O Ataque dos Mortos-Vivos
Petrogrado, 1912.
A chuva tamborilava suave contra os vidros da pequena cafeteria no centro da cidade. Elias, de olhos cansados e barba por fazer, entrou apressado, escapando de uma tempestade que mal dava sinais de cessar. Trazia consigo o cheiro de terra molhada e esperança frustrada — como se a vida o tivesse deixado à margem por tempo demais.
Ao virar-se para procurar uma mesa, trombou com uma mulher que carregava duas xícaras fumegantes. O café espirrou, quente, direto em sua camisa.
— Ai! Me desculpa! — disse ela, largando as xícaras no balcão às pressas e puxando guardanapos. — Eu… Eu sou uma completa desastrada.
Elias, surpreso, não conseguiu conter o riso. Mara, a moça dos olhos de outono e sorriso aflito, também riu, sem jeito.
— Agora vou cheirar a café pelo resto da semana. — brincou ele, aceitando os guardanapos. — Mas valeu a pena.
O embaraço cedeu lugar a algo mais leve. Conversaram. Primeiro sobre cafés e dias chuvosos, depois sobre livros, música e o que esperavam da vida. Quando deram por si, a chuva havia parado, e ambos estavam com a alma mais leve.
Saíram outras vezes. Cinema, feiras livres, noites de conversa sob as estrelas. Até o dia no parque de diversões.
Na roda-gigante, com a cidade iluminada abaixo deles, Elias olhava Mara como quem observava algo raro e precioso. Ela falava sobre um sonho de infância, mas foi interrompida quando ele, impulsivo e encantado, a beijou. Um beijo roubado. Mara se afastou um pouco, surpresa, mas depois cedeu, com os olhos brilhando e as bochechas coradas.
Começou ali a felicidade. Casaram-se pouco depois. A chegada de um filho trouxe ainda mais cor ao mundo que construíram juntos. Mara, firme e dedicada. Elias, esforçado e sonhador.
Petrogrado, 1914.
Mas a guerra chegou.
Seus efeitos começaram a se espalhar como rachaduras pelo chão de um lar. Primeiro, foi o aumento dos preços. Depois, os suprimentos começaram a atrasar. As empresas, enfraquecidas pela instabilidade, começaram a fechar. O local onde Elias trabalhava, uma oficina de metalurgia, resistiu o quanto pôde, mas não suportou a queda de contratos. Os patrões chamaram um a um, olhos baixos, e o demitiram.
O arroz ficou raro.
O leite virou luxo.
Elias tentou. Fez bicos, carregou caixas, consertou telhados. Mas os preços aumentavam todos os dias. Os impostos, elevados para sustentar o esforço de guerra, pesavam como pedras. Venderam a televisão. Depois, os móveis. Roupas, brinquedos. Tudo ia embora, menos o amor de Mara. Mesmo com o prato quase vazio, ela dividia com Elias e o filho cada pedacinho de esperança.
Até que, num dia qualquer, Elias viu o cartaz. “Seu país precisa de você.” Soldos generosos. Ajuda para as famílias dos soldados.
Era a chance de dar algo melhor ao seu filho. Não pensou duas vezes. Passou nos exames. Foi aceito.
Naquela noite, chegou em casa com os olhos pesados.
— Mara… Eu me alistei.
O silêncio que se seguiu foi tão cortante quanto a notícia. Ela parou de mexer a sopa rala no fogão e o encarou.
— Você… o quê?
— Eu vou para o fronte. Só até as coisas melhorarem. É o único jeito. Vão pagar bem. A gente vai sair disso.
— Elias, não! — disse, com os olhos marejados. — Você sabe o que estão fazendo com os soldados? Eu não quero perder você! Eu não quero que nosso filho cresça sem o pai!
— Eu tô fazendo isso por vocês.
— Eu nunca pedi isso, Elias.
— Mas eu não posso mais ver você passando fome… nosso filho chorando por leite e a gente sem nada. Eu juro que volto. Eu juro.
Ela caiu em prantos, abraçando-o como quem tenta impedir uma enchente com os braços. Mas no fundo, já sabia: ele iria.
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Kronstadt, 1914.
Na primeira semana longe de casa, Elias foi lançado ao inferno dos treinamentos. Dias marcados por suor e sangue, enquanto se arrastava na lama espessa sob arames farpados que dilaceravam sua pele.
As noites eram ainda piores — passava horas submerso em um lago gelado, a água alcançava seu pescoço, enquanto seu corpo tremia e sua mente era posta à prova.
Durante o dia, não havia descanso. Exercícios exaustivos, marchas intermináveis e sessões implacáveis de tiro ao alvo.
Após apenas duas semanas de treinamento, Elias foi lançado ao fronte. Sua primeira experiência real foi nas trincheiras — um mergulho direto no caos. Designado a uma equipe de escavação, passou horas em túneis estreitos, escuros e instáveis, onde cada passo podia ser o último.
A qualquer momento, as paredes de terra cediam, engolindo homens vivos.
O terror era constante. Quem entrava em pânico e tentava fugir era capturado e executado, sem piedade. Era a regra. E todos sabiam disso.
Do lado de fora, o mundo rugia. Explosões faziam o chão tremer. Tiros cortavam o ar, gritos se misturavam aos sons da morte. Elias escutava tudo, preso sob a terra, com o coração acelerado.
No primeiro dia, um desabamento. Homens soterrados ao seu lado. Ele viu os corpos sendo esmagados, os gritos abafados pela terra.
Aquilo ficou gravado em sua mente como fogo.
Durante a troca de turnos, sujos e exaustos, os soldados receberam permissão para enviar cartas. Elias mal conseguia segurar a caneta, as mãos ainda trêmulas. Mesmo assim, escolheu se preocupar.
E assim, ele escreveu:
“Querida Mara,
Espero que você e nosso pequeno estejam bem.
Aqui não é tão ruim quanto imaginei. Estou me adaptando, e os dias vão passando.
Penso muito em vocês. Sinto falta do seu abraço, do sorriso dele, da nossa casa. Essas lembranças me ajudam a seguir firme.
Escreve quando puder. Só de ler suas palavras, meu coração fica mais leve.
Com amor, Elias“
E assim, os dias foram passando. As mortes se acumulavam nos túneis, no frio, no silêncio, e agora também no campo aberto. Pegaram soldados das trincheiras e os lançaram para frente de batalha. Elias estava entre eles.
Foi lá, sob o céu aberto e sujo de fumaça, que ele viu o verdadeiro horror da guerra.
Corpos amontoados, muitos ainda com os olhos abertos. Tiros cruzando o ar como lâminas. Explosões que rasgavam a terra. Gritos de dor, choros sufocados.
O batalhão avançava, e Elias, mesmo com as pernas trêmulas, seguia junto.
Morte. Tiros. Mais morte.
Em meio ao caos, ele encontrou um soldado inimigo caído, ferido. Sangue manchando o uniforme. Elias se aproximou com cautela, guiado pelo que ainda restava de humanidade em seu peito. Seu coração, ainda bom, dizia que devia ajudar.
Ajoelhou-se.
Foi quando esse mesmo soldado sacou uma arma, apontando direto para ele. Elias congelou.
Antes que o disparo fosse feito, o comandante se lançou entre eles, salvando Elias.
O inimigo caiu morto, mas o comandante, furioso, o encarou.
— Isso aqui não é caridade, soldado. Você será punido por essa estupidez — disse, com a voz dura, segundos antes de um disparo seco ecoar.
A cabeça do comandante estourou. O sangue respingou no rosto de Elias. Ele ficou paralisado. Em choque. Depois veio o desespero.
Ergueu o fuzil e começou a disparar, sem mirar, sem pensar. Gritava, como se quisesse expulsar o horror pela garganta.
Disparava contra tudo. Contra todos. Contra a própria culpa.
Dias depois, estava de volta à trincheira. Sentado. Imóvel. As mãos seguravam uma carta de Mara, mas seus olhos estavam vazios. Sua mente, longe — revivendo cada rosto, cada morte causada por suas mãos. O peso era insuportável.
Alguém esbarrou nele ao passar. Um toque simples. Mas o suficiente para trazê-lo de volta.
Ele piscou, olhou ao redor, depois para a carta em suas mãos. Suspirou e, com os dedos trêmulos, a abriu.
“Meu querido Elias,
Fiquei tão aliviada ao saber que você está bem… não sei como suportaria perder você agora. Cada dia longe é um peso que não consigo carregar.
Você não vai acreditar: o bebê falou “papai” ontem! Foi lindo, mas confesso que me deixou meio irritada também — como assim ele já sabe dizer isso se você está aí longe? Parecia que ele já sente sua falta tanto quanto eu.
Aqui em casa está difícil, mas seguimos firmes. Sinto sua falta a cada instante, mais do que do que consigo colocar em palavras.
Cuide-se. Volte para nós.
Com todo o meu amor, Mara”
Lágrimas escorreram pelo seu rosto enquanto ele lia a carta.
“Vai ser por vocês…”, pensou, apertando os olhos, tentando conter o desespero.
E então começou uma série de matanças.
De cidade em cidade, a guerra o arrastava por cenários cada vez mais devastadores. A cada missão, ele sobrevivia e matava.
Com o passar dos meses, a experiência molda sua alma. O calor humano cedeu lugar a uma frieza inquietante. Seus olhos, antes cheios de dúvidas, agora encaravam a morte sem hesitação.
Ele matou sem reação. Sem culpa. Apenas dever.
Mesmo assim, toda semana, ele enviou uma carta.
E sua ascensão foi tão brutal quanto sua transformação. De soldado a sargento, ele subiu de patente em um ritmo que assustava até os veteranos.
Com a nova patente, veio também um aumento considerável no soldo. Agora, ele enviava uma quantia generosa para sua família, o suficiente para tirá-los da miséria e garantir uma vida confortável.
O leite e o pão deixaram de ser luxo, sendo comuns agora.
Após longos e incontáveis oito meses longe de casa, finalmente lhe concederam duas semanas de folga — junto com a notícia de que, ao retornar, ele estaria liderando sua própria unidade.
Petrogrado, 1915.
Mara estava em casa. As paredes recém-pintadas traziam frescor ao ambiente, e um jardim florido embelezava a frente da casa, cercado por uma cerca de madeira branca recém-reformada. Tudo estava em perfeita ordem.
Na cozinha, ela cantarolava uma antiga cantiga enquanto cortava legumes. Em seu rosto, um sorriso sereno.
Na sala, seu bebê brincava silenciosamente com os móbiles que giravam sobre o berço, encantado com as cores e os movimentos.
Um aroma quente e doce se espalhava pela casa — era a torta de maçã assando no forno, a preferida de Elias. A fartura e a tranquilidade reinavam naquele lar.
De repente, a campainha soou.
Mara se assustou e, no reflexo, cortou levemente o dedo. Correu até a pia, lavou o sangue e pressionou um pano de cozinha sobre o ferimento.
A campainha tocou novamente.
— Já vai! — gritou ela, caminhando até a porta com passos apressados.
Ao abrir, seus olhos se arregalaram e brilharam de emoção. Lá estava Elias, vestido com um uniforme cerimonial impecável, uma mala na mão e um sorriso nos lábios. Ele tirou a boina, colocando-a sobre o peito.
— Cheguei, querida. — disse ele, com a voz trêmula.
Mara se jogou em seus braços, desabando em lágrimas.
Logo estavam dentro de casa, e o doce aroma da torta os envolveu.
— Não pode ser… esse cheiro… só pode ser a sua super torta. Aquela dos dias especiais! — disse Elias, eufórico.
Mara riu.
— Claro. Hoje é nosso aniversário de um ano de casamento. Lembra?
Elias engoliu seco. O suor frio denunciava seu esquecimento.
— Esqueceu? — perguntou ela, arqueando uma sobrancelha. — Se fosse em outro momento, eu ficaria brava. Mas hoje… hoje, só de você ter voltado bem, isso já é o melhor presente.
Ela se virou, sorrindo de canto. Elias tossiu, chamando a atenção dela. Quando Mara se virou novamente, ele segurava uma pequena caixa preta. Dentro, havia um colar relicário dourado, com delicados entalhes florais.
Ela ficou sem palavras.
Elias se aproximou devagar, abriu o fecho do colar e o colocou no pescoço dela.
— Pra você. — sussurrou sorrindo.
Eles se olharam por um instante. E então se beijaram — primeiro devagar, depois com mais intensidade, deixando-se levar pela saudade acumulada.
Foram se despindo pela casa, entre beijos e risos, até subirem as escadas e chegarem ao quarto, onde o amor se reacendeu como uma chama renovada.
Minutos depois, Elias adormeceu. Mara se levantou, o pescoço ainda marcado pelos beijos. Recolheu as roupas pela casa e se vestiu.
Na cozinha, com os olhos ainda apaixonados, olhou para o relicário.
Ao abri-lo, sorriu. De um lado, uma foto deles dois. Do outro, uma do filho. Seu coração se encheu de ternura.
Começou a preparar a mesa: toalha branca, talheres elegantes, taças de cristal, e ao centro, a torta.
Olhou para o alto, os lábios desenhando um sorriso completo.
No quarto, Elias dormia. Suava frio enquanto sonhava.
No sonho, a guerra ainda acontecia. Tiros e explosões ao fundo. Corpos por todos os lados.
Estava entre eles, ainda vivo.
De repente, os cadáveres começaram a se mover, arrastando-o para o meio deles. Em desespero, tentou se soltar, mas não conseguiu. Ao olhar para o lado, viu o corpo do seu antigo comandante. Sangue escorria dos olhos, e com a voz rouca, ele murmurava:
— Ninguém volta inteiro…
Elias despertou num sobressalto. Respirava rápido. Não era a primeira vez que sonhava com aquilo. O mesmo pesadelo o assombrava há meses.
Se levantou, desceu as escadas. Ao passar pela sala, viu seu bebê acordado no berço. Aproximou-se, o pegou no colo e o abraçou com força.
— Eu senti tanto a sua falta… — disse, com os olhos marejados.
O bebê sorriu.
Mas, como um raio cortando o céu, uma lembrança invadiu sua mente: ele, estrangulando um homem até a morte com as próprias mãos.
Assustado, colocou o bebê de volta no berço, evitando contato visual.
Temeu por um instante que pudesse perder o controle.
Seguiu até a cozinha.
Lá estava Mara, sentada à mesa. Usava um belo vestido, unhas feitas, cabelos penteados com capricho. O colar pendia do pescoço, reluzente.
Elias ficou sem ar por um instante. Sentou-se diante dela, emocionado. Jantaram juntos, riram, conversaram como há muito não faziam. Falaram de coisas simples. Cartas. Planos.
Elias, no entanto, omitiu tudo o que viveu na guerra.
Mas o tempo passou. E a paz começou a escorrer pelos dedos.
Mesmo ao lado da família, Elias parecia ausente. Olhava para o nada, perdido em lembranças que não o deixavam.
Com o filho, a situação era ainda pior.
Recusava-se a pegá-lo no colo.
Via suas mãos como instrumentos de morte — mãos manchadas de sangue, mãos que não deveriam tocar em algo puro novamente.
Com os vizinhos, antes amigável e sorridente, tornou-se amargo e desconfiado. Chegou a espancar um deles após um simples mal-entendido.
Mara observava tudo. Um dia, decidiu enfrentá-lo.
— Eu não sei o que você passou lá, Elias, e talvez nunca vá entender. Mas isso não justifica você agir assim! Vê se cresce, homem! O que foi? Virou uma criança mimada só porque passou um tempo no exército?!
Elias rangeu os dentes. A pele ruborizou de fúria. Num rompante, fechou o punho… e atingiu o rosto dela.
Mara caiu no chão. Não chorou de imediato. Ficou imóvel, em choque.
O sangue escorria do nariz, os olhos marejados, os lábios entreabertos tentando conter o choro.
Elias tremia. Os punhos cerrados.
— Já chega! — rosnou. — Amanhã, eu volto para a fronte.
E assim, com apenas cinco dias de licença, Elias retornou à guerra.
✥—————✥—————✥
O comandante o chamou em seus aposentos, mostrou algumas fotos de soldados e disse, direto ao ponto, que ele estava sendo enviado para a Fortaleza Osowiec.
Os alemães estavam tentando tomá-la. Se conseguissem, ganhariam uma vantagem enorme na guerra. Não dava para permitir isso.
Elias apenas assentiu com a cabeça e apertou a mão do comandante. Estava decidido.
Fortaleza Osowiec, 1915.
Quando chegou lá, a situação era horrível. Homens feridos por todos os lados, muitos em choque, alguns catatônicos. Havia corpos sendo queimados — era a única forma de evitar doenças. A moral estava no chão. Ninguém avançava, só recuava. O único motivo dos alemães ainda não terem tomado tudo era uma trincheira enorme, vigiada dia e noite por atiradores.
A fortaleza estava fraca. Era bombardeada há dias, sem parar.
No início, a vila de Osowiec-Twierdza separava os dois exércitos. Mas ela já não existia mais. Tinha sido destruída, virando pó. Cem pessoas morreram ali — soldados, civis, todo mundo.
O antigo sargento da fortaleza tinha sido morto por envenenamento. Um espião alemão infiltrado. Elias estava ali para substituir um fantasma.
A única rota segura era um túnel antigo, cavado por garimpeiros. Levava direto à trincheira. Qualquer outra tentativa de atravessar o campo resultava em morte certa — bastava aparecer para levar uma chuva de tiros.
Elias ficou travado. Nada fazia sentido. Cada opção parecia pior que a anterior.
Ataque aéreo? Impossível — os dois lados tinham artilharia de sobra. Cavar outro túnel? Ia levar tempo demais, e os alemães podiam descobrir. Era um jogo de xadrez, e cada peça que se movesse custaria vidas.
Depois de muito pensar, Elias chegou a uma ideia. Uma que nunca mais esqueceria.
Entre os duzentos soldados presentes, cinquenta estavam feridos ou quebrados demais para lutar. Restavam cento e cinquenta. Sessenta e nove estavam de prontidão, protegendo pontos estratégicos da fortaleza. Inutilizáveis.
Sobraram oitenta e um.
Ele dividiu em dois grupos. Um com dez soldados, o outro com vinte.
Disse que todos marchariam durante a noite até a vila. Os homens não esconderam o medo — sabiam que poderiam ser fuzilados antes mesmo de chegarem perto.
— Eu pensei num jeito — disse Elias, firme. — Vamos lançar bombas de fumaça. Eles não vão enxergar nada. E enquanto a gente corre, nossos atiradores vão dar cobertura. Confie em mim.
Mesmo desconfiados, aceitaram. Era isso ou esperar a morte chegar.
Eles começaram a sair, um por um. Silenciosos, como sombras atravessando a noite. Quando o décimo homem passou pelo túnel, Elias chamou os outros vinte mais para perto.
— Agora vem o verdadeiro plano — disse, com os olhos frios.
Durante os três dias de preparação, Elias contou ao grupo que um dos soldados tinha sido morto por um tiro inimigo. Agora eram dezenove.
Mas aquilo era mentira.
Ele tinha pegado o homem tentando se comunicar com o comandante por um handtalk. Era um traidor de seu plano. Elias o agarrou por trás, aplicou um mata-leão e quebrou seu pescoço.
Logo depois, o rádio estalou:
— 018, está na escuta?
Elias congelou. Era a voz do comandante.
Sem pensar, sacou a pistola e destruiu o rádio com um tiro. Depois deu outro tiro na testa do soldado morto — para parecer que ele tinha morrido em combate.
Agora não tinha mais volta.
Na noite do plano.
Os dez primeiros soldados seguiram pela rota planejada, como se fossem o grupo principal. Iriam servir de isca.
Elias e os dezenove restantes fingiram avançar, mas se jogaram ao chão e começaram a se arrastar por outra direção, cobertos de lama e cinzas. Se camuflaram tanto que pareciam fazer parte da própria terra.
— Façam isso por suas vidas. Pelas famílias que esperam por vocês. — disse Elias, sério.
Eles não tinham escolha. Apenas assentiram. Tudo para o bem-estar de seus próprios familiares.
Os dez que avançaram pela fumaça foram brutalmente massacrados.
As metralhadoras alemãs engoliram o campo. Gritos abafados, corpos caindo. Então, de repente, alguém gritou:
— Feuer einstellen! — “Cessar-fogo!”
Tudo ficou em silêncio.
E foi aí que Elias e seus dezenove emergiram da terra, como se o próprio solo tivesse criado soldados.
Atacaram. Sem dó, sem hesitação.
Os alemães foram pegos de surpresa. Não houve tempo para reagir.
Elias avançava como um animal. Atirava sem pensar. Matava sem piscar. Gritava ordens, incentivava seus homens.
— Por eles! Pelos nossos! Vamos acabar com tudo! — gritava.
No meio do combate, entre o sangue e o barulho, viu algo que travou seu corpo.
Uma mulher, com uma criança no colo. Estavam escondidas atrás de uma parede destruída. Tremiam de medo.
Um soldado alemão estava atrás.
Elias pensou em sua esposa e em seu filho. Ele tentou gritar:
— Vocês…
Mas não deu tempo.
O soldado puxou o gatilho. As cabeças da mulher e da criança explodiram diante de seus olhos.
Um dos soldados russos correu em desespero, os gritos cortando o campo:
— Minha filha! Minha esposa! Não!
Antes que pudesse alcançá-los, também foi atingido. Seu corpo tombou, já morto.
Não eram civis alemães, eram russos.
Elias caiu de joelhos. Em choque. Os sons da batalha pareciam distantes, abafados, como se ele tivesse mergulhado num outro mundo. Um mundo onde aquela família podia muito bem ter sido a sua.
Pela primeira vez em muito tempo, Elias sentiu o peso da culpa. Um fardo que nenhuma vitória poderia apagar.
Sua surdez foi quebrada, de repente, pelos gritos vindos ao longe — vivos, triunfantes, quase irreais.
— Tomamos a vila! Nós conseguimos!
Mas para Elias, não havia conquista. Apenas o silêncio ensurdecedor do que foi perdido.
✥—————✥—————✥
Na manhã seguinte, Elias designou uma equipe para permanecer na vila em ruínas. As casas queimadas e as ruas cobertas de destroços agora serviram como abrigo e posição estratégica.
Enquanto os soldados montavam as barricadas improvisadas entre os escombros, Elias se afastou um pouco, sentando-se sobre uma viga caída, coberta de fuligem. Observava o horizonte, quieto. O céu carregado parecia refletir o peso em seu peito.
Elias se recordou de sua família.
Tirou uma folha amassada do bolso e começou a escrever.
“Querida Mara,
Eu sei que nenhuma carta, nenhuma palavra escrita por minhas mãos cansadas, vai desfazer o que fiz.
Parti sem olhar para trás, sem te ouvir, sem te respeitar. Isso me corrói todos os dias. Você sempre esteve certa — e eu, cego pelo orgulho, agi como um tolo.
Aqui, cercado por escombros e silêncios, percebo o que realmente importa. Você e nosso filho são minha vida inteira. Cada tiro, cada passo neste inferno, só me faz querer voltar… para o que deixei para trás.
Eu não quero mais essa distância. Não quero que meu filho cresça sem saber quem sou. Quero estar ao seu lado, ver o sorriso dele, sentir sua mão na minha.
Prometo: essa será minha última missão. Depois disso, estarei em casa. Por vocês. Por nós.
Te amo mais do que um dia soube dizer. Amo vocês com tudo o que sou.
Com amor, Elias”
Guardou a carta em uma pequena lata de ração vazia, selou com fita e amarrou à pata de um pombo-correio. Observou a ave levantar voo.
Enquanto isso, do lado inimigo, no acampamento alemão. Um grupo de três oficiais alemães se reunia num abrigo subterrâneo, iluminado apenas por lanternas penduradas. Os rostos sujos e maliciosos se curvaram sobre um mapa rasgado.
Um deles riscou um “X” sobre a posição onde sabiam que os inimigos acamparam.
— Sie nutzten diese Ruinen tatsächlich als Basis… — “Eles realmente usaram essas ruínas como base…”
Outro deles dizia com olhar de desprezo:
— Wie vorhergesagt. — “Como previsto”.
E o útil assentiu:
— Schickt die Hunde … und bereitet das Geschenk vor. — “Mande os cães… e preparem os presentes”.
Risadas ecoaram pelo abrigo, abafadas apenas pelo som distante de bombas sendo arrastadas.
Três dias se passaram. A vila destruída permanecia quieta, tomada pelo vento e pelas lembranças. Nenhum sinal dos alemães. Nenhum avanço, nenhuma ofensiva. Silêncio demais.
Elias sentou-se em meio aos escombros, com a cabeça baixa. Em suas mãos, uma carta recém-chegada e uma fotografia. Era Mara, segurando o bebe nos braços. Sorria. Por trás dela, uma esperança frágil.
Na carta, ela dizia:
“Elias,
Ainda estou tentando entender tudo o que aconteceu.
Foi difícil aceitar sua partida daquela forma. Me senti traída, magoada… como se um pedaço da nossa família tivesse sido arrancado sem aviso.
Mas, mesmo ferida, eu não consigo deixar de pensar no homem com quem sonhei construir uma vida. Pelo bem do nosso filho — e pelo que ainda resta de nós — estou disposta a tentar perdoar.
Meus pais voltaram para a cidade. Estão bem, perguntam por você. Eles gostariam muito de te conhecer um dia.
Ilan sente sua falta.
E eu também. Mais do que imaginava.
Volte para casa. Estamos te esperando.
Com amor, Mara”
Elias sorriu. Um sorriso pequeno, torto, bobo — mas verdadeiro. Pela primeira vez em dias, sentiu algo que não era dor.
Então veio a explosão.
O mundo estremeceu. Uma onda de calor atravessou o acampamento, seguida de um chiado sinistro. Bombas de gás. O ar se encheu de fumaça esverdeada. Gritos. Tosse. Corpos tombando.
Elias foi jogado contra os escombros. A pele do seu rosto começou a derreter como cera. Os olhos ardiam em chamas. Ouviu um zumbido insuportável, como mil abelhas furiosas dentro do crânio.
Rastejou. As mãos queimavam, mas rastejou até a foto.
A imagem de Mara e Ilan. Segurou com o que lhe restava de força. O papel queimava sua pele.
Apagou por um instante. No escuro, sussurrou para si mesmo:
“Querida…”
Mas algo reacendeu. O peso da promessa. A imagem da família. O dever.
“Eu sou um soldado!”
Abriu os olhos, agora vermelhos como brasas. O rosto desfigurado, a carne viva pulsando.
Levantou-se.
Cambaleante, encarou seus homens — ou o que restava deles. Alguns agonizavam. Outros tentavam se levantar. Pedaços de uniformes queimavam sobre suas peles derretidas.
Com voz rouca, Elias gritou:
— MORRAM COMO LENDAS, NÃO COMO SOMBRAS!
Algo despertou. Os soldados se ergueram como fantasmas de guerra. Rostos sem formas, olhos vazios, mas com fúria nos passos.
Na trincheira inimiga, os alemães riam. Comentavam entre si:
— Sie müssen sich wie Würmer winden. — “Devem estar se contorcendo como vermes.”
— Sie müssen es nicht einmal vergraben. Sie werden zu Asche werden. — “Nem vão precisar enterrar. Vão virar cinza.”
Então veio a névoa. Fumaça rastejou pelo solo. Bombas de fumaça. Eles franziram o cenho.
Muito tarde.
Os russos já estavam perto demais.
Tiros.
Alguns tombaram. Mas não paravam. Os corpos ardiam, mas continuavam marchando. A dor do gás era pior do que qualquer bala. Avançavam como condenados. Como mortos-vivos.
A linha alemã quebrou.
Soldados gritavam e corriam. Alguns atiravam de olhos fechados.
Mas era tarde demais. Elias e seus homens mergulharam no caos.
No quarto subterrâneo, os oficiais ouviram os disparos. Um deles abriu a porta com pressa, tentando entender o que acontecia lá fora.
E deram de cara com Elias. O rosto deformado. Sangue, fuligem e fúria.
Em suas mãos, duas granadas.
Os olhos alemães se arregalaram. Armas começaram a ser erguidas.
Elias puxou os pinos.
“Adeus, Mara. Adeus, Ilan.”
Luz. Silêncio. Fim.
✥—————✥—————✥
Alguns dias depois.
Mara estava sentada à mesa, em silêncio.
Nas mãos, uma carta oficial do exército. Sobre o colo, uma medalha de honra. Seu olhar fixo nas palavras. Sem forças para chorar.
Mas as lágrimas vieram mesmo assim.
“Algumas lendas nascem de verdades. Essa é uma delas.”
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