— MALDITOS FILHOS DE UMA… — CHIOU DE dor antes que terminasse a frase.

    Foi um longo caminho até ali: a manhã do dia seguinte. O sol rasgava as copas das árvores quando os trabalhadores já estavam a todo vapor lá fora. Vozes dispersas pelas vielas de terra batida, barulho de criança, som de carroça; o respiro do cotidiano. 

    Em uma casa simples, de paredes de madeira e teto de palha trançada, Rohan repousava sobre um colchão baixo, improvisado com palhas e cobertores gastos, ao lado de Querida, recuperada. 

    O corpo do mercenário estava coberto de faixas, muitas ainda úmidas do bálsamo que as curandeiras lhe aplicaram. Sua respiração, pesada, era entrecortada por resmungos de dor.

    — Como que vou voltar… pra minha mulher assim? — Reclamava desde de que acordou. — Meu moleque, então… nem vai me reconhecer.

    As curandeiras também fizeram questão de raspar o restante do cabelo que não havia sido queimado.

    — Agradeça por estar vivo. — Kenshimaru estava sentado em um banquinho ao lado, massageando seus próprios hematomas. — Por um triz não viramos banquete de urubu.

    As moças ainda se ofereceram para lavar as roupas ensanguentadas de ambos depois que souberam que lutaram contra o Dente de Ferro. Deram-lhes vestes leves e surradas para usar nesse meio tempo.

    — Não lembro de quase nada depois da explosão… se quer saber. — O calor de um raio de sol já era suficiente para fazer doer as queimaduras. — Mas lembro bem que fomos emboscados.

    Kenshimaru lançou os olhos pela paisagem além da janela; o cheiro forte de arnica da pomada que usava para aliviar seus ferimentos tomava de assalto seu olfato.

    — Estávamos matando muitos membros da facção. Alguém quis nos eliminar.

    — Por isso o maldito… do contratante não quis se encontrar pessoalmente com a gente. — Rohan ainda tinha dificuldade para respirar. — Imagino o quanto ele pagou… para contratar aquele monte de ratos.

    Kenshimaru ficou em silêncio. 

    O contrato falso pouco o enfurecia naquele momento. Na realidade, sentia-se esperançoso depois de muito tempo. Entretanto, não conseguia digerir o fato de não ter conseguido falar no momento mais importante. 

    Aquelas habilidades, aqueles movimentos, o relato do estalajadeiro. Não poderia ser mera coincidência. Se fosse, seria de crueldade ímpar. 

    Fechava os olhos, rememorava a cena com riqueza de detalhes. O kouen formando sabres, a invisibilidade… leu sobre isso; sabia que só poderia ser ele.

    — Se lembra dos mascarados? — Sua voz era paciente.

    Rohan arqueou a sobrancelha, como que tentando puxar uma memória do fundo da mente.

    — Hm… um pouco, talvez. Não com clareza… — Tossiu dolorido. — … Mas tenho certeza que eram dois.

    — Lembra se o cara usava luvas? — A pergunta saiu estranha, quase que um pensamento dito em voz alta. — Claro que não; o que é que estou falando… — Passou as mãos no rosto. — Lembra de algo mais? Viu o cara lutar?

    Rohan pelejava para falar cada frase, então preferiu apenas negar com um singelo movimento de cabeça. 

    Kenshimaru expirou frustrado. Não conseguia acreditar que se deixou paralisar pela situação. Nem ao menos o mais óbvio dos sinais; as palmas das mãos

    — E o que que tem de tão especial… esse Tigre Alado?

    — Tudo. — O ronin endureceu a fala. — Pode achar que enlouqueci, mas… tenho quase certeza que esse cara é-

    Três toques na porta.

    Uma das curandeiras trazia consigo um caldo grosso de legumes e frango, desenhando uma coluna de fumaça quente que vacilava até o teto de palha.

    — Precisa comer, senhor Hamina. — Sua voz era angelical para os moribundos, mas chegara num mal momento.

    Ela dava comida na boca de Rohan, já que ele mesmo não conseguia mexer bem seus braços. 

    Kenshimaru seguiu ali, sentado de cotovelos apoiados nos joelhos. A mulher falava de coisas quaisquer; assuntos supérfluos que não desviavam o foco de Kenshimaru de seus devaneios contidos.

    — … e agora meu marido vendeu sete sa-

    — O que sabe sobre o Tigre Alado? — O espadachim cortou o clima como suas lâminas.

    A moça gaguejou e procurou palavras. Pensou por alguns segundos enquanto o silêncio desconfortável se estendia no aposento. 

    Mesmo que a figura já vivesse no imaginário popular de Vento Gentil, muitos não achavam de bom tom proferir tal nome em voz alta ou em demasia.

    — Bem… muitos os têm como guardiões…

    — Alguém nesta vila tem contato com eles?

    — Err… — Voltou a alimentar o ferido, como se fugisse do olhar do espadachim. — Acredito que não, senhor. Nem sequer sabemos se é real mesmo…

    — Pois o Tigre Alado existe. — Kenshimaru declarava firme. — E eles que nos salvaram ontem.

    Ela concordou, sem jeito. O mais desconcertante dos silêncios se seguiu.

    De repente, as colheradas eram cada vez maiores; agora, estava com pressa. O caldo logo se esgotou da tigela, com a curandeira fazendo questão de deixá-los a sós novamente.

    — Tá dando uma de… esquisito. — Cada palavra nascia de esforço. — Parece até que… viu um fantasma.

    — Talvez tenha mesmo.

    Rohan fechou os olhos, cansado. Respirou fundo e se ajeitou nos cobertores.

    — Partirei assim que conseguir andar, Ken. Pode ir se quiser; vou ser bem cuidado aqui.

    — Vou ficar…

    — Que bom amigo você é…

    — … até reencontrar esses espectros. 

    Rohan suspirou, sentindo, enfim, seus músculos relaxarem.

    — Então não é tão amigo assim…

    Kenshimaru entrelaçava seus dedos, sua ansiedade crescia ao teorizar que aquele ser poderoso pudesse ser o objetivo final de sua busca. 

    — Vou reencontrar o Tigre Alado, e então vou conferir as marcas nas mãos — proclamava — Não posso dar as costas agora, ainda não. Eu vi ontem, perante meus olhos; ele é o Deva, Rohan, eu sei que… — quando Kenshimaru o olhou de soslaio, confirmou que seu colega havia caído no sono.

    Kenshimaru, porém, permaneceu desperto, fixando o olhar no horizonte além da janela.


    A caverna dava para um bom reduto contra o mormaço lá fora. O calor escorria em Vento Gentil como um martírio, tão intenso que causava letargia no povo. 

    Dentro da gruta, escondida entre paredões de musgo e vegetação cerrada, a sombra e as pedras úmidas davam a trégua necessária.

    As vestes se estendiam ao longo de um varal improvisado, escaldadas por um dos poucos pontos onde raios de sol tocavam. 

    Seminus, o tigre e a gaviã aguardavam movimentos na selva.

    Kiro estava recostado na refrescante pedra molhada, resfriando seu corpo. Girava em seus dedos o amuleto que aquele mercenário os havia presenteado. 

    Yuna, alguns passos além, tratava de afiar suas foices, fazendo o som ritmado da pedra tocando metal ecoar pelo interior da gruta.

    — É da Lótus Carmesim — disse ela, sem tirar os olhos da sua tarefa.

    Aquele nome não dizia nada a Kiro. Viveu boa parte da sua vida isolado no Templo de Hu e outra parte vagando pelas terras baixas do leste. Yuna, por outro lado, já passou por poucas e boas. Como cresceu em Muriyama, no oeste, tinha vastos conhecimentos que Kiro nem sequer imaginava. 

    No final das contas, era ela a responsável por ensiná-lo acerca de assuntos por vezes triviais para a maioria. Sabia ler os ideogramas que Kiro tentava decifrar com dificuldade.

    — São uma academia de espadachins — continuou, percebendo que Kiro mal esboçou reação —; formam Mestres de Armas há gerações.

    — Mestres de Armas?

    — Dominam artes marciais com todas as armas brancas. São bastante respeitados no ocidente.

    Kiro observou o amuleto contra a luz forte que invadia a gruta.

    — Então por que um deles estaria aqui? — murmurou — E por que nos entregaria isto?

    Yuna testou o fio das lâminas contra os pelos do próprio antebraço. Letalmente afiadas.

    — Sinceramente? Não sei. — Guardava a pedra de amolar. — Depois de formados, costumam servir famílias abastadas que podem pagar por proteção. É raro que desviem desse caminho.

    O olhar de Kiro endureceu.

    — Então talvez não seja um aliado. — Devolveu o amuleto a uma das bolsas de suprimentos. — Acha que pode estar envolvido com aqueles do medalhão?

    Yuna deu de ombros.

    — Não faça perguntas difíceis, meu bem. — Deitou-se, fazendo da bolsa travesseiro. — Carmesins não manipulam nenhum tipo de energia; ele, quem sabe, pode ser um ronin a serviço de alguém.

    — Alguém que me quer morto?

    Por um momento, só o canto da floresta preenchia o espaço. 

    A manhã lá fora devia estar abrasadora, mas ali dentro o tempo parecia suspenso. Um fiapo de luz descia de uma fenda superior na gruta, iluminando o pó que dançava no ar. 

    Yuna o observava em silêncio; via nos olhos de Kiro um peso, que variava entre provação e responsabilidade.

    — Ninguém pode te matar, Kiro. Pelo menos não enquanto estivermos invisíveis aqui.

    — Já não sei se estamos tão invisíveis assim. — Sua visão estava perdida no alto da gruta, mergulhado em preocupações. 

    Para Yuna, era como malabarismo. Tinha de lidar com sua própria ansiedade, mas temia que Kiro se deixasse levar por suas angústias. Sabia bem que ela era seu alicerce, o porto seguro do tigre.

    Fechou seus olhos para descansar, tentando esquecer um pouco de tudo. Os segundos se tornaram minutos e a brisa acalentou-lhes um pouco mais naquele mormaço.

    Um fio de aflição subiu sua espinha.

    Yuna acordou de supetão, assustada. Foi instintivo. Na hora, formou o mudra do gavião, ativando a Visão Absoluta. Um fluxo, a noroeste e ofuscado, cintilava no meio do urja da selva. 

    — Estão aqui.

    Kiro se levantou de imediato. 

    — Quem?

    — Não sei — dizia, com os olhos vasculhando o mundo. — Mas não é qualquer um.

    Kiro franziu o cenho e rangeu os dentes. Ela continuou focada, tentando entender as minúcias daquela essência; como um degustador de vinhos caros. Diferenciava as notas de energia, tentava separar as frequências, mas, de longe, os olhos do gavião não se provaram tão precisos.

    Yuna sentiu o que não queria sentir.

    — Há resíduos de… kouen?

    Sabiam muito bem que a manipulação de tal energia era restrita a pouquíssimos seres, como Kiro. Yuna tinha certeza, era muito parecido com o que via em seu próprio parceiro. Mesmo assim, não queria acreditar.

    Sua visão enevoou e, então, tudo se foi. Encararam-se por um instante. 

    — O que quer fazer? — perguntou ela.

    O tigre começou a vestir suas roupas.

    — Proteger nossa casa.

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