O mundo se tornou estranho e turvo. Pisquei uma vez, duas, três… nove vezes. Mas cada vez que piscava, chegava ainda mais em uma conclusão. 

    ‘Eu não consigo compreender nada.’

    Na décima piscada? Se é que fosse realmente a décima, memórias que eu não me lembrava começaram a ocupar a minha mente. Um quarto. Escuro. O barulho de choro. Minha visão mudou. 

    Eu estava caído, com o corpo tombado para trás, apoiado no pé da cama. À minha frente, uma enorme poça de sangue, enquanto a minha respiração falhava. Esse era… o meu quarto. 

    “Ha… Haaa…”, ofeguei com ainda mais força. 

    O líquido carmesim jorrava como uma bisnaga de tinta, sob uma paleta que era o meu chão. Um cheiro metálico e adocicado invadiu minhas narinas, tão denso que parecia sufocar o ar estrangulado na minha garganta.

    O frio do piso se infiltrava pelas minhas roupas encharcadas, um contraste gélido com o calor úmido e pegajoso que se espalhava a partir da minha têmpora. A confusão da cena era como uma névoa tão espessa quanto a escuridão do quarto.

    ‘Eu… quem?’

    Lágrimas escorriam dos meus olhos, o meu choro agonizado pela dor que sentia. Em meio aos lampejos de dor, distingui na penumbra um porta-retrato de prata, estilhaçado no chão à minha frente. 

    A fotografia dentro do quadro, era de um rosto sorridente que eu deveria reconhecer, mas estava rasgado ao meio. Aquele rosto… por que ele me trazia uma sensação de perda ainda maior do que a vida que me esvaía?

    A imagem desapareceu, tão rápido quanto notei, deixando para trás apenas a dor fantasma do sorriso perdido. O som da minha própria respiração era o único marco da passagem do tempo. 

    “Uhh, ahh…”. O som da minha própria respiração era o único marco da passagem do tempo, cada inspiração um ruído borbulhante, cada expiração um suspiro trêmulo. Eu era um espectador da minha própria tragédia, preso na primeira fila, sem poder desviar o olhar ou entender o enredo.

    A poça de sangue continuava a se expandir lentamente, como uma maré vermelha reivindicando seu território. Ela alcançou a minha mão inerte, e a sensação do líquido envolvendo meus dedos foi estranhamente íntima, como um reencontro.

    ‘Eu… me suicidei?’

    A pergunta pairou na minha mente caótica, uma âncora no mar de confusão. Tentei me agarrar a ela, a essa explicação. Faria sentido. A dor, a escuridão, o choro que era meu. Talvez a vida tivesse se tornado insuportável, e este ato terrível fosse a única saída que encontrei.

    A conclusão não trazia paz, mas oferecia uma espécie de lógica perversa para o horror. Se eu fui o autor, então não havia culpa a alguém, apenas a tristeza que me consumiu. 

    ‘Não… algo ainda parece errado… Ainda não se encaixava no quebra-cabeça macabro.’

    Meu olhar fantasma, preso na perspectiva do meu corpo agonizando na morte, varreu o chão ao meu redor. Se eu tivesse feito isso, onde estava o objeto? Onde estava a arma, a lâmina ou qualquer coisa que eu pudesse ter feito o ferimento?

    Minha mão estava aberta e vazia repousava na poça crescente. A outra estava presa sob o meu corpo. Não havia nada. Nenhum brilho de metal, nenhum cabo de madeira. Apenas o chão, o sangue e os fragmentos do porta-retrato.

    A ausência do meu último grito, era ainda mais triste… se comparado ao meu choro…

    Aos poucos minha visão escurecia ainda mais e a escuridão me abraçou. 


     

    Quando abri os olhos novamente, o chão familiar do corredor retornou à minha frente. Era igual, mas também diferente. Aos poucos notei que a bifurcação lateral começou a desaparecer. Como uma poça de água de escuridão se esvaindo. 

    “Hum?”

    Me levantei e meu corpo parecia mais leve, como se um fardo enorme tivesse sido tirado das minhas costas. O quadro havia desaparecido e no lugar substituído por um… novo corredor?

    ‘Isso… não tem fim?’

    As paredes pareciam ser feitas de um material liso e pálido, sem janelas ou portas, refletindo uma luz que não parecia vir de lugar nenhum. A memória da minha morte ainda estava vivida na minha mente.

    “Foda-se”, cuspi ao nada.

    Dei o primeiro passo. O chão era frio e liso, parecia que não existia nenhuma vibração. O corredor era um vácuo, um espaço entre momentos. A leveza um tanto quanto estranha. Era uma sensação estranha, como se fosse a ausência de peso físico.

    ‘Para combinar com a minha maldita ausência de identidade verdadeira?’

    Eu não era nada além de um ponto diferente no vazio branco ao meu redor. E com isso? Continuei a andar, sem um destino em mente, afinal, não havia outro caminho para se seguir.

    A monotonia do cenário era enlouquecedora, mas minha mente estava ocupada demais tentando entender o enigma da poça de sangue e do porta-retrato rasgado. O sorriso perdido naquele rosto por algum motivo…

    ‘Continua a me assombrar…’

    ‘Aí vem…’

    Após um tempo que não pude medir, pois o tempo parecia não fluir aqui, notei uma mudança sutil. As paredes pálidas começaram a exibir finas linhas escuras, como rachaduras em porcelana antiga.

    A princípio, eram poucas e distantes, mas conforme eu avançava, elas se multiplicavam, tecendo uma teia complexa que cobria toda a superfície. Hipnotizado por sua beleza, aproximei minha mão em uma das fissuras.

    A sensação do toque, ao contrário do que esperei, não tinha uma textura de rachaduras, mas sim uma frieza profunda, como se eu estivesse tocando um fragmento de gelo. 

    Rachaduras, pouco a pouco, elas começaram a brilhar numa luz interna, como um fulgor azulado e pulsante. O corredor já não era mais uma passagem estática, parecia mais… vivo. Como se respirasse uma energia antiga e melancólica.

    Dentro da luz azul, vislumbres de imagens começaram a se formar e a se dissipar rapidamente. Vi um parque em um dia de outono, folhas caindo em câmera lenta. Vi o interior de um carro durante uma tempestade, os limpadores do para-brisa lutando contra a chuva. 

    Vi as luzes de uma cidade à noite, um borrão de néon e promessas. Todas pareciam fragmentos, desconexos e sem um contexto, como trechos de um filme que eu não me recordava de assistir.

    Nenhuma daquelas imagens me trazia um sentimento de pertencimento, mas todas carregavam um peso, uma emoção.

    ‘Solidão… ansiedade… admiração…’

    Eram sentimentos universais, mas pareciam direcionados, como se o corredor mostrasse um catálogo de experiências humanas. Pertenciam a mim? Ao Damian? Ou de ninguém?

    Continuei a trilhar meu caminho, agora não mais por um corredor vazio, mas por uma galeria de possibilidades e passados. O silêncio foi substituído por um sussurro baixo e constante. 

    Essentia, Inanis. Essentia, Inanis. Essentia, Inanis. Essentia, Inanis. 

    O som de mil vozes rogando ao mesmo tempo, mas nenhuma palavra era discernível. Era o ruído branco da existência, o som acumulado de incontáveis vidas. E, em meio ao caos, comecei a distinguir uma melodia subjacente da tristeza.

    Essentia, Inanis. Essentia, Inanis. Essentia, Inanis. Essentia, Inanis.

    ‘A mesma tristeza que senti no meu quarto, durante o meu choro…’

    A jornada parecia durar uma eternidade, cada passo me levava mais fundo naquele labirinto de luz e som. O corredor começou a se estreitar, ou talvez fosse apenas impressão minha, causada pela intensidade crescente da luz e dos sussurros. 

    Essentia, Inanis. Essentia, Inanis. Essentia, Inanis. Essentia, Inanis. Essentia, Inanis. Essentia, Inanis. Essentia, Inanis. Essentia, Inanis. Essentia, Inanis. Essentia, Inanis.

    A pressão em meus ouvidos aumentou, o ar ficou mais denso e parecia carregado com o cheiro de ozônio e papel velho. Logo encontrei, o fim. Não era uma parede, nem uma porta. O corredor simplesmente terminava em um arco de pedra escura, que parecia absorver a luz ao seu redor.

    Dentro do arco, existia uma escuridão cheia de uma quietude profunda e convidativa. O contraste com o corredor vibrante e caótico era gritante. Um portal para o silêncio.

    “Não tenho outras opções…”, suspirei. E, ainda que hesitante, atravessei o arco.

    A transição do espaço foi instantânea. O som clamando por algo, a luz, a pressão, tudo desapareceu. Eu estava em um espaço vasto e circular, tão grande que eu não conseguia ver suas paredes.

    O teto era uma cúpula de escuridão, da qual pendiam fios finíssimos e quase invisíveis. A única iluminação vinha dos objetos que estavam pendurados nesses fios, e de outras que flutuavam livremente no ar, emitindo seus próprios brilhos suaves.

    Eram máscaras.

    ‘Mil? Dez mil máscaras? Quantas têm aqui dentro?’

    Elas ocupavam todo o espaço, em todas as alturas, girando lentamente como planetas em uma órbita silenciosa. Havia máscaras de todos os tipos, materiais e expressões inimagináveis. 

    Havia máscaras de porcelanas branca, rachadas como o corredor, com lágrimas de vidro pintadas em suas bochechas. Havia máscaras de metal oxidado, moldadas em carrancas de guerreiros esquecidos. Havia máscaras de couro endurecido, com sorrisos largos e perturbadores que não alcançavam os olhos vazios.

    Caminhei entre elas, como um intruso em um camarim cósmico. Algumas flutuavam perto do chão, outras estavam tão altas que eu mal podia distingui-las. Uma máscara feita inteiramente de cristal transparente passou flutuante por mim, dentro dela… vi o reflexo distorcido de mil outras máscaras.

    Outra, feita de obsidiana polida, não refletia nada, simplesmente absorvia a luz e a minha imagem em seu vazio perfeito. Havia máscaras que expressavam emoções puras e inconfundíveis. 

    Uma máscara de um vermelho vibrante, contorcida em um grito de raiva silenciosa. Uma de um azul profundo, com uma expressão de melancolia tão profunda que doía olhar. Uma máscara dourada, cujo sorriso era tão radiante e genuíno que parecia aquecer o ar ao seu redor.

    Mas também havia máscaras de neutralidade absoluta, rostos em branco, ovais perfeitos sem traços, esperando que uma identidade fosse projetada sobre eles.

    ‘O que eu faço?’

    Enquanto andava, notei máscaras tribais, com padrões e penas exóticas. Máscaras de baile de máscaras, adornadas com filigranas de prata e joias falsas. Máscaras de teatro, uma representando a comédia, outra a tragédia, penduradas lado a lado em um equilíbrio perfeito.

    Também havia máscaras mais estranhas, parecidas que foram tecidas por sombras, outras que eram apenas contornos de luz trêmula, e uma que parecia ser feita de água corrente, mantendo sua forma por algum tipo de magia incompreensível.

    Estendi a mão para tocar uma delas, uma máscara de cerâmica simples com uma expressão de surpresa suave. Meus dedos pararam a centímetros de distância. Senti que não deveria…

    “Esse lugar é como um santuário, ou um repositório de personas, de vidas, de papéis desempenhados no grande palco da vida… Cada máscara era uma identidade, uma face que alguém usou para enfrentar a vida, para esconder a dor, para expressar a alegria e para… se tornar quem não era…”

    Enquanto eu vagava por essa coleção infinita de rostos, uma compreensão começou a se formar na minha mente confuso. Aquele corredor era a jornada através da experiência coletiva, e esse lugar era o destino final. O local onde todas as identidades repousavam.

    Continuei a andar, atraído para o centro da sala circular. As máscaras pareciam se afastar sutilmente para me dar passagem, seus olhos vazios seguindo meu progresso. No epicentro daquele universo de rostos, não havia uma máscara.

    ‘Quem eu deveria ser?’

    Ali repousava um mármore negro, liso e frio. Sob o pedestal, não havia nada. Estava vazio. Mas não era apenas um pedestal vazio. Me aproximando, notei que a superfície superior era levemente côncava, como um espelho de escuridão. 

    ‘Há algo ali?’

    Olhei para dentro, esperando ver meu reflexo, assim como tentei no corredor. Mas a superfície permaneceu perfeitamente imóvel e escura. Desde o porta-retrato rasgado. O sorriso perdido. A memória da morte. A ausência da arma. A ausência do meu verdadeiro nome. 

    Nada. Nenhuma resposta para minhas dúvidas. As máscaras ao meu redor eram os rostos que as pessoas usavam. Eram as suas histórias, as suas vidas. Toquei a escuridão do pedestal e o mundo convergiu.

    ‘Este é quem eu sou.’

    Da penumbra do topo do pedestal, a escuridão fluiu pela ponta do meu dedo, subindo até a região dos olhos e formou uma máscara rachada. Meu reflexo finalmente foi possível se ver.

    Usando uma máscara com uma aparência um tanto assustadora quanto enigmática, escura como o, absorvendo até mesmo a luz azul dos meus olhos. Rachaduras se espalhavam por toda ela. 

    Semelhante a uma máscara de festas, escondendo apenas a região dos meus olhos. As rachaduras constantemente se formavam e se fechavam a cada instante e um sorriso curto apareceu no meu lábio. 

    “Tive medo de mim mesmo, quando percebi que durante toda essa vida, usei o meu rosto verdadeiro, nesse eterno baile de máscaras.”

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