O RESPIRAR DA SELVA ABAFAVA os sons por conta própria. A madrugada abraçou Vento Gentil como uma coberta, engolindo movimentos e guardando segredos. 

    Cada galho quebrado, cada folha morta pisada, soava como um alarme na trilha quase invisível pelo dossel fechado. Kenshimaru e Rohan seguiam se esgueirando pelo negrume da floresta.

    — Estamos perto — sussurrou o espadachim, com olhos fixos à frente.

    Rohan, alguns passos atrás, fazia a segurança da retaguarda e dos flancos, segurando firme a empunhadura da Querida.

    — Nem precisava dizer — murmurava — Sinto a catinga de rato daqui.

    Um pequeno aclive se revelou logo após, assim como previsto quando mapearam o lugar na noite anterior. Entre troncos grossos cobertos de musgo e arbustos de buvas, deitaram-se de bruços para observar a movimentação no alvo.

    Ali estava a construção pouco rebuscada de madeira escondida no meio da mata, entre palmeiras e angelins — feita mais para se ocultar do que se impor. O galpão continuava solitário; nenhuma luz, nenhum barulho, nenhum vigia. O silêncio só era quebrado pelos grilos e o coaxar dos sapos. 

    Kenshimaru não conseguia sentir confiança na incursão.

    — Estranho — disse entre dentes.

    — Mais do que estranho — Rohan cochichou de volta. — Já vi essa história antes, Ken.

    Pouco tempo antes, Rohan perdera um parceiro numa emboscada de circunstâncias parecidas. Estar no meio da guerra de facções não é exatamente o melhor lugar para se enfiar.

    Kenshimaru estreitou os olhos. Meia hora e nada. 

    — Vamos avançar. Cuidado redobrado.

    A discrição era a máxima possível. Talvez, estivessem tomando cuidado demais, mas irem com sede ao pote e acabarem emboscados não era uma possibilidade. Por mais preparados que os mercenários pudessem ser, não fariam frente a um número grande de inimigos.

    Circundaram a mata no perímetro do galpão, mas sem ouvir nada além dos amontoados de costelas-de-adão se debatendo com a brisa. 

    Os olhos do ronin perscrutavam pela penumbra. As inúmeras patrulhas e incursões que participou quando ainda servia a família Yotawan o ensinaram, na prática, que os maiores perigos nunca vinham do que estava claro, mas sim do que se escondia.

    Descendo pela encosta, o armazém se tornava cada vez maior. 

    Suas pupilas dilatadas tentavam flagrar qualquer detalhe sob a luz da lua, mas nada se revelava. O cheiro de umidade, conforme se aproximavam, começou a se misturar com algo mais… sutil. Fumaça; fogo. Brasas apagadas há pouquíssimo tempo. 

    Um arrepio subiu a espinha do ronin.

    Um assobio agudo cortou o ar e a mata ao redor ganhou vida. Sombras saltaram de dentro dos arbustos na direção de Kenshimaru. O ronin recuou com um salto brusco e sem jeito, mas que o livrou de cortes de lanças improvisadas e espadas enferrujadas. 

    — Porra, eu sabia! — Rohan sacou Querida, em riste.

    Ali, estavam em desvantagem completa. 

    Os homens vestiam trapos e erguiam armamento barato, mas bradavam como hordas de guerreiros num campo de batalha. Avançaram para cima com adrenalina ímpar, fazendo com que os mercenários tivessem de recuar. Não tinham condições de lutar confinados naquela mata fechada.

    Os inimigos empurraram Kenshimaru e Rohan para a clareira aberta em frente ao armazém. Deviam ter mais uma dezena os esperando, com um ou outro saltando de cima das árvores. 

    O próprio contrato era uma armadilha? Alguém vazou o ataque? Agora, nada mais importava.

    Kenshimaru empunhava suas duas lâminas na posição padrão da Lótus Carmesim. Rohan cerrava os dentes, se deixando inflamar pelos urros dos criminosos. Juntos, de costas coladas, cobriam os pontos cegos um do outro.

    O primeiro grupo avançou desordenado contra Kenshimaru. Um movimento limpo, elegante, rasgou o calcanhar do primeiro e o torso do segundo — aquelas sim eram espadas de qualidade, que cravaram fundo na carne. 

    O ronin movia-se como água. 

    Outro tentou o golpear, em uma investida frontal, porém viu sua lança voar longe com o bloqueio de Kenshimaru e seu bucho ser aberto como um saco de frutas em um corte lateral; as tripas tingiram os pés do ronin de vermelho. 

    Um último ainda tentou atacar; acabou afogando em seu próprio sangue depois de um perfurar na traqueia. 

    Rohan, por sua vez, calculava menos seus ataques. Sua espada, a Querida, não era como as armas de seu parceiro. Flexível na medida certa, retia propriedades até mesmo de um chicote. Entretanto, tão afiada quanto as presas do ronin. Sua maior vantagem era a imprevisibilidade de seus ataques. Por isso, conseguia golpeá-los de modo fatal e ainda atacar com as pernas e punho livre. 

    Dois tiveram a última visão da Querida serpenteando à sua frente antes de tudo escurecer. Um terceiro investiu; Rohan girou no próprio eixo e arrancou-lhe os dentes com um chute rodado. Tentando aproveitar a brecha, mais um teve o rosto dilacerado pela espada dançante de Rohan enquanto tentava pegá-lo pelas costas. O chão já se pintava de rubro.

    Mas eram muitos.

    Kenshimaru não entendia como; mais e mais surgiam da mata como ratos do esgoto. Ambos fizeram do galpão a defesa de sua retaguarda, recuando cada vez mais. 

    Cortes, perfurações, ataques precisos. 

    Mesmo que fosse nítido que aqueles bandidos não tinham algum treinamento em artes marciais, o número era alto demais. Nem mesmo o efeito manada de ver aliados morrendo parecia fazer os homens recuarem. Olhos estatelados, urros vis, bocas semiabertas — uma imagem grotesca.

    — Ken! — berrou Rohan, fendendo mais um crânio. — Essa corja tá toda drogada! — E degolou mais outro. — E são muitos!

    — Mantenha o flanco! — respondeu, recuando passo a passo.

    Em meio à matança, o barulho das armas misturava-se aos grunhidos e berros, ao quebrar de galhos e uivos dos moribundos. 

    Kenshimaru desviou por poucos centímetros de uma lâmina que lhe tomaria o rosto, contra-atacando no ato a jugular do rival com precisão sem igual. 

    Era quase automático para ele. 

    O sangue jorrou em seu rosto; nem sequer piscou. Continuava a partir tendões e decepar membros — mesmo assim, a maré simplesmente não cessava. Um tapete de carne se estendia no gramado, mas os criminosos não paravam de lutar.

    Rohan raciocinou rápido. Com sua mão livre, tateou o frasco de óleo inflamável guardado em um armazenamento de suas vestes. 

    — Não vai adiantar, Ken! — Desvencilhou-se de um bandido, o jogando contra os outros com um chute na barriga. — Me dê cobertura!

    Kenshimaru não respondeu, só executou. 

    Seus músculos começaram a querer parar, seus ombros queimavam tensos. Morreria se parasse por um instante. 

    Rohan foi ligeiro. Arremessou o vidro recheado de óleo contra a madeira do galpão e buscou a pederneira em seus bolsos.

    Enquanto isso, o espadachim cobria suas costas como podia. Aquilo já estava passando do limite que ambos poderiam suportar sozinhos. 

    Outra mão amputada, mas, agora, num movimento mais lento. Abriu espaço para um soco nas suas costelas. Logo, um pisão na canela. Depois, uma adaga por pouco não cravada em sua clavícula. 

    Kenshimaru começou a ser engolido pela horda.

    Era impossível contar naquele momento, mas Rohan jurava ter visto mais de uma dezena de inimigos de pé quando tentava acender o líquido inflamável. 

    Kenshimaru bloqueou uma investida de sabre e rasgou outra jugular. Arfava, mas sua bandana não deixava o suor arder seus olhos.

    Por um segundo, o ronin se descuidou. 

    Um passou por ele, indo direto para Rohan. O sibilar inconfundível do sabre inimigo se aproveitou disso, cortando o ar para, finalmente, conseguir rasgar carne de mercenário. 

    Em vão. 

    Kenshimaru defendeu com ambas as espadas, em xis, mais uma vez não aceitando ser ferido.

    A manobra o salvou do que seria um ataque mortal, mas abriu seus dois flancos. Sentiu um chute bruto, sem técnica, mas forte o bastante para o jogar no chão. 

    Não teve tempo de pensar; apenas de olhar fundo nos olhos do homem que tiraria sua vida. 

    Explosão.

    O impacto foi tão estrondoso que jogou Rohan metros longe, rolando até bater num tronco. O carrasco de Kenshimaru perdeu a compostura quando o clarão iluminou tudo e o calor invadiu o campo de batalha como uma onda de impacto. O armazém estava em chamas.

    Kenshimaru se levantou atordoado, reavendo suas espadas. O baile das lâminas voltou. 

    Rohan, por outro lado, agora estava desarmado e com queimaduras graves por todo o corpo. Suas sobrancelhas, suas roupas, sua pele; tudo sumiu num único instante.

    Aqueles que a dupla não tinha conseguido matar reforçaram os inimigos ainda de pé. Kenshimaru não sabia mais o que fazer. Seu raciocínio estava lento, enevoado, ao passo de sua velocidade, agora defasada. 

    A quantidade, muitas vezes, supera a qualidade. O espadachim recuava, e cada passo que cedia era um pingo a mais de confiança para os criminosos.

    O calor era escaldante, quase impossível de se aguentar. De costas para o incêndio, o ronin evitava que fosse cercado. Porém, ele mesmo estava em seu limite. A fumaça invadia brusca suas narinas; o estalar das vigas de madeira em chamas o tornavam quase surdo, dificultando a previsão dos movimentos adversários. 

    Restavam sete; talvez seis.

    Sentia a respiração acelerada e os braços pesados. Por mais técnica que possuísse, até mestres tombavam quando a maré inimiga era forte demais.

    Não… eu não vou morrer aqui; pelo menos não ainda. 

    Cortes transversais evitaram investidas inimigas. 

    Mãe, eu vou… 

    Mais uma defesa, dessa vez contra um chute lateral. 

    … Encontrar o meu irmão!

    Alguém berrou nas sombras. 

    No segundo seguinte, outro. Mais um e mais outro. O criminoso em frente a Kenshimaru jogou os olhos ao redor, confuso, mas logo encontrou explicação. 

    Abrupto, encarou o ronin:

    — Filhos da-

    Um zunido prata rasgou o ar, um movimento circular oriundo do meio da mata. 

    Decapitado. 

    Os olhos daquele homem, de repente, estavam vazios, perdidos. Sua cabeça pendeu para o lado e fez um barulho seco ao cair na relva, à medida que o corpo inclinou-se lentamente para cima de Kenshimaru, apenas seguindo com os olhos a trajetória daquele brilho metálico, até sumir no escuro. 

    Jogou o corpo decapitado de lado, assustado. Não podia acreditar no que seus olhos registravam. 

    Um bandido foi erguido no ar, pelo colarinho, mas nada podia ser visto, nem mesmo pelo clarão do incêndio. Golpes pareciam sair do nada, do próprio ar, humilhando os criminosos que sequer conseguiam entender o que enfrentavam. 

    Na hora, Kenshimaru também não conseguia concatenar os fatos.

    A foice voadora voltou, alternando rota em pleno voo. Dançou no ar até cravar fundo no tórax de um rival que tentou fugir. 

    Um homem de vestes negras se formou no meio do nada, no meio da clareira; capuz, máscara branca. Em volta de suas mãos espalmadas cobertas por luvas, uma energia anormal começou a borbulhar. 

    Kenshimaru nunca tinha visto algo assim. Assistia aquele ser aniquilar os patéticos emboscadores um a um, com uma facilidade que fugia às habilidades de um combatente comum. O ronin ainda segurava firme suas espadas, mas seus olhos estavam arregalados e a mente, suspensa. 

    Só conseguia lembrar dos contos superfaturados daquele pobre estalajadeiro. Não era possível que fosse tudo verdade, aqueles boatos de taberna. Mas ali estava. 

    Aquele ser não deixava escapar um sequer. Lâminas de pura energia cortavam carne como manteiga, ainda mais facilmente do que as famigeradas e icônicas espadas da Lótus Carmesim.

    — Vocês não são daqui. — A voz feminina veio de sua direita, caminhando em direção dele lentamente. — Mercenários, estou certa?

    Aquela figura se vestia igual ao aniquilador. Mascarada, vestes negras e carregava a foice recém-recuperada do tronco do outro. 

    — Me surpreende terem durado tanto. — Seguia, assistindo com ele o tigre terminar o trabalho. — Eram muitos; estavam por toda a parte. — Em um breve olhar, notou a confusão do ronin. — Não somos inimigos, viu? Viemos ajudar.

    — Um serviço… nada além disso… — Kenshimaru estava imbuído em confusão. — O quê… o que são vocês?

    Yuna não o respondeu de imediato. O tigre arrancou a perna do último, sem mais cerimônias. Deixaria-o sangrar até a morte.

    Rohan se aproximava rastejando, vagaroso, entre gemidos e tosses.

    — Devo um dinheiro pra aquele velho idota… merda. — Seu corpo tremia e era evidente a luta para puxar o ar para dentro de seus pulmões.

    De pronto, Kenshimaru o ajudou a se erguer, fazendo-o urrar de dor no encostar das feridas. Passou o braço do amigo por cima de seu ombro. 

    Rohan estava irreconhecível: sem sobrancelhas e com o escalpo em carne viva, assim como suas mãos e antebraços. A roupa colou na pele com o calor e mal sabia onde fora parar Querida.

    O laranja infernal iluminou Kiro quando se aproximou deles. Permanecia calado, imóvel, como uma sombra. Kenshimaru sentia sua presença, mas as palavras não saiam de sua boca. 

    Yuna apenas trocou olhares com seu parceiro. 

    — Voltem para o povoado — dizia Yuna, dando as costas junto a Kiro. — Vão encontrar ajuda por lá.

    O ronin respirou fundo. 

    Algo o dizia que não deveria desperdiçar aquele encontro com mero silêncio. Tateou suas vestes com pressa, antes que fossem embora de vez. Apanhou um amuleto que sempre carregava consigo, mesmo depois de tanto tempo. 

    Pétalas que se abriam, delicadamente entalhadas em jade vermelho. A Lótus Carmesim. Uma peça rara. Um símbolo de tradição e honra. Uma parte do passado de um ronin.

    — Aceitem isto — disse, erguendo o presente. — Não tenho palavras suficientes para agradecer, mas… este amuleto representa vida e compromisso. Por salvarem nossas vidas.

    Os espectros pararam, se virando lentamente. Yuna inclinou a cabeça, surpresa pela oferta. Presentes assim nunca eram dados desta maneira; pensou se devia recusar. Contudo, o respeito silencioso nos olhos do ronin a fez estender a mão. 

    Tomou-o com delicadeza.

    — Recebo em nome do Tigre Alado. — Algo clicou na mente de Kenshimaru.

    Kenshimaru fixou o olhar no tigre mascarado, mas não conseguia dizer nada. Kiro manteve-se imóvel, indiferente à troca, pronto para sumir na noite. 

    Por que o espadachim não conseguia agir? Há muito tempo não se sentia tão… pequeno. 

    Nada veio à sua mente.

    O vento soprou, espalhando fagulhas da madeira em brasa. O fogo consumia o galpão até seus alicerces; logo, não restaria nada além de cinzas. 

    Rohan rangeu os dentes, cedendo à agonia.

    — Bom… missão cumprida. — Encarou Kenshimaru de canto, que continuava com olhos fixo na dupla. — Vamos embora… pelo amor dos Arhats.

    A gaviã guardou o presente e acenou leve. O tigre tocou seu ombro e, no vazio, a imagem do Tigre Alado se esvaiu no ar. Apenas se desfez como uma gota de leite num balde d’água.

    Outro arrepio correu a espinha de Kenshimaru. 

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