“Como?” Senti um forte temor, a vista do quadro e o corredor atrás, me deixou receoso. 

    “O reflexo… Não estava atrás de mim?”

    A validação de que não havia saído do lugar, talvez foi a mais esquisita e estranha. Afinal, acabei de ser atacado, eu caminhei durante horas e… Eu não havia saído do lugar? 

    Olhei para o caminho do outro lado. 

    ‘Certo, talvez eu deva experimentar isso…’

    Engoli saliva em seco, a sensação do pomo de adão subir e descer me deixou receoso, mas decidi seguir em frente. Um passo e depois o outro, a cada passo, mais adentrava na escuridão.

    ‘Um… Dois… Três…’

    Contei até sessenta, antes de finalmente girar sob meus calcanhares e olhar para trás de novo.

    O quadro estava lá. Aquela maldita pintura escura e pastosa. Meu coração despencou com a confirmação desse fato. Eu estava em um possível loop? Ou algo do gênero que se via naquelas obras de ficção científica. 

    “O que me resta é procurar mais pistas com o que eu tenho…”, disse para o nada, talvez estava até com saudades de ter alguém para conversar.

    Comecei a analisar o quadro, procurando pistas, mas logo percebi. Ele estava diferente. O rosto apagado da figura, mesmo que embaçado, parecia me encarar. O lugar que poderia ser seus olhos, agora era duas poças vazias de tintas. 

    E aos poucos, a tinta negra começou a escorrer pela tela, caindo algumas gotas no chão. Um arrepio percorreu a minha nuca, enrijecendo cada pelo do meu corpo. Não era algum tipo de ilusão, nem um truque de luz. 

    ‘A tela mudou…’

    Recuei instintivamente, tropeçando nos meus próprios pés. O cheiro da tinta agora estava fresco e surpreendentemente forte. Invadiu minhas narinas, misturado a um odor sutilmente metálico, como sangue velho.

    As gotas negras que aos poucos atingiam o piso não se espalhavam como tinta comum, elas pareciam se contorcer, quase vivas, antes de serem absorvidas pelo chão e sumirem, deixando manchas que pareciam sombras permanentes no piso.

    “Que merda é essa?” 

    O silêncio do corredor foi quebrado por um som baixo, um gotejo rítmico que se tornou o único foco da minha audição aterrorizadas… Por ser parecido com o reflexo estranho que encontrei duas vezes.

    ‘O que eu faço? O que eu faço? O que eu faço?’

    A figura da pintura, com seus novos olhos vazios escorrendo gotas na escuridão, parecia ganhar uma profundidade que não existia antes. A sensação de ser observado se intensificou e se tornou quase palpável, jurava que se estendesse a mão, sentiria fisicamente essa sensação.

    Eu queria gritar, correr, mas meus pés pareciam fazer parte do chão, presos pela força do medo que me mantinha naquela bifurcação infernal.

    ‘Merda… merda…’

    Uma das poças de tintas no lugar dos olhos da figura, parecia pulsar levemente, e um filete mais grosso de tinta escorreu, formando algo que parecia a uma lágrima negra solitária.

    A lágrima escura deslizou lentamente pela superfície da tela, desafiando o resto da textura da pintura. Em vez de simplesmente escorrer para baixo, ela parecia percorrer um caminho próprio, que sutilmente se curvava antes de atingir as bordas da moldura.

    E, ao invés de pingar no chão como as outras gotículas, a lágrima negra começou a se acumular, formando uma pequena protuberância escura que vibrava.

    A protuberância da tinta na moldura cresceu um pouco mais, e então, dela, algo fino e escuro como um filamento começou a se estender para fora da pintura, em direção ao espaço a minha frente.

    Era lento, hesitante a princípio, depois ganhando uma confiança sinistra. Parecia um tentáculo de pura escuridão líquida, sondando o ar. O cheiro metálico ficou mais forte, enjoativo.

    Glup!

    Minha respiração ficou presa na garganta, um nó gelado de pavor. O tentáculo negro, com cerca de um comprimento agora, balançava suavemente no ar, a ponta se afinando como a de um chicote. 

    ‘Isso não vai me atacar, né…?’

    Ele parecia liso e oleoso, podia jurar que via minúsculas ondulações percorrendo sua superfície, como se algo se movesse sob aquela pele de tinta escura.

    O horror da situação continuou a me paralisar. Eu estava testemunhando o impossível, uma pintura ganhando vida de uma forma grotesca e ameaçadora. Era uma violão das leis da física, da minha própria sanidade.

    ‘O ataque no corredor escuro… o toque gelado… as garras… Seria disso que me atacou? O reflexo daquele espelho e a pintura, estão conectados?’

    O tentáculo parou de se alongar por um momento, pairando no ar a menos de um metro do meu rosto. Minha respiração estava quente, enquanto enfrentava uma massa fria. A ponta dele se curvou ligeiramente.

    Outro arrepio percorreu meu corpo inteiro, uma onda de repulsa e medo tão intenso quase me fizeram vomitar. O cheiro era insuportável agora, uma mistura nauseante que fazia meus olhos lacrimejaram.

    Eu precisava me mover, precisava fazer alguma coisa. Mas o quê? Lutar contra uma espécie de tinta escura? Correr para fora da bifurcação? Correr para um dos corredores que já se provaram ser um loop?

    Minha mente girava em busca de uma saída, uma solução, mas só encontrava o vazio do pânico. O tentáculo se moveu. Rápido como uma serpente, a ponta do tentáculo disparou em minha direção.

    Não tive tempo de reagir, mal tive tempo de piscar, quando o impacto úmido e gelado surgiu no meu peito, bem no meio. Não doeu, não inicialmente. Parecia mais uma pressão fria, como se um bloco de gelo tivesse sido pressionado contra mim.

    Mas a sensação mudou rapidamente. O frio se intensificou, se transformando em uma queimação gelada que parecia penetrar minha pele, meus músculos, meus ossos. Olhei para baixo, o terror me permitiu finalmente ter um vislumbre.

    A ponta do tentáculo estava grudada na minha camisa, e a tinta escura parecia se espalhar a partir do ponto de contato, como uma mancha de óleo em água, mas com uma vida própria, pulsando fracamente.

    ‘Socorro!’ Só consegui gritar, as palavras não saiam pela boca.

    Tentei o afastar, minhas mãos finalmente obedecendo ao comando desesperado do meu cérebro. Mas assim que meus dedos tocaram a tinta, uma repulsa avassaladora me atingiu.

    ‘Viscoso, escorregadio e gelado demais…’

    Por baixo da frieza superficial, havia uma pulsação sutil. Era como se eu estivesse tocando em algo…

    ‘Morto.’

    O tentáculo não cedeu. Ao contrário, parecia se agarrar com mais força, a tinta se infiltrava nas fibras da minha camisa, chegando à minha pele por baixo. 

    A queimação gelada se intensificou, e comecei a sentir uma fraqueza estranha se espalhando pelo meu peito, como se minha energia estivesse sendo sugada, drenada por aquela coisa.

    Enquanto o tentáculo me tocava, sugando algo de mim, a pintura atrás dele parecia reagir. As duas poças vazias que eram os olhos da figura começaram a brilhar com uma intensidade fraca e interna, uma luz escura, se é que tal coisa era possível.

    “O-o quê?”

    Um som baixo, quase como um murmúrio indistinto, começou a vazar da tela, como o sussurro de muitas vozes falando ao mesmo tempo, muito baixo para sequer entender as palavras.

    O gotejo da tinta dos olhos se tornou mais rápido, mais frenético, e as gotas que caíam no chão agora pareciam maiores, mais escuras, e se contorciam com mais vigor antes de serem engolidas pela pedra.

    Algumas delas, ao invés de desaparecerem, começaram a se arrastar lentamente pelo chão, pequenos borrões de escuridão animada, movendo-se em direção aos meus pés.

    “Sai… Sai de perto de mim!” Consegui finalmente emitir algum som, minha voz estava rouca e trêmula, enquanto raspava a garganta e mal me fazia a reconhecer.

     Tentei puxar o tentáculo, mas ele parecia ter se fundido à minha roupa, à minha pele. A fraqueza em meu peito estava se tornando mais pronunciada, acompanhada por uma tontura leve.

    A figura na pintura, aquela silhueta obscurecida por camadas de tinta, pareceu se mover sutilmente, ou talvez fosse apenas um truque da luz escura que emanava dos seus olhos. 

    Mas a sensação de ser observado por ela, de estar conectado a ela através daquele tentáculo profano, era inegável. Era como se a própria pintura estivesse se alimentando de mim.

    Os murmúrios da tela ficaram um pouco mais altos, e entre eles, comecei a distinguir um som repetitivo, um tipo de chiado sibilante, quase como uma risada abafada e sem alegria. Era o som mais apavorante que eu já tinha ouvido.

    A ponta do tentáculo grudada em meu peito começou a pulsar com mais força, e a sensação de drenagem se tornou quase insuportável. Eu podia sentir minha força vital se esvaindo, a temperatura do meu corpo caindo. O frio não era mais apenas na superfície, ele estava se infiltrando em mim, chegando ao meu núcleo.

    ‘Preciso fazer alguma coisa… Se eu não me livrar disso, vou morrer aqui, ou pior, me tornar parte dessa coisa…’

    Mas como eu lutaria contra uma tinta?

    Olhei ao redor, meus olhos varrendo a escuridão da bifurcação, buscando qualquer coisa, qualquer arma improvisada, qualquer rota de fuga. Os dois corredores ainda se estendiam como goelas escuras, mas voltar para eles agora parecia uma sentença de morte ainda mais rápida.

    Minha mão livre, trêmula, ainda estava em contato com a viscosidade fria do tentáculo. Cerrei os dentes, a repulsa me dando um pico de adrenalina. Puxei com toda a força que me restava.

    A substância cedeu um pouco, esticando como um elástico doentio, mas não se rompeu. A figura na pintura pareceu reagir ao meu ato de resistência, os murmúrios se transformaram em um rosnado baixo e gutural, e a luz escura em seus olhos pulsou com mais intensidade. O tentáculo, por sua vez, apertou seu contato.

    Senti algo rasgar. Minha camisa, minha pele. 

    “Aaah!”, gritei, desta vez um som claro de agonia. O cheiro de sangue fresco, o meu sangue, misturou-se ao odor metálico e ao da tinta, criando um tipo de perfume, um tom de pesadelo.

    As pequenas gotas de tinta que se arrastavam pelo chão agora estavam perto dos meus sapatos, começando a subir pelas laterais, como sanguessugas escuras e famintas. 

    Me lembrei do espelho, do reflexo. Aquilo queria me puxar para dentro. Talvez a pintura também quisesse. Talvez a única maneira de lutar fosse… atacar a fonte.

    Com um esforço tremendo, ignorei a dor excruciante no meu peito e o medo que ameaçava me paralisar, dei um passo cambaleando em direção à pintura, arrastando o tentáculo comigo. Se ele estava preso a mim, eu o levaria de volta para o seu inferno.

    A figura na pintura parecia recuar, ou talvez a perspectiva tenha mudado com minha aproximação. O rosnado se intensificou. O tentáculo resistiu, tentando me puxar para trás, mas a fraqueza que ele me infligira parecia afetar sua própria força de tração.

    ‘Mais! Mais!’

    Mais um passo. Eu estava perto agora, a menos de um braço de distância da tela. O cheiro era avassalador. Podia ver os detalhes grotescos da tinta escorrendo, os olhos que eram buracos para algum tipo de escuridão consciente.

    Sem pensar, apenas agindo por puro instinto de sobrevivência e uma fúria desesperada, levantei minha mão livre e a toquei contra a superfície da pintura, bem no centro da figura obscurecida, onde um coração deveria estar.

    No instante em que meus dedos tocaram a tela fria e surpreendentemente maleável, quase como pele morta esticada, um uivo lancinante ecoou pelo corredor, não da pintura, mas de todos os lugares ao mesmo tempo. 

    O tentáculo em meu peito se contraiu violentamente, como um animal mortalmente ferido. E a tela me engoliu.

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