O SOL CASTIGAVA TODOS OS moradores de Vento Gentil, fazendo a linha do horizonte tremular ao longe. O calor era úmido, acachapante, cruel. Mas tinha um motivo para o povo decorar as ruas e limpar as vilas com tanto afinco.

    Um estandarte dourado emergiu do alto, coroando uma balsa de balão único. Não era das grandes, mas das intrincadas. Entalhes decorativos preenchiam o casco, que convergiam até a figura de proa; uma mulher com múltiplos braços, reluzindo bronze à distância.

    Ao som da atracagem no modesto trapiche, entrada do povoado principal de Vento Gentil, alarmou todos sobre a chegada anunciada pela anciã. Mesmo com o mormaço que a todos deixava letárgicos, ninguém se absteve de, ao menos, bisbilhotar da janela para avistar aqueles homens tão raros de se ver — nem mesmo Kenshimaru.

    Chegaram.

    Cinco figuras distintas desceram da balsa. Cada uma trazia consigo vestes de cores diferentes, ainda que seguissem o mesmo corte característico. Os mantos eram ajustados, abotoados no centro até a cintura, onde se dividiam em um saiote que chegava até os joelhos. A gola era rígida, se erguendo até o alto do pescoço; nas costas, o símbolo da Irmandade Heta, representada por aqueles que chegavam com pompa ao vilarejo.

    O conhecimento popular apontava que hetas eram aqueles que conseguiam manipular o myoutai, a energia do Corpo Sutil, que dá a eles uma intrínseca conexão com as forças do mundo físico. 

    Na prática, começaram como rebeldes que lutavam contra as dinastias e seus protetorados, mas, ao longo das eras, se transformaram nos vigias e defensores do Tecido da Realidade, que guarda o mundo dos homens do Naraca. São aqueles que moldam as forças dos Deuses.

    A população, num misto de curiosidade e respeito, passou a se aglomerar nas margens do caminho. A maioria nem mesmo acreditava que a Irmandade de fato existia. Talvez fosse uma visão única na vida de um miserável das terras baixas.

    De manto verde e dourados detalhes, Tai liderava sua fração. Sua pele bronzeada e longos cabelos castanhos presos na altura da nuca não eram o que chamava a atenção de todos: aquele homem flutuava. 

    O regente planava, de olhos cerrados e na posição de lótus, sorrindo para a comunidade de maneira tão amistosa que desarmava a desconfiança daqueles que ainda jaziam apreensivos. 

    Gojin, logo atrás, julgava desnecessário todo aquele espetáculo. Atrair tantos olhares não era exatamente algo que gostava. Por vezes, praguejava em sua mente toda essa exibição que seu mestre fazia — logo se contia, afinal, desrespeitar os superiores é contra o regulamento da Irmandade.

    Ao lado, Yuuka. O pouco vento daquele dia quente balançava as tranças presas no alto da cabeça. Sua pele era escura como café e seu olhar, carinhoso como o de uma mãe. Trajava ainda brincos de jade e um colar típico de Shiroyama, além do manto amarelo. Sorria e acenava, graciosa.

    — Aposto que as mulheres daqui nunca viram um homem tão bonito – murmurava Tatsuo, entre dentes.

    O sorriso fácil e a lábia astuta eram marcas registradas dele. Em vestes escarlates intrincadas com relances dourados, uma bandana preta amarrada deixava escapar mechas de seu cabelo castanho rebelde. Ostentava um bigode fino e cavanhaque travesso sobre a pele cor-de-nós. Lançava seus olhos em busca das moças mais belas que poderiam existir ali.

    Yuuka suspirou, sem o olhar. Continuava acenando às crianças que corriam à beira da via.

    — Uma das suas exes vai arrancar sua língua um dia, Tatsuo — respondeu ela.

    — Se for a Suko, eu até deixo — retrucava o garanhão. — Talvez a Ukin também; não seria nada mal.

    Yuuka segurou um riso de canto e Gojin ignorou. Jun Lei vinha logo atrás e, diferentemente de Tatsuo, falava pouco e sempre jazia de expressão distante. Uma faixa branca cobria seus olhos, sob a franja champanhe. Sua visão eram os fluxos de água que permeiam os veios do mundo. Na maioria das vezes, era quase uma sombra da fração, mas uma peça essencial para as operações do grupo de Tai.

    Todos eles, alunos do regente. Como o heta mais poderoso de sua geração, tinha o privilégio de contar com prodígios; só ele saberia lapidar. Somente um gênio pode ensinar outros gênios.

    Som de tambores antigos ecoou.  

    À frente, um pequeno grupo os aguardava. A anciã Imoj apoiava-se em seu cajado, tão respeitada quanto o número de anos que levava nas costas. Acompanhavam-na os líderes das outras vilas menores; curandeiros, mineradores, camponeses, lavradores. Gente endurecida de Vento Gentil.

    Seus cabelos brancos cediam como cortina nos ombros arqueados, e as mãos, firmes apesar da idade, colecionavam calos e histórias, mesmo com os dedos tremidos. A boca quase sempre semiaberta tiritava, como um tique, mas suas palavras eram cheias de certezas, como foi ao longo de sua vida.

    Frente a frente, Tai se curvou lentamente diante de Imoj, um gesto respeitoso visto por toda a multidão.

    — Viemos a mando de nosso dever, anciã. — Sua fala era leve, tanto quanto parecia ele mesmo enquanto pairava no ar.

    Imoj o mediu com sua visão cansada.

    — Nunca pensei que lhes veria por aqui, jovem. — Seu vozear fremido. — Boa coisa não poderá ser.

    Tatsuo sussurrou algo, logo calado pelo olhar de Yuuka. Gojin revistava os arredores, imóvel.

    — De fato, não é — explicava Tai, com calma. — Solicito que me permita explicar agora o que preferi não aclarar em carta. 

    A líder apenas assentiu, permitindo que os hetas fossem comboiados para dentro pelos demais líderes. A população logo se dispersou.

    O grupo foi conduzido até o salão comunal, onde as assembleias ocorriam. Não passava de uma construção circular de madeira escura e teto de palha, no centro da aldeia. Lá dentro, o ar era abafado e as paredes decoradas com máscaras, instrumentos musicais e outros traços da cultura local.

    Sentaram em semicírculo, com Imoj sendo a última a tomar lugar, vagarosa.

    — Pois agora fale, homem das terras altas — dizia ela. — Que dever é esse que os trouxe tão longe de casa?

    — Será fácil entender — elucidava Tai, sem fazer questão de mensurar suas palavras. — Há peças se movendo no quintal dos senhores, e temos de averiguar. Passa longe de ser algo que possam lidar sozinhos.

    — O Dente de Ferro opera aqui há anos — apontou um dos líderes.

    — Não — interrompeu —, não é disso que estou falando. Talvez a anciã saiba coisa ou outra sobre, mas é algo que fugiria da compreensão dos senhores. Por isso peço que cooperem conosco.

    Um murmúrio se espalhou entre os anciãos. Yuuka e Gojin assistiam o medo que crescia em seus rostos, à medida que Tatsuo, de braços cruzados, esperava o tempo passar.

    — Cooperar como? — Duvidava um deles. — Querem nossa comida? Nossos recursos? Querem entrar nas nossas casas?

    Gojin se inclinou, mas Tai impediu sua fala. 

    — Não se preocupem. — Tai seguia sorrindo. — Não precisamos de nada que tenham; só que nos deixem trabalhar. Ninguém será incomodado, a menos que… comprovemos suspeitas.

    Os anciões se entreolharam, desconfiados. As palavras do Mestre do Ar eram serenas, mas carregavam peso.

    — Não está nos pedindo permissão, jovem. — A voz de Imoj voltou, com autoridade, e então o burburinho cessou. —  E mesmo que pedissem, não teríamos como recusá-la. Mas, ao menos, diga o que enfrentarão; ninguém luta sem saber contra o quê.

    Tai, então, fez um gesto sutil para que Gojin tomasse a frente.

    — Uma anomalia foi detectada aqui na região. — dizia, com voz rija. — Uma fenda no Tecido; temos que intervir. Pode não ser perigoso, mas sinais assim costumam significar o prelúdio de algo pior.

    Percebendo o choque e confusão nas feições dos velhos, Yuuka, de fala mansa, completou:

    — Um corte no Tecido da Realidade é um fenômeno grave, que pode inclusive significar a passagem de um Naraki para o nosso mundo. Não acreditamos que seja algo nesse nível, mas, se for, já é tarde para ignorar.

    Naraki

    A palavra pairou diferente no salão. Calafrios percorreram os corpos dos idosos. Arrancou-lhes as palavras. 

    Imoj suspirou fundo. Seus dedos passaram a tremer um pouco mais do que o comum. Resignada, a anciã sabia que pouco poderia exigir daqueles guerreiros.

    — Pois bem. Façam o que for preciso, hetas. — Ela encarou fundo os olhos do regente. — Só, por favor… Não faça essa gente sofrer mais do que já sofrem. Já basta o que o crime e os Deuses tiraram de nós.

    Tai sorriu, caloroso.

    — Diga à sua gente que os hetas são aliados, anciã — disse Tai, se inclinando levemente. — Não deixaremos que nada aconteça com vocês. Têm minha palavra.

    O silêncio que se seguiu foi quase reverente. Vento muito bem-vindo invadiu pelas janelas, alentando a reunião e fazendo os sinos tocarem, como se fechassem o encontro.


    Incenso perfumava a cabana isolada, combatendo o odor acre e úmido que se alastrava pelo local. 

    Imoj ordenou que fosse cedido aos hetas uma construção afastada das vilas, que servia antes aos caçadores locais. Ali, seria o centro de operações dos hetas. Com isso, a fração de Tai poderia atuar com maior sigilo.

    — É estranho, mestre — comentava Jun Lei, sentada e de cabeça baixa. — Não citaram o Tigre Alado nenhuma vez.

    Aquele nome já soava natural. Boatos e lendas percorrem longos caminhos em tempo recorde quando a história é boa. 

    — Pensei a mesma coisa. — Yuuka arrumava alguns suprimentos que receberam de bom grado. — Imaginei que, ao menos, nos avisassem que há um fantasma solto por aí.

    Gojin jazia de braços cruzados, sentado e encarando o teto de madeira mofada. Tatsuo beliscava algo para forrar o estômago.

    — Eu já disse — Tatsuo falava de boca cheia. — Devíamos chamar a Confraria de uma vez. Eles são quem realmente têm que estar aqui.

    — Ainda não — cortou Gojin, mirando longe. — Sabemos quem é o Tigre Alado, mas não sabemos se é o responsável pelo rasgo no Tecido.

    — Gojin está certo — completava Yuuka. — E eu ainda diria que isso não faria sentido. Pessoas como ele podem ser poderosas, mas não o suficiente para abrir uma fenda no véu; não é, mestre?

    Tai pairava de canto, ouvindo seus pupilos discutirem.

    — Isso mesmo. Há chance de ser apenas uma anomalia, porém, se não, teremos muito trabalho a fazer. — Sorriu, por fim.

    — O que eu senti no Orbe não foi uma anomalia normal. — intervinha Gojin, de voz ríspida. — Tenho certeza; já vi centenas de anomalias naturais. Essa foi… diferente.

    — Então você vai na frente, Gogô. — Tatsuo jogou a casca da fruta janela afora. — Não vou chamar ninguém de Vossa Santidade, pode esquecer, mas que vai ser legal encontrar ele, pode ter certeza.

    Gojin não respondeu, lembrando da dor aguda que penetrou seus tímpanos quando a fenda se abriu, na vigília do Orbe de Mil Correntes. 

    As outras tantas vezes que embarcaram para investigar rasgos no Tecido o deram a experiência para discernir o joio do trigo. Daquela vez não poderia ser apenas uma anomalia, um acidente no véu; alguém o rompeu de propósito.

    — E pode ser que o encontre hoje, Tatsuo. — A voz de Tai cortou o fluxo de pensamentos de Gojin. — Irá comigo patrulhar a porção leste da selva; Yuuka e Gojin; zona central, onde a mata é ainda mais fechada. E você, Jun, fique aqui, nos guie e avise se rastrear algo que devemos saber. Sabem o que fazer; confio em vocês.

    Assentiram todos.

    Naquele começo de tarde, os hetas oficialmente começaram as buscas pelos fragmentos da fenda no Tecido de dias antes. Mesmo com tantas e tantas oportunidades em que nada se deu, desta vez, havia um sabor agridoce. O relato de Gojin, as histórias do Tigre Alado e o que sabiam sobre ele. 

    Se algo como o próprio Tigre Alado estava a solto por Vento Gentil, abria-se margem para suspeitas mil. Pessoas comuns jamais saberiam identificar o fantasma da selva, mas os fluxos de kouen sempre foram extremamente fáceis de se notar.

    Todos os hetas sabiam: um Deva caçava em Vento Gentil.

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