro metálico e de terra úmida se identificou, misturado com um odor acre, como o de carne podre deixada de canto. Quando reuni uma única fagulha de esperança e olhei para trás, a visão fez minhas pernas cederem.
Atrás de mim, estava aquele mesmo quadro.
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