Capítulo 1: O Tigre Alado

MAIS UMA NOITE de vigília em Vento Gentil. Era um bom lugar para se viver — se perguntasse alguns anos atrás. As árvores eram enormes, suas copas tocavam os céus, enquanto folhas largas eram abrigo para o orvalho.
Naquele horário não seria um problema, mas logo insetos do tamanho de polegares aborreceriam qualquer um que precisasse fazer da mata, caminho.
Conforme as horas passavam, o calor também se fazia presente, o suficiente para as pessoas suarem sentadas. Se você não se importasse com isso, seria um bom lugar para viver.
Isolado dos grandes centros e das garras das dinastias mais influentes, Vento Gentil era terra de gente humilde e esforçada. Por isso, não mereciam passar por aquele tipo de coisa.
Postes se viam marcados com gravuras de um lobo, símbolo característico da facção local. Moedas que circulavam eram marcadas e o comércio, abusado. Cicatrizes vivas que provavam o quão esquecida estava Vento Gentil.
Uma caravana vinha de uma comunidade vizinha. Trazia consigo sacas de arroz, carneiro desidratado e uma variedade significativa de ervas para os tão culturais chás, muito consumidos na região.
Era fácil identificar, mesmo de longe, que não passavam de pai e filho desta vez. Um senhorzinho franzino, de poucos cabelos grisalhos e cavanhaque cansado, vestes gastas e chapéu de palha em forma de cone. O jovem, de poucas rugas mas com calos nas mãos, tinha uma musculatura típica de quem exerce trabalho braçal no campo.
Tal rota passara a ser pouco utilizada nos últimos meses, justamente pela alta movimentação de criminosos por ali. Não iria demorar para tomarem o trecho como seu.
Para um membro de baixo escalão do Dente de Ferro, era fácil tirar dinheiro da mão de um morador com medo de represálias, apenas ficando de plantão em um ponto estratégico da estrada de terra batida.
Esse tipo de prática era ainda mais cômoda, pois Vento Gentil não tinha nenhum tipo de guarda ou policiamento; não podiam pagar por equipamentos ou treinamento de homens jovens.
Quem quisesse fazer justiça, que fosse pelas próprias mãos.
A facção já era consanguínea de toda a sociedade da ilha, operando desde os pedágios indevidos até o pagamento por proteção. Conflitos e mortes entre moradores e bandidos, infelizmente, se tornaram comuns, assim como o desvio de recursos para fora da área dos povoados; pessoas estavam passando fome.
Entretanto, existia uma esperança que pairava nas sombras; espectros que vigiavam entre o verde.
Eram três os vadios. Com eles, dois cavalos roubados. Haviam chegado há pouco, antes do sol nascer. Estendiam panos e hastes de madeira para montar o posto de pedágio.
Fumavam, tagarelavam alto, irreverentes, como se aquela estradinha realmente fosse deles. O velho praguejou em sua cabeça quando os avistou.
Não podia ser, outra vez? Pegaram aquela rota pois seria mais rápido, e ainda saíram cedo de casa; de nada adiantou. Lá se ia parte da renda da colheita e de seus animais.
— Pode parar, morador — ordenou o primeiro deles, fazendo questão de mostrar que portava um punhal em uma das mãos. — Primeiramente, bom dia. Vamos, vinte e cinco por cento do que tem aí; em dinheiro.
— Não temos nada! — manifestou o senhor, colocando uma expressão de temor no rosto de seu filho. — E essa terra não é de vocês; não vou pagar nada de novo!
O homem riu com desprezo e lançou um breve olhar aos seus colegas.
— Ora, é só colaborar e tudo fica bem. — Os outros dois capangas cercaram a carroça — Sempre tem um querendo bancar o herói… Para que tornar as coisas difíceis?
Ligeiro, o filho entrou em luta corporal com um deles, mas foi imobilizado. O velho até se debateu, tentando lutar por seu trabalho, mas logo soube que nada do que fizesse adiantaria.
Derrotado mais uma vez, viu os malandros confiscarem tudo de valor que havia no carregamento, tomando para si as sacas e produtos, deixando uma miséria para trás.
Nos arredores, passos leves sequer faziam barulho na selva. Uma algazarra chamou a atenção; logo agora, no final da vigília. Mesmo com a manhã nascendo, eles ainda se moviam com cautela entre folhagens avantajadas e galhos retorcidos. Eram como feras, acostumadas com a caçada.
Os olhos da gaviã iam longe:
— É, são eles. — Mesmo entre a mata e atrás da máscara, sua visão era além do alcance — Três homens, dois cavalos. Pedágio.
O tigre vinha logo atrás, tão mascarado quanto. Não podia ver como ela, mas tinha fé em cada palavra. Uma presa fácil assim na região sempre causava uma excitação bestial nele; algo que não sabia explicar.
As vestes negras da dupla se misturavam com o verde-oliva, mas isso não era necessário. Kiro, o tigre, sumiu em um raio de sol qualquer.
O filho do mercante esperneava. Xingava, mesmo com os pulsos amarrados e se contorcendo, inútil, na terra. Não demorou para que um dos vagabundos atirasse uma pedra em sua cabeça, suficiente para vermelho quente escorrer.
O sentimento de impotência é dos piores a ser sentido pelo homem. Ver aquilo corroia o velho por dentro, mas nada podia fazer com seus músculos cansados e ossos quebradiços. Uma lágrima solitária correu o rosto do senil.
Sentiu algo por trás.
Um movimento sutil no ar; um esvoaçar de folhas mortas. Os três bandidos estavam em seu campo de visão, ali, na frente dele, tomando um chá que fumaçava no frio da alvorada — talvez estivesse delirando.
Os três homens se calaram de súbito; a chaleira estava flutuando no ar. Sem reações, o primeiro que deu um passo atrás recebeu uma jorrada de chá efervescente, borbulhante, em sua face. Grunhiu pesado, desesperado, enquanto cambaleava para trás.
Foi tudo muito rápido.
Os outros dois capangas recuaram, extasiados. Uma miragem se formou na frente deles e, do vazio, a imagem de um homem, de vestes negras, capuz e máscara de tigre, foi concebida.
Prostraram-se, como insetos prestes a serem esmagados. Sabiam bem quem era aquela figura. Todo aquele orgulho desapareceu de um momento para o outro.
— Por favor, Tigre Alado! Eu peço perdão! Eu peço perdão! — Kiro não parou de caminhar lentamente em sua direção.
O outro achou uma boa ideia correr. Por um mísero instante, pensou que escaparia com vida. Mas foi apenas por um único mísero instante.
Dois pés voaram em seu peito vindos de cima, de Yuna, a gaviã, que balançara em um galho. O vadio caiu para trás, fraco e sem reação. Antes que pudesse entender o que acontecera, duas foices curvas estavam rentes à sua goela.
Agora não adiantava mais gemer ou implorar; já estava nas garras da gaviã. Um corte limpo, em xis, abriu sua garganta antes que pudesse reclamar algo. Ele tentou conter a hemorragia com as mãos; patético. Restava-lhe morrer.
— Olha, calma — clamava o bandido, na frente de Kiro — eu devolvo a mercadoria e só, beleza? — Ele caiu para trás, se arrastando de costas; o tigre não parava de avançar — Pode me prender! Me prenda! É isso que quer, caralho?!
Kiro suspirou, desinteressado e indiferente. Odiava quando os criminosos eram tão valentes contra os indefesos e tão insignificantes contra ele. Isso lhe dava mais asco do que quando achavam que tinham alguma chance.
— Você sabe por que eu não dilacero sua cabeça agora? — O homem arregalou os olhos e assistiu o tigre pegar o punhal que ele mesmo usara para ameaçar os mercadores — Porque eu preciso dela reconhecível.
Ágil, golpeou com a lâmina o flanco esquerdo do infeliz; um corte entre as costelas. Arrancou a faca girando.
O outro homem, que teve o rosto fervido, tropeçava sozinho, sem conseguir ver. Kiro o jogou no chão como um boneco. Esfaqueou-o nas costas, pois o mísero caiu de bruços.
Kiro encarou o velho e seu filho.
— Querem matá-los? — Os dois jaziam atônitos, sem conseguir falar nada. Kiro bufou desapontado. — Não? Tudo bem.
E então o berreiro não demorou muito para se transformar num silêncio sepulcral. Foram várias facadas: no tórax, estômago, pescoço. Sangraram até morrer.
Yuna já estava ali, desatando os nós dos comerciantes. Para ela, aquela cena era corriqueira. Aqueles homens tinham uma recompensa sob sua cabeça, um bom dinheiro e uma ameaça a menos na vida da gente vulnerável de Vento Gentil.
— Sinto que tenham que presenciar isso — dizia Yuna, com sua voz abafada pela máscara —, mas antes eles do que vocês, não? Estes não serão mais um problema.
— O-obrigado, senhora. — O velho não sabia bem o que dizer enquanto se levantava. Ousou então perguntar: — Vocês são o… Tigre Alado? — proferiu quase como se fosse um pecado.
Kiro e Yuna se entreolharam e um podia saber que o outro deu um sorriso de canto. Alguém os nomeou assim e o nome pegou.
— Peguem as coisas de vocês e sigam seu rumo — respondeu Yuna. — Não é seguro ficar mais por aqui. Levem os cavalos também.
Os mercadores começaram a reaver seus pertences. Kiro e Yuna analisavam de perto os cadáveres, como se confirmassem que eram as pessoas certas.
Enquanto Yuna limpava suas foices no tecido grosso de um dos mortos, sentiu o velho se aproximar.
— Tome, pegue — O senhor lhes empurrou uma saca de arroz e um embrulho de carne, cordialmente — É tudo o que temos; por terem salvado nosso trabalho de tanto tempo.
— Não, nada disso — respondeu Kiro, de imediato — Vendam no povoado, como iriam fazer de qualquer forma. Esse é o nosso trabalho.
Yuna suspirou; não recusaria carne nas condições em que se encontravam.
— Podem ficar com isso também — completou o tigre, lhes entregando o punhal. — Prestem atenção por onde andam. Não estaremos por perto a todo momento.
O trabalho ali estava encerrado. Um trocar de olhares foi suficiente para a dupla recolher as cabeças e alguns bens das carcaças e se retirar. Carregar cabeças não era um problema; bastava colocá-las em um saco de pano junto a algo que comprovasse que eram mesmo do crime organizado.
Selva adentro, o tigre levava duas e a gaviã, uma.
— Podíamos ter sido menos espalhafatosos — reclamava Yuna, ajeitando a vara improvisada no ombro, que carregava a saca amarrada na ponta. — O sangue manchou todas as nossas roupas.
— É importante passar a mensagem. — Carregava um saco em cada mão. — Aqueles dois vão contar para mais dois, e estes, para mais dois. Uma hora, esses infelizes vão perceber que não vale a pena o risco que correm.
— Mas não é normal nos acostumarmos com isso.
— Eu sei, eu sei. Nosso caminho não é aqui.
Autoridades de Vento Gentil prometiam um bom valor em dinheiro pela cabeça de certos malfeitores. Era comum que cada um que fizesse mal às comunidades entrasse na lista; bastava, para recolher a recompensa, que levasse o corpo até o posto de troca e comprovasse que ali estava quem deveria estar.
Uma negociação simples e rápida. Não era de se estranhar que membros, mesmo da mais baixa estirpe, do Dente de Ferro figurassem entre os procurados. O Tigre Alado vinha sendo o recordista de neutralizações; já era chegada hora dos bandidos se aprumarem.
O posto em si não passava de uma simples construção; um galpão erguido com madeira sobre laje de pedras. Encontrava-se quase que escondida na floresta, uma vez que os moradores acreditavam que trazia má sorte e maldições para a região.
Ficava lá, de plantão, uma figura chamada de trocador; nada mais que um senhor de meia idade, de cabelos ralos e cara enrugada. Devia ser o único a já ter se acostumado com a presença daqueles mascarados, trajados de negro e cheirando a morte.
Quando surgiram entre os troncos cerrados, o homem já sabia o que esperar. Todavia, a presença da dupla impunha respeito.
— De onde são esses? — indagou o velho.
Kiro jogou as cabeças na bancada de madeira, desencapando do saco. Todo aquele rubro seco tingiu seus sacos de pano.
Olhos mirados no vazio, sem vida, e a boca semiaberta; havia tempos que não o impactava mais. Qualquer outra pessoa sentiria o estômago revirar, mas eles não. O ofício os tornara insensíveis, talvez.
— Cobradores de pedágio — Yuna respondeu. — A estrada próxima ao córrego está limpa agora.
O trocador examinou, traçou paralelos com os retratos falados e um ou outro artefato que pudesse confirmar a ligação deles ao Dente de Ferro.
— Muito bem, parabéns mais uma vez. — comentava o trocador, preenchendo, à tinta, um documento. — Esses vermes estão na lista, quem paga por eles é a Vila do Pardal; aquela perto do porto. — E colocou o dinheiro sobre a mesa.
Não era mais do que um punhado. Kiro recebeu sem questionar, mas os olhos de Yuna buscavam algo a mais.
Não, o pagamento estava correto; o homem não tentou passar a perna neles. Era isso mesmo, as vilas estavam pagando menos.
— Sabe, fico muito feliz de vocês existirem — dizia o trocador, fazendo os preparativos para seja lá qual fosse o processo seguinte — Queria saber quem são por trás dessas máscaras, no final das contas. São heróis, não acham?
Kiro contava a dúzia de moedas que recebera.
— Talvez.
— Queria perguntar aos senhores… — Antes que terminasse sua sentença, os espectros sumiram. Sempre faziam isso.
— Não é o suficiente — murmurou ela, quando se afastaram.
— Ficaremos vivos até amanhã.
A comida era sempre a mais simples possível. Arroz cozido, carne ressecada e um chá qualquer. Não era lá um cardápio variado ou luxuoso, mas calava o estômago.
Sem capuz ou máscara, Kiro revelava cabelos negros com uma mecha enbranquecida em sua franja. Assim como Yuna, trazia profundas olheiras e um semblante indiferente, como quem não dorme direito há muitos dias.
Essa era a vida que levavam; a vida que escolheram levar. Não era comum terem carne de cervo para o almoço. Puderam comprar uma porção na feira do povoado próximo; o preço estava baixo pois logo estragaria. Não era o melhor dos mundos, mas comida azeda era melhor do que passar fome.
Normalmente, o que tinha eram apenas os órgãos que ninguém comprava ou o tutano do osso que sobrava nas barracas; carne de verdade, mesmo que passada, era uma iguaria.
Yuna lavava os curtos cabelos negros no rio fino que corria ali. Lavar as mãos, lavar o rosto. Assim, já tingia a água de vermelho. Seus olhos brilhavam âmbar quando não enxergava como um gavião.
Kiro a assistia banhar enquanto comia. Gostava de a admirar; era a única pessoa que podia chamar de sua. A vista era tão doce que mal percebeu ingerir uma mosca do tamanho de uma moeda no meio de uma colherada de arroz.
Embora estivesse cem por cento com ela — e quis assim —, as palavras de Hu ainda iam e voltavam em seu imaginário.
Você tem um caminho, meu filho. E precisará persegui-lo. Um fardo que somente você pode carregar.
Terminou sua refeição.
Yuna sentou-se ao seu lado e, gentil, deixou sua cabeça descansar no ombro do tigre. Foi abraçada com carinhoso calor.
— Kiro… até quando vamos viver assim?
Ele observou as cinzas da fogueira apagada.
O caminho.
— Até quando for preciso — enfim respondeu, firme — Até quando não aguentarmos mais estar um do lado do outro.
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